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Acerca da Casa de Sub-ripas ainda há poucos anos alguns caturras teimavam a favor da lenda que pusera dentro das suas paredes a tragédia do D. Maria Telles — morta ás mãos do marido por intrigas da irmã rainha.
Rainha D. Leonor Teles, a origem da intriga. Imagem acedida em https://www.google.pt/search?q=leonor+teles
O resultado da intriga. Imagem acedida em http://invitaminerva45.blogspot.com/2017/07/estorias-curiosas-da-nossa-historia-2.html
Isto, apesar de tal invenção estar claramente destruída desde 1871, com a publicação ou aproximação de certas datas históricas e documentos. Entre outros podem ver-se os artigos e cartas publicadas nos n.os 2526, 2527 e 2530 do Conimbricense daquele ano, por J. Martins de Carvalho, Miguel Osório, Senhor das Lágrimas, e Dr. Filipe Simões. Nem mesmo valeria a pena discutir o caso, se não estivéssemos num país onde quase toda a gente prefere seguir e repetir o que ouve a investigar e a refletir por conta própria.
Assim, sempre enfileiro aqui os argumentos que minaram a ingénua invenção.
Em primeiro lugar: da leitura da passagem de Fernão Lopes [Chronica de El-rei D. Fernando – Tomo IV da coleção de livros inéditos de história portuguesa.... pag. 350 a 354] invocada como fundamento da lenda — infere-se exatamente o contrário do que queriam aqueles caturras; pois o pai da nossa história muito positivamente indica como teatro da tragédia uma casa próxima á igreja de S. Bartolomeu — igreja situada no mesmo local onde existe a atual, constituída em 1756. Pertencia essa casa a um homem nobre, de nome Álvaro Fernandes de Carvalho.
— Depois: seguindo Fernão Lopes, também Frei Manuel dos Santos na «Monarchia Lusitana» refere o facto como passado na freguesia ou arrabalde de S. Bartolomeu.
— Há mais: porque é que António Coelho Gasco— escritor do século XVII, autor da Conquista, antiguidade e nobreza da mui insigne e Ínclita cidade de Coimbra —nada menciona do facto? Certamente por estarem já no seu tempo arrasadas ou irreconhecíveis as casas de Álvaro de Carvalho. Mas se a tragédia se tivesse dado na Casa de Sub-ripas ele aí tinha o teatro do crime — e não passaria em silêncio tão importante acontecimento.
— Ainda: nos pergaminhos e papéis do arquivo dos Perestrellos —proprietários históricos das casas de Sub-ripas até há poucos anos — nada apareceu, entre documentos referentes a estas casas, que desse o caso como acontecido nas suas moradas.
Não faço, nesta altura, pesar a circunstância de ver dado como acontecido numa casa quinhentista um facto pertencente ao século XIV; pois os defensores da lenda explicavam: que a casa existente fora levantada sobre as ruínas da casa ou torre do crime. Mas a isto responde-se: no século XVI, mercê de vida nacional mais pacífica e das novas condições da cidade, já podiam ser abandonadas partes da muralhas com as torres — como de resto o prova o documento da doação a João Vaz; enquanto que nos tempos precários — tão abrolhados de perigos o surpresas — do reinado de D. Fernando I não podia estar ainda desprezada a muralha de Coimbra, e convertidas as suas torres do vigia em aposentadorias de princesas.
Este argumento de boa razão fortalece os que nos fornecem os documentos.
Para mais — a lenda é de origem relativamente recente, e nenhum dos escritores que a adotaram o fez como historiador. Sorria-lhes á fantasia.
Mas não há remédio senão passar sem ela.
O interesse que nos merece a Casa de Sub-ripas em nada diminuirá, de resto, por termos afugentado dos seus desvãos e terraços o fantasma da linda e branca Maria Telles, imolada a golpes de bulhão, pelo filho da outra mísera e mesquinha numa madrugada de novembro de 1379.
Coimbra. 25 de março do 1906.
Manuel da Silva Gayo
Gaio, M.S. Palácios, castelos e solares de Portugal. IV – A casa de sub-Ripas, In “Illustração Portugueza”, 9, Primeiro semestre, 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 265-272.
O estudo agora apresentado resultou na sua essência da dissertação de mestrado que defendemos em julho de 2003. No entanto, investigações desenvolvidas posteriormente permitiram-nos abordar alguns temas que não teriam cabimento num trabalho com objetivos estritamente académicos.
A comunidade que será objeto deste estudo situa-se em plena região centro, sendo desde 1836 uma das freguesias do concelho de Coimbra. Contudo, durante muitos séculos a sua identidade estruturou-se em moldes bem diferentes – vila e sede de um concelho que integrava o termo de Coimbra (que detinha a jurisdição crime), mas possuindo autonomia no cível (que pertencia ao donatário de Eiras, o Mosteiro de Celas de Coimbra).
Eiras situa-se a cerca de 5 km de Coimbra. Uma légua a ser percorrida por todos aqueles que deixavam a cidade da margem do Mondego em direção a Norte, a uma pequena vila, de cerca de 100 fogos. A paisagem é marcada pela sua posição na fronteira entre as terras do campo e as terras do monte, entre as férteis planícies do Bolão e as serranias que se desenham no horizonte, como a de Luzouro, Espinhaço do Cão ou a da Aveleira.
… No século XVIII, o elemento que dominava a paisagem era, sem dúvida, a água.
Fonte de Eiras
… A importância da água para a rega, para acionar as inúmeras azenhas que permitem moer o cereal ou fazer o azeite levaram as senhoras de Eiras, as freiras do mosteiro de Celas, a defender de forma inequívoca as linhas de águas que atravessavam o seu domínio territorial e jurisdicional. O seu interesse pela água, especialmente pela preservação dos caudais, prendia-se com o facto das monjas de Celas deterem o monopólio da utilização dos lagares. A água era essencial, não só para acionar as estruturas de moagem como para o próprio processo de elaboração do azeite.
… O primeiro desses poderes estruturantes é o senhorial. Eiras pertencia a um dos muitos donatários que dividiam entre si o termo coimbrão – o mosteiro de Celas. O Mosteiro há muito implantado no burgo de Celas estabeleceu ligação com o lugar de Eiras em 14 de abril de 1306 quando o rei D. Dinis escambou com as freiras de Celas a terça parte da vila de Aveiro pela aldeia de Eiras e padroado da sua igreja. – “[…] a qual aldeia [Eiras] eu a vos dou e outorgo em escambo com entradas e saidas e com montes e com valles rotos e por romper pastos, e com matos e com todollas outras couzas que a dita aldea pertencem asi commo eu milhor ouvo, e com todos os direitos que eu hi ey e de direito devo aver e com o padroado da Igreja deste lugar d’ Eiras […]”. Este escambo e a consequente posse de Eiras acabaram por ser sucessivamente confirmados por outros monarcas portugueses.
… Assim, enquanto donatárias, e decorrente dos seus direitos jurisdicionais e de padroado, as freiras de Santa Maria de Celas recolhiam em Eiras e seu limite um vasto conjunto de direitos senhoriais, consagrados em foral e transcritos, através do testemunho das gentes de Eiras, no tombo de 1740. … O foral de Eiras terá tido a sua origem no reinado de D. João I.
… Os limites de uma paróquia de Antigo Regime eram construídos sobre um mapa cujas fronteiras não se materializavam em marcos ou divisórias como acontecia com os limites senhoriais ou concelhios.
O seu centro era a igreja (edifício de culto e local de enterramento dos mortos), os seus limites eram os da obrigação dos sacramentos que uniam um conjunto mais ou menos vasto de pessoas e o seu mapa os róis de confessados que o pároco redigia a cada Quaresma.
Igreja Matriz de Eiras. Imagem acedida em https://www.allaboutportugal.pt/pt/coimbra/monumentos/igreja-matriz-de-eiras-3
A paróquia de Santiago de Eiras era vigararia da apresentação do Mosteiro de Celas. Tinha uma área de cerca de 9 Km que incluía a vila, onde se situava a igreja matriz, os lugares de Casais de Eiras, Vilarinho, Murtal, Escravote, Carvalho e Redonda – lugares que pertenciam ao domínio senhorial de Celas, mas também a outros senhorios como é o caso do Murtal ou dos de Casais de Eiras.
O lugar de Vilarinho dividia-se pelas freguesias de Eiras e Brasfemes, sendo os dízimos aí recolhidos divididos pelas duas paróquias.
… Um outro poder que se materializava no espaço era o municipal. A vila de Eiras era um concelho constituído por uma câmara Municipal, com um juiz ordinário, um juiz do crime, dois vereadores, um procurador do concelho, dois almotacés e um escrivão da câmara proprietário do ofício. O juiz ordinário, os vereadores e o procurador da câmara eram eleitos anualmente através de um processo que as atas da câmara de Eiras descrevem com clareza – “[…] sendo presente o dito cofre fixado com tres chaves e sendo aberto […] se achou huma saca dobrada e cozida com bolinhas brancas e lacradas com lacre preto e sendo assim achada a dita saca ou bolsa de pelouros e aberta dentro della se acharam tres pelouros ou bolas de sera e sendo tirada hum dos ditos tres pelouros se achava dentro delle um bilhete embrochado o qual sendo aberto nelle se achavam nomeados os oficiais que serviriam […]”. No que toca ao juiz do crime o processo de eleição era diferente, uma vez que a jurisdição crime pertencia a Coimbra. Assim, o concelho de Eiras apenas poderia indicar três nomes que seriam enviados à câmara de Coimbra que, por sua vez, nomearia o juiz que exerceria o mandato no ano seguinte.
Para além destes cargos e ofícios, detetámos ainda a presença de Almotacés. Estes oficiais exerciam a sua atividade de fiscalização económica em pares que eram eleitos de dois em dois meses a partir de uma pauta estabelecida no início do mandato das justiças desse ano.
Ribeiro, A. I. S. 2005. A Comunidade de Eiras nos Finais do Século XVIII. Estruturas, Redes e Dinâmicas Sociais. Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Um destes afortunados comerciantes foi Estevão Domingues. Morador na Rua dos Francos e freguês de Santiago, encontramo-lo em 1347, juntamente com sua esposa Florença Fagundes, a negociar com esta igreja a sepultura de ambos, sendo noticiado, também, que a mãe desta, Joana Fernandes, já ali estava enterrada. Não deverá ter sido este, porém, o destino último deste mercador. Ao que tudo indica, foi enterrado no mosteiro de Santa Clara, já que a filha de ambos, Clara Esteves, ali terá ingressado, razão pela qual o mosteiro reclamou um terço das posses de Estevão Domingues após a sua morte. Quando este faleceu, já era casado em segundas núpcias com Iria Esteves que, como ficamos sabendo por instrumento de 1362, terá feito o inventário dos seus bens, a fim de que a subsequente partição fosse efetuada.
Fotografia da hoje designada rua Visconde da Luz, nos inicios do séc. XX
É com base neste inventário que temos uma noção da riqueza de um mercador coimbrão de fins de trezentos. Estevão Domingues era um negociante por excelência, já que mercava panos importados, sobretudo de lã, oriundos de Flandres e da Inglaterra. Juntamente com estes, vendia também enfeites para a confecção de vestes, como fitas, fios e botões de diversos materiais. Do seu património pessoal, destaca-se um relativo conforto e abundância de artigos de cama e mesa, incluindo-se aí almofadas, colchões, cobertores, mantas, tapetes, toalhas, vasos, taças, colheres, panelas, entre muitos outros utensílios. Também nos aparece arrolado o mobiliário da casa, constituído – entre outros objetos – por cadeiras, mesas, armários, tabuleiros e uma escrivaninha, além de diversos tipos de roupas, pertencentes tanto a Estevão Domingues como a Iria Esteves. Por fim, ficamos sabendo de suas propriedades, que se resumiam, aparentemente, a casas na Rua dos Francos e uma outra na Rua dos Tintureiros.
Não era só de mercadores, no entanto, que a Rua de Coruche e a Rua dos Francos – antecessora da Calçada – eram constituídas. Desde a centúria de duzentos até meados do século XV, encontramos na documentação, além dos sempre presentes alfaiates e sapateiros, também ourives, tendeiros, cónegos, tosadores, um cutileiro, um boticário, um pintor, um barqueiro e um “homem braceiro”. Dentre os funcionários públicos e régios, ali encontramos os tabeliães Afonso Vicente, Miguel Lourenço, João Afonso e Pedro Afonso; o almoxarife Pedro Juliães. vedor da portagem Vasco Eanes e o escrivão régio Domingos Anes, o escrivão da câmara, Álvaro Gonçalves e Gonçalo Vasques, “esprivam (sic) que foy dos horphaãos”. Dentre a pequena nobreza, destacamos os escudeiros João e João Lourenço, além da própria Coroa que, como sabemos através das chancelarias e tombos, detinha algumas propriedades na área.
Finalmente, descendo até o final desta mesma via, atingir-se-ia a Portagem, ponto de partida de nossa caminhada pelas freguesias de São Bartolomeu e Santiago de finais da Idade Média.
Conclusão
Como pudemos verificar, quem se embrenhasse pelas ruas, adros e terreiros de tais freguesias no período medieval, teria contato direto com elementos de todos os extratos sociais, e testemunharia a existência de um número relativamente diversificado de mesteres e estabelecimentos de produção.
Dentre estes, merecem especial destaque os alfaiates, sapateiros e carpinteiros, presentes em toda a área, assim como os peliteiros e os tanoeiros, únicas categorias de mesteres geograficamente concentradas, instalados nas ruas que levam suas designações, na freguesia de Santiago. A freguesia de S. Bartolomeu, por sua vez, tinha como atividade predominante a produção de azeite – como nos evidencia a alta concentração de lagares na zona próxima ao rio –, e contava, também, com a presença de alguns estabelecimentos mecânicos relacionados à curtição de peles.
Dissertação. Imagem nº 22: A Praça do Comércio nos inícios do séc. XX, em vista tomada em direção a igreja de Santiago, pg. 107.
Dissertação. Imagem nº 23: A Rua do Poço, ao centro, ladeada pela Rua das Rãs, a Rua das Solas (atual Adelino Veiga) e a Rua das Azeiteiras. Seu trecho oriental, após o Beco de Santa Maria, hoje é designado por Travessa das Canivetas. Planta Topográfica de Coimbra executada pelos Irmãos Goullard, 1873-74, pg. 117.
Por fim, no eixo formado pela Rua de Coruche e a Calçada – antes denominada Rua dos Francos –, pela sua importância e grande extensão, encontravam‑se instalados profissionais de diversas categorias e grupos sociais, dentre os quais destacava-se a burguesia mercantil, que ali formava o seu reduto.
Concluindo, resta-nos reafirmar que será na Baixa que se conduzirá o desenvolvimento e se refletirá o progresso de Coimbra pelos restantes séculos do período medieval. Serão seus habitantes, homens e mulheres, mercadores e mesteres, que incrementarão o comércio e a produção, e garantirão o relevante papel da urbe no contexto do reino. Destes habitantes, tentámos obter retratos do seu cotidiano e detalhes acerca de sua identidade, revelando um pouco mais acerca destes agentes da história que, em seu conjunto, formam parte essencial do contexto socioeconómico coimbrão, no período de transição de antiga sede da corte à moderna cidade estudantil.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
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Em dias comuns, o movimento na Praça não seria muito diferente do resto dos arruamentos. Transeuntes, tendas, algumas vendedeiras, carros de bois, crianças correndo ou pombas ciscando – alimentando-se, talvez, do que havia sido deixado da última feira semanal – seriam visões comuns. Esta relativa tranquilidade, porém, não devia equiparar-se ao bulício que a Praça experienciava em tempos de feira franca.
Durante os reinados de D. Fernando e D. João I, esta ocorria de 15 de Setembro a 15 de Outubro. Coincidia com o S. Miguel de Setembro, época de colheitas e de pagamento de rendas, e a ela acorria gente de todo o termo, para comprar e para vender, constituindo-se no verdadeiro encontro entre o campo e a cidade.
Tais características faziam da feira, portanto, um vivo e colorido retrato da sociedade medieval. Era ali que o abastado burguês citadino exibia suas roupas adornadas e sua bolsa cheia de moedas, procurando pelo melhor sapato, o melhor tecido ou, talvez, alguma joia. Impressionava, com toda a certeza, o lavrador que, vindo de uma localidade recôndita nos confins do termo coimbrão, aproveitara as isenções fiscais próprias do evento para montar uma banca e vender o produto de suas colheitas a fim de obter algum lucro, que talvez fosse gasto por ali mesmo, em um novo utensílio doméstico ou peça de roupa para sua família. À sua banca, acorria, entre muitos outros, o mesteiral local, com o intuito de abastecer-se do que era necessário para as suas atividades e, no processo, surpreender-se ao passar por estrangeiros a balbuciarem uma língua estranha, vendendo panos exóticos ou outros produtos vindos de fora do reino. Tudo isto, claro, vigiado pelos oficiais do concelho, dispostos a manter a ordem e que tinham no pelourinho, situado bem ao centro da praça, tanto um instrumento de punição como um elemento representativo do poder municipal.
Reconstituição do pelourinho, na sua presumível localização quando instalado na Praça
Por fim, em frente a porta da igreja Santiago, alguns cónegos reúnem-se no alto de sua escadaria, juntamente com um casal. A meio deles, sentava-se um tabelião, rabiscando um grande livro. Era algum emprazamento a tomar forma. Foi este o caso, por exemplo, de Diogo Lourenço e Catarina Anes que, em 5 de Outubro de 1437, em plena feira, receberam de emprazamento, do Mosteiro de São Jorge, um casal e herdade em Santa Luzia, termo de Coimbra, tendo o contrato sido celebrado “ante a porta prinçipal da egreja de San Tiago”.
Dissertação. Imagem nº 8 e 9: A igreja de Santiago após a reconstrução, retratada atualmente / A capela Norte, construída no séc. XV em estilo gótico, pg. 41.
A ocasião, porém, não seria só para negócios. Era, também, a oportunidade de rever os amigos, quem sabe fazer outros novos, atualizar-se acerca das novidades e comentar os assuntos do reino, da cidade, da família, e, até mesmo, da vida alheia. Do que falavam exatamente? Não sabemos, mas podemos supor. Muito provavelmente, um assunto corrente na feira de 1395 seria, por exemplo, o do divórcio entre Afonso Fernandes e Catarina Martins. Ele, dito da Cordeirã, fora escrivão do almoxarifado, e ela, filha de Martim Lourenço, conhecido por Malha e que sabemos ter sido almoxarife de Coimbra entre 1361 e 1367. Foram casados por dez anos e eram, certamente, conhecidos dos moradores da zona da Praça, pois tinham uma casa na Rua dos Peliteiros e um cortinhal em Poço Redondo, localidade próxima.
Não sabemos o que terá causado o divórcio e, muito menos, de quem teria partido a iniciativa, se de um dos cônjuges ou se, em uma hipótese menos provável, da Igreja. Teria o ex-escrivão abandonado a esposa? Era um dos motivos que levariam a tal fim. Se assim o fosse, dar-nos-ia razões para interpretar as quinhentas libras que uma tal Catarina Beata “avia de dar ao dicto Affonso Fernandez do corregimento de pallavras que dissera do dicto Affonso Fernandez” – referidas no instrumento de partilha de bens do casal – como o possível resultado de uma pouco respeitosa observação em relação ao caso. De qualquer modo, a situação era rara e, tratando-se de personagens de alguma visibilidade, certamente terá gerado comentários.
Nesta mesma época, outro tópico que deveria estar entre os discutidos pelos habitantes da cidade seria o da insegurança durante a noite. O povo, este, já apontava culpados: os homens responsáveis pela guarda noturna. Aparentemente, o alcaide-mor, ao invés de utilizar, para este fim, funcionários conhecidos, “escriptos nos livros”, valia-se do serviço de “homees vaadios e nom conheçudos”, não sendo incomum o aparecimento, ao raiar do sol, de pessoas maltratadas e até mesmo mortas, dentre outros malefícios. Por vezes, após a descoberta destes crimes, os ditos homens abandonavam a cidade misteriosamente, sendo “de presumir que som culpados nos dictos mallafiçios ou em parte deles”. Foi este o conteúdo de uma reclamação ao rei, por ocasião das cortes de Santarém, em 1396, tendo o monarca mandado que fossem cumpridos os costumes da cidade de utilizar, para este fim, pessoas conhecidas da população.
Imediatamente acima da Praça, ao cimo das escadas que, já no séc. XIV estariam situadas imediatamente em frente ao arco da Barbacã, estava o eixo formado pela Calçada – antes Rua dos Francos – e a Rua de Coruche, um dos mais importantes da cidade. Tais artérias serviram, durante o período medieval, como reduto de mercadores, fama confirmada por fontes contemporâneas, como é o caso de um decreto fernandino, datado de 1367, que garantia privilégios, especificamente, aos “mercadores moradores na Rua de Coruche e na Rua de Francos”.
Fotografia antiga da hoje designada rua Visconde da Luz 1
Encontramo-los nas fontes desde as primeiras menções a ambas as ruas, em inícios do século XIII, tendo sido muitos deles, ao longo da Idade Média, sepultados no cercano templo de Santiago, como nos provam as diversas citações a mercadores presentes no Livro de Aniversários desta colegiada.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
À época em que se redigiu o testamento, Constança Esteves vivia na companhia de uma tal Senhorinha, a quem acabou por deixar um olival “alem da ponte na Varzea e quatro geiras de terra no campo de Mondego”, estipulando que, à morte desta, tais propriedades fossem transferidas para a Albergaria de Santa Maria de São Bartolomeu, cuja sede se situava na freguesia de Santiago. Ao lado do edifício onde estava instalada a albergaria, encontravam-se as casas que, no séc. XVI, seriam reformadas para servir de Paços do Conde de Cantanhede, e que correspondem, por certo, às doadas por D. João I, em 1390, ao prior do Hospital e Marechal do Rei, Álvaro Gonçalves Camelo.
Junto da casa que pertenceu a esta personagem, na Idade Média, corriam três ruas: a Rua dos Tanoeiros, atual Adelino Veiga; a Rua Olho do Lobo, atual Rua das Rãs e, provavelmente, a Rua dos Peliteiros, sendo as três paralelas e culminando no Arnado. Como os próprios topónimos nos indicam, por ali estariam concentrados, em finais da Idade Média, os tanoeiros, fabricantes de tonéis – destinados ao armazenamento de diversos produtos, dentre os quais, certamente, o azeite produzido na freguesia vizinha – e os peliteiros, curtidores de peles, especializados na obtenção da pelica, couro fino, de uso nobre.
Desta forma, não é surpreendente o fato de termos encontrado nas fontes testemunhos abundantes à presença destes profissionais na área, acompanhados de mercadores e, sobretudo, de sapateiros – que certamente se utilizavam do couro ali produzido – e carpinteiros, que poderiam estar envolvidos no fabrico dos tonéis. Para a Rua dos Tanoeiros, convém destacar também que, na primeira metade do séc. XV, era ali proprietário – dentre tanoeiros, sapateiros e carniceiros – o tabelião João Rodrigues, que fora criado do infante Dom Pedro, tendo sido por pedido deste ao concelho que acedera ao tabelionato, por volta de 1429.
A Rua dos Peliteiros, sobretudo, havia de ser uma artéria importante. O seu período áureo parece ter sido o século XIII e inícios do século XIV, centúria em que encontramos algumas referências a personalidades ilustres que nela, e em suas cercanias, detinham propriedades. Enumerando-as, citemos Vasco Gil, cónego de Santiago e tabelião público, que ali morou; D. Pascásio Godins, que foi deão de Viseu e de Coimbra; o chantre de Viseu e cónego de Coimbra Lourenço Esteves de Formoselha; Gonçalo Esteves, que havia sido escudeiro de D. Astrigo, raçoeiro da Sé, e Aldonça Anes de Molnes, monja de Lorvão. Próximo das casas habitadas por esta última, estariam outras, pertencentes ao seu irmão, o fidalgo Paio Anes de Molnes. Convém mencionar aqui, também, o alvazil Tomás Martins, que habitou em uma platea, na freguesia de Santiago, que poderá corresponder à Rua dos Peliteiros.
Rumando pela Rua dos Tanoeiros em direção à igreja de Santiago, atingir-se-ia, em inícios do séc. XV, a Praça. Devia parecer, nesta época, um grande terreiro de formato ainda um tanto irregular, sendo provável que não se estendesse até ao adro de S. Bartolomeu, como nos dias atuais. A meio desta, em frente a uma pequena escada encrustada no casario, já lá estava o pelourinho e, próximo dali, imediatamente ao lado da igreja de Santiago, os açougues. Em segundo plano, imponente, a muralha e suas torres.
Nos quarteirões à volta da Praça estariam em curso, provavelmente, demolições e novas edificações, no âmbito do processo de reorganização do espaço que lhe deu a configuração atual. Das que já ali estavam, algumas seriam dotadas de alpendres, como ao que renunciou, em 1455, Afonso Martins, que fora criado do infante D. Pedro, alegando ser “homem prove (sic) e meesteirosso”. Tal alpendre confrontava com casas do barbeiro Álvaro Fernandes e outras que haviam pertencido a Martim Afonso, também barbeiro e, à época, já falecido.
Dissertação. Imagem nº 16: Em azul, o traçado presumido da sota, desde a Rua de Quebra Costas até o Mondego, pg. 60
Dissertação. Imagens nº 17 e 18: O arco quinhentista / Detalhe do arco, pg. 93
A pequena concentração destes profissionais no local é entendível. Afinal, a Praça, em meados de quatrocentos, já seria um lugar relativamente central. Ademais, lembremos que os barbeiros, além de apararem a barba e o cabelo, tinham outras atribuições, dentre as quais pequenas intervenções médicas, como era o caso das sangrias. Seu local de trabalho afigurava-se, também, como um espaço de convívio masculino. No século XIV, o severo clérigo castelhano Martín Perez, por exemplo, via grande perigo no ajuntamento de homens no barbeiro, assim como, em contraponto, na concentração de mulheres nas casas de fiandeiras.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
A própria freguesia de S. Bartolomeu, no seu todo, parece ter sido, no período medieval, uma área de grande importância na produção deste óleo, dada a quantidade de lagareiros que aparecem na documentação, estando tais estabelecimentos, por vezes, na posse de membros ilustres da sociedade.
Dissertação. Imagem nº 20 e 21: No centro, a Praça, representada em planta de finais do séc. XVIII, no mapa das Antigas freguezias./ A Praça do Comércio na década 40 do séc. XX, em vista tomada em direção a igreja de S. Bartolomeu, pg. 106
Dissertação. Imagem nº 25: A divisão atual dos lotes da Praça.
Caso notório é o do nobre Fernando Fernandes Cogominho. Em 1258, juntamente com sua mulher, Joana Dias, e as irmãs desta, Teresa e Mor Dias, vendeu a D. Boa Peres, mãe das ditas donas, os quinhões que possuíam nuns lagares de azeite, situados na dita freguesia, que lhes terão ficado de herança após a morte do pai, Vicente Dias.
Confrontando com estes lagares a sul, estava um terreno que havia pertencido a Martim Anes de Aveiro, justamente o mais antigo tabelião público de Coimbra de que se tem notícia, tendo sua existência sido documentada desde pelo menos 1199, e como ocupante daquele cargo, desde 1219. A história deste tabelião confunde-se, também, com a da própria freguesia, já que ao falecer, em 1227, foi sepultado na igreja de S. Bartolomeu, deixando-lhe bens e nela instituindo uma capela.
Ainda na Rua de S. Gião, confrontando de um dos lados com a dita “Estrebaria da Rainha”, estava um cortinhal pertencente a Constança Esteves. Era então viúva do almoxarife Afonso Anes, e ambos tinham sido proprietários de umas casas e de outro cortinhal nesta mesma rua, doados, em 1363, à igreja de Santiago, de onde eram fregueses. Em 1397, certamente em idade avançada, redigiu seu testamento, onde expressa o desejo de ser enterrada nesta igreja junto ao marido, já aí sepultado, com a particularidade de, no primeiro dia após sua morte, ser velada na Sé – de onde então era freguesa – já que as casas em que morava eram “pequenas e estreytas”.
Não sabemos se a viúva ter-se-á mudado para a paróquia sede após a morte do marido, ou se seria dali originária. É percetível, no entanto, a relação afetiva com o Arrabalde, local que certamente habitou e onde, segundo indicam as fontes, ainda teria o que lhe restava da família, já que não encontramos em seu testamento indícios de que tivesse filhos ou netos vivos. Assim sendo, Constança Esteves faz questão de deixar cem libras a Catarina Esteves, uma de suas sobrinhas, casada com João Gil, alfaiate, a quem encontramos, em documento de 1373, em posse de casas a par da igreja de S. Bartolomeu, onde possivelmente residiam. A viúva também não esqueceria o sobrinho-neto, João, filho do casal, a quem deixa outras cem libras com destino louvável: “pera liuros E pera quem ho emsynarem (sic)”.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
Para quem decidisse rumar a norte, uma opção seria uma estreita rua que nascia no adro, em frente à porta lateral do templo, e que seguia para a freguesia de Santiago. Era a Rua dos Prazeres, atualmente denominada de beco, e que na Idade Média seria uma longa via pela qual também se tinha acesso ao atual Largo do Romal – então um terreiro de proporções desconhecidas – os dois espaços formando, nos séculos XIV e XV, uma espécie de bairro eclesiástico. É o que as fontes nos dão a entender, já que são abundantes, para estas datas, os testemunhos sobre clérigos na posse de casas nesta área, pertencentes, na maioria das vezes, ao cabido da igreja de São Bartolomeu.
Dissertação. Imagem nº 12 e 13: O adro de S. Bartolomeu, somente com a planta da igreja medieval. Destacado em vermelho, o casario medieval ainda existente na Rua Sargento-Mor / As casas medievais, no centro, vistas a partir do Adro de Cima, pg. 55
Dissertação. Imagem nº 14 e 15 – Em linhas negras, o provável perímetro ocupado por casas antes da construção da igreja barroca / Edifício medieval da Rua Sargento-mor, pg. 56
Era o caso de João Gomes, raçoeiro; João Domingues, capelão; Vasco Peres, prioste, e dois priores, Sancho Garcia e Raimundo Beltrães. Acerca deste último, algum tempo após sua morte surge nas fontes, executando seu testamento, o seu filho Diogo Beltrães, fruto de um relacionamento do prior com sua “servente”, Maria Anes, e aparentemente um dos muitos exemplos de filhos resultantes do concubinato no seio do clero português medieval.
Era vulgar na Idade Média que padres vivessem, temporária ou permanentemente, com amantes, pelo que a aparição de Diogo Beltrães em uma série de documentos lidando com os assuntos do pai é indício desta relativa normalidade. O problema de sua ilegitimidade, por sua vez, foi resolvido logo em 1400, quando teve seu nascimento legalizado por meio de uma carta de legitimação de D. João I e, em 1416, ao decidir que se manteria na posse, dentre outras propriedades, de uma casa na Rua dos Prazeres, até invocou o fato de a decisão ter sido tomada após um aparentemente custoso acordo entre seus irmãos, “por partirem dentre si grandes ódios e malquerenças e grandes custas e despesas que se sobr´ello podiam segir e segia e pera ficarem amigos”, indicando, assim, que talvez não fosse o único fruto da relação. Neste mesmo documento, aparece como raçoeiro de S. Cristóvão, o que comprova-nos, definitivamente, que seguira os passos do pai.
Sua mãe, porém, não teve o mesmo tratamento condescendente por parte dos clérigos de S. Bartolomeu. Não parece ter sido excomungada nem presa, como as leis da época o exigiam, mas, após a morte de Raimundo Beltrães, continuou a utilizar um cortinhal que este tinha de emprazamento, situado no Romal. A situação duraria pouco, e os cónegos logo reclamariam a devolução da propriedade, conseguida após processo judicial, muito embora seja mencionado que Maria Anes estaria disposta a apelar para Braga. Não sabemos se tal recurso terá surtido algum efeito.
Ainda acerca do Romal, sabemos que, para além de clérigos, na centúria de trezentos eram proprietários nos seus entornos, também, alfaiates, uma padeira e até mesmo tabeliães, caso de Martim Bravo e Vasco Afonso, bem como o escudeiro Diogo Álvares e João Esteves, escrivão dos contos do rei.
Ao atravessar o terreiro que constituía o Romal, chegar-se-ia então à Rua de S. Gião, onde a visão mais comum seria, certamente, a de ânforas e tonéis, manuseados e transportados por almocreves como Bartolomeu Martins, ali proprietário. Com efeito, mesmo ainda sem a designação atual de Rua das Azeiteiras, nela podemos identificar, segundo documentação dos séculos XIV e XV, uma primitiva concentração de lagares de azeite, produto que, em finais de trezentos, constituía a principal riqueza de Coimbra. Fernando Afonso, lavrador, e sua esposa, Margarida Domingues, até escambam, em 1375, duas jeiras de terra nos campos do Mondego por uma antiga casa térrea – chamada “Estrebaria da Rainha” – naquela via, com a intenção de nela montar um estabelecimento deste tipo.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
De volta à Portagem, após o pagamento dos devidos direitos, um viajante recém-chegado à cidade certamente optaria, ou seria recomendado, a seguir em direção às freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. Em um decreto de D. Fernando, datado de 1377, o rei acatava um pedido do concelho – decerto dando continuidade a um costume já existente – de que as estalagens se localizassem na área destas duas paróquias.
Dissertação. Imagem nº 4 e 5: Igreja de S. Bartolomeu localizada em uma vista de Coimbra, de 1855/ Provável representação da igreja de São Bartolomeu na vista de Coimbra de Pier Maria Baldi, 1669, pg. 38.
Uma rota possível em direção ao centro destas freguesias seria pela Ribeira – denominação medieval da área beira-rio situada na margem esquerda do Mondego – ladeando o famoso Arnado. Uma visão inevitável para quem por ali passasse seria a dos barcos ali estacionados. Sabemos, por exemplo, que na segunda metade do séc. XIV, os barqueiros Estácio Martins e André Vicente tinham propriedades nas proximidades, assim como, provavelmente, o pescador Vasco Paiola. André Vicente, especificamente, recebera de emprazamento um cortinhal na Ribeira ao qual Lourenço Martins, “Desbarbado” de alcunha, tinha renunciado. “Nom podia manter o dicto cortinhal porque era ja homem velho e pobre”, alegava.
Também próximo ao rio Mondego, abundariam os estabelecimentos mecânicos. Em toda zona da Ribeira e na Rua da Ponte, temos notícia da existência de lagares de azeite, pelames e alcaçarias, algumas destas últimas pertencentes à confraria dos Sapateiros.
Dissertação. Imagem nº 11: Em preto, o traçado presumido para a Rua da Ponte, em azul o para a “rua que vai para a ponte”, pg. 48.
Trabalhos duros e sujos, por vezes exalando cheiros incómodos, estariam situados junto ao Mondego não somente dada à necessidade ocasional do uso da água como força motriz, assim como pela facilidade de escoamento das impurezas geradas por tais atividades. Isto, conjugado com a proximidade à sota – canal de esgoto que atravessava a Ribeira de S. Bartolomeu, rumo ao rio, correndo provavelmente em vala aberta – e a natural imundície das ruas medievais resultaria, certamente, em um local desagradável e insalubre.
Tal situação, porém, não impedia que figuras de diversas camadas da população habitassem e fossem proprietários na região limítrofe ao rio. Sabemos que, próximo de uns lagares de azeite na Rua da Ponte, estavam as casas de Afonso Peres, porteiro do bispo. Confrontando com uma estrutura não identificada designada de Pedernedo, situada nesta via, estavam as casas de João de Alpoim e, na Rua da Sota, morou Vasco Martins, porteiro do concelho. Por fim, Martim Domingues, senhor do Hospital de Ceira, e Vasco Garcia, escudeiro, também detinham ali propriedades.
A Rua da Sota, segundo a hipótese que avançámos em nossa dissertação de mestrado, corresponderia, na Idade Média, à atual Rua dos Esteireiros e, portanto, desembocaria no adro da igreja de S. Bartolomeu. Centro nevrálgico da freguesia, aqui também encontrar-se-ia, caminhando por entre as campas que rodeavam o templo, entrando e saindo da igreja, ou simplesmente à porta de suas casas, indivíduos de extratos sociais diversificados. Em finais do séc. XII, temos notícia que ali teria propriedades o moedeiro e alvazil D. Telo, enquanto que, para o século XIV, chegam-nos testemunhos de clérigos ali residentes, como Gonçalo Peres, prior de Ceira e raçoeiro de S. Bartolomeu, assim como homens do rei, caso de Estácio Anes e Diogo Peres.
Porém, a maioria dos que habitavam nas imediações do adro parecem ser mesteirais, com a presença de alguns mercadores. Sobre os primeiros, as fontes falam-nos, para os séculos XIV e XV, sobretudo, em sapateiros, alfaiates e carpinteiros. Encontramos também uma oleira, Maria Peres, que deixou em testamento, à colegiada de S. Bartolomeu, as casas em que morava, situadas no local. Teria criado junto de si uma rapariga, de nome Catarina Carnes, a quem recompensou, juntamente com uma tal Constança, com uma casa em Cabo de Cavaleiros, “com esta condiçom que a dicta Costança ensigne a tecer a dicta Cathelina Carnes”. Por fim, fazendo jus a determinação outorgada por D. Fernando décadas antes, convém citar Gonçalo Seco, “estalageiro”, presente como testemunha, em finais de trezentos, em dois atos celebrados na igreja de S. Bartolomeu, indício de que talvez seu estabelecimento ficasse por perto.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
Freguesias de S. Bartolomeu e Santiago: sociedade e cotidiano
Quem chegava a Coimbra, vindo do sul, era obrigado a traspassar a sólida ponte de pedra sobre o Mondego, obra dos tempos de D. Afonso Henriques e que se constituía como a principal via de travessia do rio.
Ponte manuelina e Portagem
Ainda na sua margem esquerda, uma observação descomprometida já permitiria a um viajante reconhecer a organização da cidade.
No cume do morro, de desenho imponente, estaria a alcáçova, com o castelo a sua direita e, mais abaixo, uma grande muralha, dotada de altas torres, contornaria a elevação sobre a qual a cidade se erguia, separando a parte alta da parte baixa, esta situada na margem do rio, ladeada por um branco areal. À medida que se atravessava a ponte, um observador mais atento talvez reconhecesse, por entre o casario da Baixa, constituído em sua maioria por casas sobradadas, o topo da igreja de São Bartolomeu, cujo edifício medieval tinha a fachada orientada para sudoeste.
Dissertação. Imagem nº 3: Planta indicando a localização da igreja românica, pg. 37.
Transpondo a porta da torre na qual a ponte afonsina culminava, chegava-se à Portagem, situada no local onde se encontra o largo homónimo. Ali, exceto em época de feira franca, era necessário pagar por quaisquer mercadorias que se trouxesse de fora da cidade.
Portagem, meados séc, XIX
Em 1422, acompanhando este processo de pesagem e avaliação dos produtos poderia estar João Gonçalves. Tinha sido criado e porteiro “do muito honrrado dom Gil de boa memoria”, e residia na Rua de Coruche – atual Rua Visconde da Luz – território da antiga freguesia medieval de Santiago, com sua mulher, Maria Gil. Trabalhava, naquele momento, como portageiro, já que, juntamente com outros parceiros, tinha arrendado a portagem da cidade. O negócio, embora certamente rentável, causar-lhe-ia, no entanto, alguns problemas.
Como sabemos através das fontes, seu ofício obrigava-o a viver na arrecadação desta, onde morava durante a maior parte da semana, com exceção do domingo. Estando este edifício dentro dos limites da igreja de S. Bartolomeu, os seus cónegos fizeram uso deste argumento para lhe cobrar dízimas, contrariando o desejo do próprio João Gonçalves. Afinal, como é alegado na documentação, era em sua casa na Rua de Coruche que, juntamente com sua esposa, tinha todos os seus bens móveis, seu celeiro e adega, e onde guardavam seus animais; e era na igreja de Santiago, onde escutavam as missas, ouviam o canto litúrgico e participavam das festas. Como verdadeiros fregueses dela, era a esta que, justamente, queriam dar seu dízimo.
A contenda gerou um processo judicial de foro eclesiástico, que resultaria em uma sentença a favor de Santiago e de João Gonçalves. Foi certamente um alívio para o portageiro saber que poderia retribuir devidamente a quem, com aparente atenção, lhe dava apoio espiritual e participava ativamente do seu dia-dia. Para Santiago, porém, seria mais um dos seus inúmeros conflitos com a paróquia vizinha, fruto de um antagonismo que parecia existir já há algum tempo entre estas ricas e prestigiadas colegiadas. Prova disso é uma outra contenda, esta de 1349, por motivo do direito à dízima de Domingos Eanes, carpinteiro.
Na ocasião, este trazia emprazada uma almuinha do Mosteiro de Lorvão, situada “além da ponte”, logo, fora dos limites de qualquer paróquia da cidade. Domingos Eanes era freguês de Santiago e, um dia, juntamente com o dizimeiro desta, media o milho para determinar a quantidade que lhe devia entregar quando, subitamente, foram abordados por homens de S. Bartolomeu que, sem explicações, lhes tomaram a dízima violentamente.
O incidente gerou, também, uma sentença judicial, decidida a favor de Santiago e sustentada na evocação, por parte do juiz, do longínquo costume local de, caso a herdade não ser de outra igreja nem estar dentro dos limites de alguma paróquia, a dízima dever ser paga à colegiada de que se é freguês.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
No período final da reconquista, o Arrabalde já se afigurava como um polo de comércio e produção de alguma relevância, concentrado, sobretudo, na zona junto ao rio Mondego, área já relativamente urbanizada e que contava com a presença das importantes igrejas paroquiais de Santa Justa, Santiago e São Bartolomeu, e de antigos mosteiros. O papel desta zona, no entanto, era ainda meramente acessório, e seria somente com a perda de dinamismo na Almedina que alcançaria o protagonismo do qual gozou durante todo período tardo-medieval.
Dissertação. Imagem nº 10: Detalhe do desenho de Baldi, mostrando a zona ribeirinha das freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. A direita, ao fim da ponte, encontra-se a torre manuelina e a zona da Portagem, pg. 42
Desta maneira, e auxiliada também pela sua privilegiada situação geográfica face aos principais acessos à cidade, a Baixa converte-se, finalmente, no principal centro de produção e, principalmente, de comércio da urbe, servindo de terreno fértil e florescendo juntamente com a burguesia mercantil, grupo social então em franca ascensão. Em conformidade com este ambiente de prosperidade e vigor económico, a área torna-se foco principal das ações da municipalidade, o que contribuirá para o aparecimento, a partir de finais do séc. XIV, de novos elementos urbanísticos no local, como é o caso da Calçada, importante via calcetada de ligação entre a Portagem e a Porta da Almedina, documentada pela primeira vez em 1392, e a já referida Praça, juntamente com os equipamentos públicos que viriam a rodeá-la.
A partir desta pequena contextualização e aproveitando-nos de um dos capítulos de nossa tese de mestrado, exploremos mais profundamente o perfil socioeconómico das freguesias arrabaldinas de S. Bartolomeu e Santiago durante a Idade Média. Procuraremos expor, a partir de dados colhidos em documentação publicada e manuscrita, o cotidiano de quem habitava o local, identificando os principais personagens e as atividades económicas que dominariam a paisagem desta zona de extramuros, focando-nos, especialmente, nos últimos séculos da Idade Média, para os quais a informação é-nos mais abundante. Assim, seguindo uma rota pelas principais ruas e bairros das ditas freguesias – representadas no mapa a seguir –, reconstituamos as possíveis cenas e visões presenciadas por quem, no período medieval, vagueasse pela área.
Coimbra Medieval: Ruas e equipamentos urbanos. Mapa adaptado do presente em Augusto, Octávio – A Praça de Coimbra e a afirmação da Baixa…, Anexo I, pg. 170-176
Legenda: 1 – Praça, 2 – Porta da Almedina e traçado aproximado da muralha, 3 – Ponte Afonsina sobre o Mondego, 4 – Largo da Portagem, 5 – Traçado presumido da Rua da Ponte, 6 – Rua da Sota, 7 – Adro de S. Bartolomeu, 8 – Rua dos Prazeres, 9 – Romal, 10 – Rua de S. Gião, 11 – Possível Rua dos Peliteiros, 12 – Rua Olho do Lobo, 13 – Rua dos Tanoeiros, 14 – Escada, 15 – Rua de Coruche, 16 – Calçada (Rua dos Francos), 17 – Adro de Santiago. a – Igreja de S. Bartolomeu, b – Igreja de Santiago, c – Hospital de Santa Maria de S. Bartolomeu, d – Casas do prior do Hospital e Marechal do Rei, e – Pelourinho, f – Açougues.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
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