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A adaptação do Convento a quartel motivou, como não podia deixar de ser, as alterações arquiteturais que melhor dispusessem o edifício às finalidades que se pretendiam.
.… Como é afirmado no Inventário Artístico de Portugal “A remodelação do edifício monástico para o fim de aquartelamento regimental, se transformou a orgânica primitiva das celas bem como as janelas, conservou a carcaça das paredes que delimitávamos dormitórios e que representam o esquema geral monástico”.
…. Extinto o Convento de Sant’Ana, com a saída da última freira para o Colégio Ursulino, a propriedade, com exclusão da igreja e da cerca, foi entregue ao Ministério da Guerra tendo como finalidade a sua ocupação pelo Regimento de Infantaria 23. Este Regimento, embora referenciado em Coimbra desde 1884, estava aquartelado em condições precárias no Colégio da Graça.
…. Data de 1892 o primeiro projeto de adaptação do Convento a Quartel, que se conhece, visando a instalação de um Destacamento de Cavalaria.
Planta do rés-do-chão – zona das hospedarias, 1892, DSE – 6844 2.º-5-64-73. Op. cit. pg. 96
Neste projeto, assinado pelo Ten. Eng.º João Maria de Aguiar, podem-se observar a divisória central que separava os dois pátios em que se articulava a ala das hospedarias, e parte do corpo central que separava os dois claustros da parte conventual.
…. Só em 1905, é que a Secretaria da Guerra manda adaptar o extinto convento de Santa’Ana a quartel, para “um Regimento de Infantaria, um Destacamento de Cavalaria, um Distrito de Recrutamento e Reserva e uma Caserna Militar. E só em 3 de outubro de 1911 é que o Regimento de Infantaria 23, primeira Unidade Militar de Infantaria aqui sedeada, ocupou formalmente o edifício.
…. Mas é a 21 de maio de 1905, que é apresentado o primeiro projeto (conhecido) para Quartel de Infantaria.
Projeto de quartel de infantaria. Op. cit., pg. 101
…. Os trabalhos de adaptação foram iniciados em dezembro de 1905 e interrompidos, logo a seguir, em 15 de janeiro do ano seguinte …. São retomadas a nove de abril de 1911, com base num novo projeto mais abrangente onde, pela primeira vez, surge a proposta de uma alteração importante da fachada.
Fachada norte – Projeto final, DSE. Op. cit. pg. 109
…. O RI 23 foi a primeira unidade a ocupar as antigas instalações do Convento de Santa’Ana … Um mês depois da sua transferência para o Funchal em 1926, as instalações foram ocupadas pelo Batalhão de Caçadores 10 que, no processo absorveu o Regimento de Infantaria 35 e o 5.º Grupo de Metralhadoras, ambos sedeados em Coimbra desde 1911 (este último ocupando instalações no Quartel de Sant’Ana desde 1924).
Com a extinção do Batalhão de Caçadores 10, em 1927, o quartel foi, de imediato, ocupado pelo Batalhão de Metralhadora n.º 2 que o substituiu e por aqui permaneceu até à sua transferência para a Figueira da Foz … é determinada a entrega das instalações ao Regimento de Infantaria 12, que aqui permanecerá durante 26 anos, até à sua extinção formal em 1965.
O Distrito de Recrutamento e Mobilização n.º 12 … é transferido para Coimbra em 1939, ocupando 10 compartimentos do Convento de Santa’Ana.
Fachada Norte – Foto da atualidade. Op. cit., pg. 112
No período entre 20 de abril de 1979 e 19 de junho de 1997, instalou-se também no Quartel a Manutenção Militar …. Tendo recebido as instalações do Quartel-General da Região Militar Centro a Manutenção Militar acabaria por devolvê-las ao Quartel-General da Brigada Ligeira de Intervenção, depois deste ter ocupado o Convento/Quartel de Sant’Ana … a partir de sete de junho de 1993.
Ferreira, J.M.V. e Caldeira, J.R.M. Sant’Anna. Três séculos de Convento, um século de Quartel. 2.ª edição. 2006. Coimbra, Câmara Municipal.
Nesta entrada e na seguinte, divulgamos um texto que nos permite conhecer o percurso deste cenóbio desde a sua construção até à sua transformação numa unidade militar.
Trata-se da obra Sant’Anna. Três séculos de Convento, um século de Quartel, da autoria de dois militares que ali prestaram serviço, o Coronel Jorge Manuel Vieira Alves Ferreira e o Major-General José Romão Mourato Caldeira.
Sant’Anna. Três séculos de Convento, um século de Quartel. Op. cit., capa
A fundação do Mosteiro nasce do empenho de uma religiosa do Mosteiro de S. João das Donas de Santa Cruz, chamada D. Joana Pais. Sendo muito devota da Santa Ana … decidiu fundar-lhe um mosteiro numas casas e vinha de que era legítima proprietária por herança.
… A origem da sua fundação e, em particular, da natureza das suas primeiras ocupantes, confunde-se com o fenómeno das “emparedadas”… que consistia numa forma de penitência particular em que certas devotas, para expiar faltas cometidas ou na esperança de altas recompensas após a morte, decidiam privar-se de todos os bens e esperanças da vida secular e se fechavam no interior de pequenas celas (apenas do amanho indispensável) … as devotas faziam-se entaipar entre quatro paredes, enterrando-se em vida, mandando fechar a pedra e cal a porta … eram alimentadas por uma pequena fresta.
… De todas as “emparedadas” parece que as mais antigas teriam sido as “d’a par da ponte” de Coimbra.
A prática terá tido começo nos inícios do século XII e sobre ela se encontram ainda referências no século XV.
… Confirmada pela história a existências das “emparedadas” e o rigor da sua penitência, fica por esclarecer de que modo influíram na origem do primitivo Convento … velho de Sant’Ana “d’A par da ponte” (fundado no último quartel do século XII).
… Cerca de cem anos após a conclusão do edifício, começaram as religiosas a experimentar grandes prejuízos e incómodos devido às grandes inundações do convento, provocadas pelo progressivo assoreamento do rio Mondego. O fenómeno de elevação do nível das águas foi tal que, no final, não ficaram vestígios da construção.
… A doação da quinta de S. Martinho, feita por D. João Soares em 1561, para nela se recolherem as freiras que … viviam ainda nessa altura, no mosteiro velho a montante da ponte.
Quinta de S. Martinho. In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg. 20.
Embora a quinta de S. Martinho não tivesse condições para uma permanência de longa duração, as freiras ali se instalaram até que o bispo D. Afonso de Castelo Branco lhes mandasse construir o novo edifício do mosteiro, no sítio denominado Eira das Patas.
Tumulo de D. Afonso Castelo Branco, na Sé Velha de Coimbra [inicialmente na capela-mor da igreja do Convento de Santa’Ana} In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg. 19.
…. Nove anos e meio durou a construção do Convento desde que, a 23 de junho de 1600, fora lançada a primeira pedra, pelo Bispo-Conde D. Afonso Castelo Branco, até à entrada definitiva … ali permaneceram as freiras de Santa Ana até aos conturbados tempos de 1832-34.
… O final das guerras liberais … conduziram ao decreto de extinção das Ordens Religiosas.
… Foi consentido que o convento continuasse como tal enquanto fosse viva a última freira … Esta circunstância só não ocorreu porque a seis de junho de 1885 … optou por se recolher … no Colégio Ursulino, hoje Hospital Militar Regional n.º 2.
A … Fazenda Nacional … por despacho de 13 de agosto do mesmo ano, o cede juntamente com a respetiva cerca ao Ministério da Guerra, para ser transformado em quartel e aqui se estabelecer, juntamente com o Regimento Infantaria 23, um Departamento de Cavalaria.
Ferreira, J.M.V. e Caldeira, J.R.M. Sant’Anna. Três séculos de Convento, um século de Quartel. 2.ª edição. 2006. Coimbra, Câmara Municipal.
Com a série de cinco entradas que hoje iniciamos chamamos a atenção dos leitores para o trabalho de investigação intitulado Comer e curar no Convento de Santa Ana de Coimbra (1859 a 1871), da autoria da Dr.ª Dina de Sousa.
O Convento de Santa Ana
O primitivo convento situava-se na margem esquerda do Mondego, próximo de um local vulgarmente designado por “Ó da Ponte”. Então conhecido por “Cellas da Ponte”, teve como grande impulsionadora D. Joana Pais, devota de Santa Ana, que fundou o convento numas casas e respetiva quinta que recebera por doação de seus pais, tendo sido aí colocada a primeira pedra a 26 de Julho no ano de 1174, precisamente no dia consagrado a Santa Ana. Devido aos seus parcos recursos, o convento ficou dependente dos bispos de Coimbra, que o sustentavam através das suas esmolas.
Um século após a edificação do convento, “(...) por causa das cheias do Rio Mondego com as quais o dito Convento estava devastado e as ditas freiras por muitas vezes estiveram em perigo de vida”, tornou-se insustentável a continuidade da comunidade naquele espaço.
Coimbra no final do sec. XVI, ruínas das “Cellas da Ponte”. Pormenor da gravura de Coimbra, de Hoefnagel
No “anno de 1561, em que as sucessoras de D. Joanna viram não poder elle continuar a ser habitado”, recorreram ao bispo D. João Soares, tendo-lhes sido feita doação da Quinta de S. Martinho para nela se recolherem, até ser construído um novo edifício.
Quinta de S. Martinho (Vestígios do Convento). In: «Sant’Ana. Três séculos de convento, um século de quartel», pg. 20.
Este seria mandado edificar pelo bispo–conde D. Afonso de Castelo Branco, situado no local outrora conhecido por Eira das Patas, numa colina fronteira à cerca de São Bento e ao aqueduto. O seu domínio estendia-se até ao atual Penedo da Saudade. A 13 de Fevereiro de 1610, as religiosas ingressam no novo convento de Santa Ana, passando a usar o hábito das Eremitas de Santo Agostinho.
Refira-se que esta comunidade acolheu a jovem Josefa de Óbidos. Além dos ensinamentos religiosos, ali recebeu aulas de pintura. Assim, foi nesta cidade que Josefa começou a pintar, pois, parece que a sua obra mais antiga data de 1644, uma série de gravuras de Santa Catarina e São José. Como não seguiu a vida religiosa regressou a Óbidos, em 1653, trabalhando para conventos e igrejas. Mais tarde, foi convidada pela família Real, para fazer os retratos da rainha D. Maria Francisca de Saboia e da sua filha, a infanta D. Isabel.
Josefa de Óbidos. Santa M aria Madalena.1650. Museu Nacional de Machado de Castro. Imagem acedida em:https://www.wikiart.org/pt/josefa-de-obidos/santa-maria-madalena-1650
Josefa de Óbidos, A Anunciação, 1676. Imagem acedida em: https://ilustracaoportugueza.wordpress.com/2016/08/15/josefa-de-obidos-a-anunciacao-1676/
Tal como aconteceu em outros espaços monásticos, em 1810, as religiosas perderam muitos dos seus bens, devido às Invasões Francesas. Poucos anos depois, as guerras liberais vieram agravar a sua frágil situação económica, no contexto da extinção das ordens religiosas masculinas, em 1834. Assim, as ordens femininas ficaram proibidas de receber noviças, pelo que se regista um envelhecimento da comunidade, necessitando de mais cuidados.
O convento é considerado extinto a 6 de Junho de 1885, altura em que a última prelada, D. Maria José de Carvalho, de idade já avançada, e desprovida de bens económicos, abandona Santa Ana, juntamente com mais algumas idosas que com ela viviam, na sua maioria criadas e encostadas. Consigo levou apenas alguns objetos como recordação de um espaço no qual entrara quando tinha sete anos de idade. A sua mudança dá-se para o Real Colégio Ursulino das Chagas, instalado no extinto Colégio de S. José dos Marianos.
Colégio de S. José dos Marianos, atual Hospital Militar
O edifício conventual patenteia uma arquitetura modesta, bem ao espírito dos Eremitas de Santo Agostinho, valorizando a sua fachada dois pórticos que, entretanto, foram retirados e que hoje estão, respetivamente, na Igreja de S. João de Almedina
Pórtico do Convento de Santa Ana, aplicado na Igreja de S. João de Almedina. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&mediaurl=https%3A%2F%2Fimages...
e na fachada do Museu Machado de Castro.
Pórtico do Convento de Santa Ana, aplicado na entrada do Museu Nacional Machado de Castro. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&mediaurl=https …
De estrutura quadrangular, desenvolvida em torno de dois claustros e de dois pátios internos, na sua primitiva construção, no piso térreo encontrava-se a entrada para a Igreja e para o pátio das hospedarias, a roda e as grades, o refeitório, a cozinha e a casa da botica. Existiam outras dependências: casas para criados, celeiro, forno, duas arrecadações e a cerca amuralhada que abrangia a entrada do Penedo da Saudade.
No primeiro andar situavam-se os dormitórios, a casa do noviciado e as enfermarias.
Sousa, D. Comer e curar no Convento de Santa Ana de Coimbra (1859 a 1871). Texto acedido em: https://www.academia.edu/116755957/Comer_e_curar_no_Convento_de_Santa_Ana_de_Coimbra_1859_a_1871_?email_work_card=title
Com esta entrada terminamos a divulgação do trabalho do Doutor Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, sobre o período fundacional do Mosteiro de Santa Cruz. Texto que, em no nosso entender, interessa não só pelo seu conteúdo, bem como pela curiosidade do seu autor ser um académico brasileiro.
Famílias nobiliárquicas coimbrãs também contribuíram para o crescimento patrimonial experimentado por Santa Cruz de Coimbra até 1162, por meio de doações, vendas ou testamentos feitos à Comunidade agostiniana. Dois fatores se destacam para refletir sobre tal fenômeno: um relacionado a um possível caráter simbólico que o mosteiro pudesse ter no período; e outro, aos efeitos práticos que as transferências traziam ao patrimônio particular.
S. Teotónio. Viseu. Imagem acedida em https://diocesedeviseu.pt/padroeiro/
Na presença de D. Afonso Henriques, São Teotónio lança os hábitos a novos cónegos regrantes de Santa Cruz de Coimbra. Viseu. Imagem acedida em https://diocesedeviseu.pt/padroeiro/
Na primeira questão, a possível representação que a própria casa monacal pudesse ter para a nobreza coimbrã estaria associada a uma supremacia espiritual simbólica que, em meio ao grupo social, ela deteria face à organização paroquial. Enquanto esta estaria voltada ao serviço terreno dos cristãos, isto é, “ao Povo de Deus que caminha penosamente nesta terra”, a outra, estava relacionada ao anúncio profético do paraíso; distanciava-se da pugna vinculada ao plano terreno. Por conseguinte, dado a significação que uma apresentava frente à outra, a supremacia espiritual do mosteiro frente aos demais e sua transcendência teriam atraído a atenção nobiliárquica de Coimbra. Conforme salienta Mattoso, [...] o mosteiro, com a sua comunidade permanente, que desafia os séculos e as vicissitudes deste mundo, representa também a própria eternidade e é, portanto, uma garantia da permanência da família. Ligada a um mosteiro, ela não só será fecunda, não só se reproduzirá [...], nível da honra alcançada e os poderes que a assemelham ao próprio Deus ou aos seus Santos.
Nesse sentido, identificando no monaquismo um caminho de acesso ao sagrado, cuja proximidade ao plano divino encontrava seu sentido na vida austera, as famílias coimbrãs provavelmente viram no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra uma via de promoção de sua própria condição espiritual.
A segunda questão, diz respeito aos efeitos práticos que a transferência trazia aos bens associados. Se na primeira linha interpretativa, a partir da reflexão conduzida por Mattoso, a importância da doação se estabelece em virtude de um interesse que
transcendia a questão material, se apoiando exclusivamente nos resultados mais abstratos do termo, isto é, no âmbito espiritual, aqui, a importância se faz mais imediata, concreta, ou seja, se alicerça no plano terreno.
O prestígio e poder que, gradativamente, o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra teria conseguido ao longo do tempo, fruto, como vimos, do vínculo que mantinha com Afonso Henriques e seus associados, além do próprio apoio papal, teria aumentado sua capacidade de proteção em relação ao patrimônio que detinha.
Este dado teria, consequentemente, garantido a força combativa do exército portucalense quando sob ameaça, formando, assim, um conjunto institucional pouco suscetível às instabilidades oriundas de um período marcado pelos constantes conflitos. Nesse panorama, famílias dotadas de patrimónios significativos, cuja efetiva ação para defendê-los se encontrava enfraquecida ou inexistente, veriam na associação ao Mosteiro, seja em momentos conflituosos ou não, uma forma de verem garantidas a proteção e manutenção dos bens dos quais dispunham.
Das anotações relativas a Testamentos, Cartas de doações e de vendas à Santa Cruz de Coimbra constantes no Livro de D. João Teotónio, por exemplo, é indiscutível que as décadas de 60 e 70 do século XII são as que em maior volume dão mostra das aquisições por parte do Mosteiro. Portanto, período de priorado de D. João Teotónio (1162-1181).
Não seria diferente, dado a possibilidade de ter por incentivo o avanço almóada que se fazia presente no último quartel do século XII em território portucalense. Com isso, cabe salientar também, em paralelo, o próprio incentivo promovido pelo segundo prior, atraindo para os crúzios considerável número de doações e testamentos, aumentando assim o patrimônio material do Mosteiro.
De facto, foi com ele [D. João Teotonio] que, desde 1152, se fomentou a partir das doações feitas um patrimônio que organizado viria a dispor de rendas próprias que permitiram ampliar instalações e adequá-las à medida da procura crescente.
O crescimento e expansão experimentados pela Comunidade agostiniana entre 1132 e 1162 caracterizaram essa primeira etapa de vida do Mosteiro.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
No texto que ora transcrevemos sobre a investigação de Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, continua a debruçar-se sobre as circunstâncias do período inicial do Mosteiro de Santa Cruz.
Durante o priorado de D. Teotónio, concessões de naturezas variadas teriam sido feitas por parte do Infante ao Mosteiro, aumentando-lhe assim tanto o património particular do qual dispôs nesta primeira etapa, quanto às zonas de influência sobre o Condado Portucalense: “[...] o rei lhe concedeu muitos dos bens que aí tinha, tanto móveis como imóveis, enriqueceu o local, confirmou todos os bens do mosteiro, tanto de dentro como de fora, e ao confirmá-los coutou-os”.
S.Teotónio, monumento em Valença. Imagem acedida em https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&ccid=73TXSsPF&id=...
S. Teotónio, monumento em Viseu. Imagem acedida em https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&ccid=73TXSsPF&id=...
…. Dentre as concessões feitas por Afonso Henriques ao Mosteiro regrante, destacamos os coutos que, nos primeiros anos da canónica, teriam composto um conjunto patrimonial significativo. Nesse sentido, tornamos evidente, por exemplo, o couto de São Romão de Seia, de dezembro de 1138; o couto feito a um barco de pesca, de março de 1139; o couto da vila de Gouveia, de novembro de 1140; o couto de parte das vilas de Quiaios e Emide, além de toda a de Lavos, de junho de 1143; o couto de todos os homens e herdades de Santa Cruz, de julho de 1146.
…. O mosteiro de Santa Cruz, ao demonstrar, em certa medida, alinhamento aos interesses defendidos pela Sé romana, obtendo dela o devido reconhecimento e se colocando em direta subordinação, teria exercido no Ocidente peninsular um papel concentrador e difusor das orientações provenientes de Roma. Como agente disseminador dos interesses românicos, trazia para a lógica de organização social o próprio discurso cristão, e para o corpo eclesial, o enquadramento esperado e o referencial de conduta moral estabelecido na base apostólica. Com isso, teria garantido para si o beneplácito da Sé de Pedro para o desenvolvimento de suas atividades, tendo assegurado tanto privilégios quanto a expressiva proteção papal.
O facto de uma rede crescente de paróquias serem fundadas ou ficarem sob a orientação direta do mosteiro de Santa Cruz, que se afirmava isento do poder episcopal, protegido e imediatamente dependente da Sé Apostólica iria contribuir para consolidar o seu próprio processo de isenção [...]. Era igualmente um poderoso meio de a instituição regrante mais se afirmar junto da autoridade episcopal, através do exercício da sua própria jurisdição, e na sociedade em que se situava.
A título de exemplo dos privilégios recebidos, destacamos: a bula «Ad hoc universalis», de abril de 1144, na qual Lúcio II teria confirmado os bens e direitos recebidos pelo Mosteiro, dentre eles os sobre as igrejas de São Romão de Seia, São João de Santa Cruz, Quiaios, Mira, Travanca, etc., isentando-os de dízimo, sem com isso alienar os direitos da diocese.
Papa, Lucio II. Imagem acedida em: https://www.google.pt/search?q=lucio+ii+papa...
Todos repetidos e confirmados por Eugénio III por meio da bula «Apostolica Sedis», de setembro de 1148. O cardeal Jacinto, com a bula «Oficii nostri», de novembro de 1154, além de confirmar as concessões anteriores, teria acrescentado outras novas qual seja, a livre eleição do superior da comunidade regrante e o direito de sepultura. Já Adriano IV, por meio da bula Ad hoc universalis, de agosto de 1157, para além de manter as confirmações já feitas, também a exerce às igrejas do castelo de Leiria e de Taveiro, entre outros.
Um dos pontos que nos chama a atenção nos privilégios eclesiásticos é o da necessidade de uma confirmação contínua das concessões reais ao Mosteiro. Ou seja, mesmo já tendo obtido o devido reconhecimento por parte da Igreja romana, esta consideração parece não garantir um inquestionado direito aos Regrantes sem que passasse por nova confirmação. Era também uma forma de manter, por parte do papado, um controle dos bens adquiridos pelo Mosteiro em um determinado espaço de tempo.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
Terceira de cinco entradas sobre o trabalho do Doutor Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira que vimos divulgando.
É interessante perceber o silêncio que a Vita Sancti Theotonii faz desse período de tensões. De acordo com a obra, omitindo qualquer conflito, menciona que o corpo fundacional do Mosteiro estaria firmado na autoridade de Afonso Henriques e do «uenerabilis» bispo de Coimbra Bernardo. Partindo desta divergência entre os escritos, é razoável trabalhar com a hipótese de a Vita teotoniana, produzida em data posterior à Vita Tellonis, em 1162-63, intentar esvaziar do discurso narrativo possíveis tensões existentes na fase inicial da canónica crúzia, dado a proximidade existente entre ambas no momento de produção da obra. Em data anterior, 1154-55, em virtude do recente período de atrito verificado, e/ou por possíveis interesses que fogem ao nosso entendimento agora, Pedro Alfarde teria achado por bem mencioná-los em sua obra.
Igreja de Santa Cruz, interior na segunda metade do séc. XIX, Acervo RA
A ida de D. Telo e seus associados imediatos ao papado para solicitar a isenção teria, no raciocínio de Erdmann, também trazido frutos ao bispado coimbrão, tendo o Pontífice concedido a proteção da Santa Sé à comunidade, face os interesses compostelanos. Em troca, segundo o autor, o Vigário teria pedido ao Infante uma proteção especial em favor de Santa Cruz de Coimbra.
…. Nos primeiros anos da Canónica agostiniana, a busca por material escrito que servisse às necessidades religiosas do Mosteiro também teria sido uma das iniciativas tomadas pelo corpo fundador. “Telo e os seus companheiros, ao reunirem-se em comunidade, tinham necessariamente de prover à constituição de uma biblioteca que permitisse responder às obrigações da vida regrante [...]”. O mosteiro franco de São Rufo de Avinhão, neste particular, teria sido um dos contribuintes iniciais para a constituição do património escrito da canónica agostiniana. Dele teria vindo, para além da própria inspiração da vida regular, o «Ordinário» (Liber Ordinis, de Letberto), o «Capitulário», «Antifonário», comentários bíblicos de Agostinho de Hipona (sobre o Génesis, João, Mateus e Lucas) e Ambrósio (o Exameron e o De Penitentia), a «Regula Pastoralis de Gregório Magno e um comentário de Beda, o Venerável, sobre Lucas.
Igreja de São Rufo de Avinhão. Na atualidade. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/w/index.phpsearch=igreja+de+S%C3%A3o+Rufo+de+Avinh%C3%A3o&title=Especial:Pesquisar&ns0=1&quickView=Arquidiocese+de+Avinh%C3%A3o
Desta forma, ao longo de três etapas de contactos com o mosteiro que lhes servia de modelo, em 1135, 1136-1137 e 1139-1140, Santa Cruz adquiria os textos das regras, constituições, diretórios litúrgicos e doutrinas patrísticas que lhe permitiam completar, internamente, a sua estruturação e conduzir a sua orientação doutrinal. À fundação do «armarium», acrescentava-se este importante núcleo do que mais tarde haveria de ser a sua livraria.
Com isso, ao que tudo indica, a primeira década de vida do Mosteiro seria marcada pela aquisição de um patrimônio teológico-literário que, mesmo ainda incipiente, foi suficiente para o desenvolvimento das atividades iniciais da Casa regrante. Este, progressivamente, teria aumentado durante o priorado de D. Teotónio (1132-1162), fruto também da própria hipertrofia sofrida pela comunidade crúzia no período, que teria expandido sua órbita de influência e, consequentemente, a capacidade de aquisição e a necessidade de produção de novas obras.
Para esse crescimento exponencial, teria concorrido uma série de fatores, dentre os quais damos mais destaque aos possíveis interesses nutridos e consequente intervenção da monarquia Portucalense na dinâmica dos Regrantes agostinianos, das famílias nobiliárquicas de Coimbra e da própria Sé Apostólica.
No que diz respeito a Afonso Henriques, a transferência feita em 1131 da sede administrativa da cidade de Guimarães para Coimbra, efetuada no mesmo ano de fundação do mosteiro de Santa Cruz, dão indícios de uma iniciativa não desinteressada.
Afonso Henriques. Imagem acedida em https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_Henriques
…. Afonso Henriques teria encontrado na cidade de Coimbra o ambiente favorável para poder exercer suas ações com mais liberdade face à condição sob a qual se encontrava em Guimarães. A possibilidade de desempenhar maior capacidade de decisão política, entre outros, surgia como atrativo, frente ao que, sob as limitações da própria lógica de organização local, encontrara no entre Minho e Douro. No Mondego, também, se colocaria em posição geográfica mais estratégica para melhor empreender seus avanços militares e veria reconhecido, pela aristocracia regional, seu papel de proeminência.
…. Em linhas gerais, a Casa crúzia viria em auxílio, como agente legitimador, através do discurso cristão, às investidas militares do monarca portucalense contra os “inimigos” da Sé Apostólica. Assim, ao passo que o exército afonsino avançava sobre seus “oponentes”, o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra garantia - discursivamente - o apoio divino nas batalhas.
…. É este o intento que a literatura coimbrã da segunda metade do século XII parece querer transmitir. De acordo com a «Chronica Gottorvm», por exemplo, escrita no final do século XII,
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
Prosseguimos na divulgação do estudo do académico brasileiro Doutor Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, sobre a problemática da construção do Mosteiro de Santa Cruz e do papel fundamental de S. Teotónio no seu desenvolvimento inicial.
A partir do que a documentação nos permite perceber e do que a historiografia frequentemente destaca, a primeira década de vida da canónica crúzia foi marcada pelas transformações que teriam estabelecido os alicerces da experiência regrante no Condado.
Pensamos ter sido, esta, tanto uma fase em que o Mosteiro buscaria dissociar-se em relação ao bispado local, quanto de estruturação da base sobre a qual a conduta moral dos cónegos se assentaria, sendo para ela buscados os mais diversos referenciais.
Em relação ao bispado coimbrão, salienta Morujão que «Almost immediately a tense relationship developed between the monastery and the see, since the monastery had been founded by clerymen who had abandoned the cathedral chapter to join the new institution and consequently the Crucians tried to evade the episcopal authority».
A necessidade de desvinculação em relação ao bispado teria como raiz, segundo a «Vita Tellonis», a oposição levantada pela diocese, que exigia a confeção em seu favor de um testamento tanto do local quanto do Mosteiro, isto é, que o lançasse como património diocesano. Com isso, vendo a possibilidade de ter sua liberdade cerceada, mantendo-se sob a tutela do bispo local, D. Telo e seus companheiros teriam recorrido à Santa Sé.
Nessa iniciativa, teriam eles buscado o reconhecimento fundacional da Comunidade, bem como a devida proteção face o episcopado coimbrão, gerando assim, de Inocêncio II, em 1135, três bulas: a Desiderium quod, que garantia o amparo da Sé Apostólica ao Mosteiro; a Quod personam e a In Beati Petri cathedra, as quais recomendavam tanto a Afonso Henriques quanto ao bispo de Coimbra os cónegos crúzios. Segundo a Vita Tellonis faz notar, seria a partir de tais disposições que o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra teria conquistado a isenção em relação ao bispo da cidade, estando, assim, diretamente subordinado à Sé romana.
Inocêncio II, papa. Detalhe de um mosaico na basílica de Santa Maria em Trastevere de Roma (c. séc. XII). Imagem acedida em https://es.wikipedia.org/wiki/Inocencio_II
A controvérsia entre D. Bernardo, bispo de Coimbra, e a Comunidade de cónegos regrantes de Santo Agostinho, para além das questões antes citadas, teria se estendido também sobre outros assuntos. De acordo com o que narra Pedro Alfarde sobre o supracitado bispo, ele vendia bens eclesiásticos às escondidas, motivo pelo qual os Regrantes teriam se recusado a serem ordenados por ele. Tal desconfiança, prossegue o autor, teria levado os cónegos a solicitarem a presença do arcebispo de Braga, D. João Peculiar (1138 – 1175), para promover a ordenação. Como resultado, D. Bernardo, [...] tomado de fúria insana, contra as determinações em contrário, procurava impedir os fiéis [sic] que podia de nos entregarem [ao mosteiro de Santa Cruz de Coimbra] benefícios, quer nas coisas eclesiásticas que acaso possuíssem quer no direito civil. Por isso, até algumas das nossas igrejas reteve para si durante bastante tempo [...].
Livro Santo começado no ano de 1155 que contem entre outras a transcrição da Vita Tellonis. Acedido em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4614123
…. Em linhas gerais, a contenda mais incisiva envolvendo a diocese coimbrã e o mosteiro de Santa Cruz teria durado, pelo menos, até que dois bispos, questionados pelas suas condutas, deixassem de ocupar seus cargos: o já citado D. Bernardo, que morrera em 1146, e seu sucessor, D. João Anaia (1147-1155), cuja demissão fora forçada em 1155.
Mosteiro de S. Cruz, claustro do Silêncio, tumulo de D. Miguel Pais Salomão. Imagem acedida em: https://en.wikipedia.org/wiki/Miguel_Pais_Salom%C3%A3o#/media/File:Tomb_-_Cloisters_-_Mosteiro_de_Santa_Cruz_-_Coimbra,_Portugal_-_DSC09710.jpg
Após este período, o bispado teria ficado vacante por sete anos até que um regrante crúzio, D. Miguel Pais Salomão (1162-1176), o ocupasse.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em: https://www.academia.edu/38218646/A_CIDADE_DE_COIMBRA_E_O_MOSTEIRO_DE_SANTA ...
Esta e as subsequentes entradas, têm a curiosidade de serem extraídas de um estudo do historiador brasileiro, Jonathas Ribeiro dos Santos Campos de Oliveira, Doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual se debruça sobre a problemática da construção do Mosteiro de Santa Cruz e do papel fundamental de S. Teotónio na concretização desse projeto de tanta relevância não só para a Cidade, mas também para a consolidação do País que somos.
De acordo com a Vita [Vita Tellonis, de Pedro Alfardo] no ano de 1131 da Incarnação do Senhor [...], o arcediago Telo, agregando a si uma falange de homens de primeiro plano em número igual ao dos doze Apóstolos, começou a lançar os fundamentos do mosteiro de Santa Cruz nos arrabaldes de Coimbra.
A comunidade foi estabelecida extramuros da cidade, no lugar conhecido como “Banhos Régios”, próxima ao que fora a judiaria.
Mosteiro de Santa Cruz,. Hoefnagel. 1598. Pormenor
Conforme a narrativa, D. Telo, após alguma procura, teria conseguido o local de fundação a partir de uma troca feita por Afonso Henriques, em troca de uma sela de propriedade do clérigo.
Chegou, pois, o tempo de Deus decidir dar cumprimento ao voto formulado pelo presbítero. Comprara ele [D. Telo], casualmente, mas não sem intervenção de Deus, em Montpellier, uma sela, tal é o termo em língua vulgar, que era muito bem trabalhada e era mais que excelente para montar a cavalo. Certo dia, em que o arcediago seguia montado numa mula pela porta de Coimbra e caminhava como habitualmente pela rua Régia aperceberam-se dela os cortesãos que notaram o seu bom recorte. Alguém de entre os conselheiros deteve a atenção na sua elegância e propôs ao Infante que pedisse ao arcediago para lhe dar. Sem demora, satisfaz ele o pedido, sugerindo em troca a oferta dos Banhos Régios ao fundo da Judiaria.
…. [Na] Carta de couto a Paio Guterres (cabalo, praetio e vaso de planta), no fragmento em que faz a doação dos Banhos Régios, menção alguma é feita à sela.
…. a carência documental da qual dispomos e/ou de estudos que nos permita desenvolver melhor essa possibilidade, encerram em seu posicionamento a nossa opinião.
…. Tendo sido preterido na sucessão episcopal, D. Telo, algum tempo depois, teria encontrado ambiente favorável às suas pretensões após receber a já referida doação, por parte de Afonso Henriques, da área denominada de “Banhos Régios”. Ele também, segundo a obra, comprou do bispado um horto nas proximidades, local este que dispunha de uma fonte.
Vale salientar que o intento fundador de D. Telo não se fizera sem que houvesse para tal opositores. A iniciativa de fundar uma comunidade regrante, tendo como referencial a vida apostólica, teria, no período, alimentado uma crescente rivalidade com os membros do cabido de Coimbra.
…. Assim, a 28 de junho de 1131, após ter conquistado um espaço propício e ter reunido determinado número de adeptos à proposta, nos arredores da cidade de Coimbra, teria sido fundado o mosteiro de Santa Cruz. A arquitetura, baseada nos moldes românicos, teria ficado a cargo de mestre Roberto, um franco de Auvergne, que trouxe inovações estruturais, inaugurando aquilo que os historiadores chamam de “segundo período do românico coimbrão do século XII”.
Torre de S. Cruz. Acervo RA
Igreja de S. Cruz, interior. Imagem João Santos, acedid em www.facebook.com/jpphoto
Iniciava-se, com isso, no ocidente ibérico, mais propriamente no Condado Portucalense, a experiência religiosa comunitária cujo referencial se baseava na Regra agostiniana. Tendo sido promovida a construção do Mosteiro em 1131, como antes vimos, suas atividades, de acordo com a narrativa, só teriam se iniciado em 1132, sendo eleito como seu primeiro Prior-mor, D. Teotónio, um dos fundadores.
Oliveira, J.R.S.C. A Cidade de Coimbra e o Mosteiro de Santa Cruz no Século XII. Reflexões sobre o Priorado de S. Teotónio. 2017. In: Acedido em:
Foi S. Teotónio canonizado em 1163, e Frei Timóteo dos Mártires afirma que, logo após a canonização, foi mandada fazer uma imagem. (Crónica de Santa Cruz. T. 1. Coimbra, Ed. da Biblioteca Municipal, 1955, pág. 46). Mas esta não chegou até nós.
S. Teotónio, Monumento na sua terra natal, Fanfei, Valença, autor não identificado. Imagem acedida em:https://www.mundoportugues.pt/2020/02/18/hoje-e-dia-de-s-teotonio-o-primeiro-santo-portugues/
A mais antiga representação de S. Teotónio, afora uma que vimos num códice da Biblioteca Pública Municipal do Porto, mas do que não temos reprodução nem data da sua feitura, é a que vem no princípio do ofício do Santo no «Breviarium Santae Crucls», de 1531. Apresenta-o de mitra e báculo e tendo na mão esquerda uma igreja. Acontece, porém, que no mesmo Breviário a mesma gravura serve para Santo Agostinho. como aliás acontece noutras obras com o mesmo ou com outros santos. Assim, por exemplo, no «Flos Sanctorum», de Frei Diogo do Rosário, ed. de 1612, a vida de S. Teotónio é ilustrada com uma bela xilogravura na qual o Santo tem o báculo e o livro, mas ao lado vê-se uma corça. Estranhando a presença deste animal que ali parece não ter cabimento, folheámos todo o volume, verificámos que a mesma gravura serviu para Santo Arsénio, S. Gil Abade, (mas neste justifica-se a presença da corça, que lhe dava leite) e S. Leonardo.Timotheo dos Martyres, na sua «Vida do Bemaventurado Padre Santo S. Theotonio», Coimbra, 1650, apresenta uma gravura aberta a buril por João Gomes. O Santo, numa oval, em melo corpo. com trajos monacais, empunha o báculo e segura na mão esquerda o globo estrelado. Sobre uma mesa está pousada a mitra. Em baixo tem a legenda: SANCTVS PATER THEOTONIVS, e a assinatura do artista: Jº. Gom.
No tomo III do «Proprlum Sanctorum Totius Anni», conjunto de 12 grandes volumes de pergaminho que pertenceu ao Mosteiro de Santa Cruz e se guarda no Museu Nacional Machado de Castro, vem uma iluminura a toda a página, reproduzindo obviamente a imagem que se encontra na capela de S. Teotónio, em Santa Cruz, imagem que é de madeira e que foi encomendada a artista de Lisboa quando das obras de adaptação e beneficiação operadas na referida capela de 1627 a 1630. O autor da iluminura é D. Cipriano de Santa Maria, Cónego Regrante de Santa Cruz, que tudo escreveu, elaborou e completou no ano de 1760, como se lê no frontispício latino daquele volume. Nesta iluminura o globo estrelado está no cimo do quadro.
Também é do séc. XVII a imagem de S. Teotónio da igreja de Fajão, uma das melhores que se conhecem. O Santo veste de crúzio, com báculo e livro e a mitra aos pés. Não tem o globo.
Outra terra de cónegos agostinhos era Folques. Aí se encontra, na igreja paroquial, que foi do antigo Mosteiro de S. Pedro, uma grande e boa imagem de S. Teotónio. Tem a mitra aos pés e na cabeça um barrete eclesiástico. Na mão direita tem o globo estrelado e na esquerda o báculo. As vestes são de crúzio. É do séc. XVIII.
S.Teotónio, da igreja paroquial de Folques. Acervo RA
Na mesma freguesia, na capela de S. Teotónio, no Alqueve, há uma pequena imagem do mesmo, em madeira, do séc. XVII, na atitude de pregar, e outra de barro, bastante maior e melhor, com o Santo em êxtase, mão direita no peito e a esquerda segurando o livro, vestes de crúzio com murça abotoada e sem mais atributos.
Sendo titular da freguesia de Brenha, lá tem também a sua imagem. É uma escultura de barro, do século XVII, na mesma atitude da anterior, mas doutras mãos.
Em Maiorca encontrámos duas: uma, do séc. XVII, com livro e báculo (que falta) e mitra aos pés; outra, bastante maior, em que S. Teotónio está vestido de peregrino, com o chapéu pendurado nas costas, a mão direita na atitude de empunhar o bordão, na mão esquerda o livro e sobre uma dobra do manto apanhado pousa o globo estrelado. Não se estranhará esta forma iconográfica se nos lembrarmos de que ele foi por duas vezes em peregrinação à Terra Santa.
Em Santa Cruz, além da imagem referida, há mais duas, de pequeno tamanho, do séc. XVIII, uma das quais também ostenta o globo estrelado.
É bem notável pela sua matéria, que é prata, e pela sua unção religiosa, o busto que encerra o crânio de S. Teotónio e que se venera em Santa Cruz, datado de 1624.
Mosteiro de Santa Cruz, Capela de S. Teotónio. Acervo RA
Também no Museu Nacional Machado de Castro há uma boa imagem de madeira. do séc. XVII, com o globo estrelado na mão esquerda e o báculo na direita e mitra aos pés.
Finalmente, completamos esta resenha com a imagem que se encontra na igreja paroquial de Antuzede, que é sem dúvida uma das melhores.
S. Teotónio, da igreja paroquial de Antuzede (séc. XVIII)
Obra do séc. XVIII, não nos admiraríamos se aparecesse um documento que lhe desse Laprade por autor. Para já, nota-se-lhe uma grande semelhança. na roupagem e nas mãos, com um S. Paio da igreja de Verride. Que se atribui aquele autor francês.
Pereira, A.N. Sobre a Iconografia de S. Teotónio. In Munda. Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro. N.º 3 Maio de 1982. Pg. 17 a 21.
Prosseguindo na divulgação de estudos sobre a Sé Velha primitiva, é hoje levado ao conhecimento dos nossos leitores, um trabalho da Doutora Joana Filipa Antunes, professora na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigadora do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Património, daquela Instituição.
A Sé Velha de Coimbra é particularmente (re)conhecida pelo seu rosto medieval. Espécie de catedral fortaleza, a sua arquitetura e a história que ela conta, confirmam e alimenta o nosso imaginário em torno de um tempo em que as catedrais eram românicas e marcavam o território de um reino em construção.
Sé Velha. In: Revista Pittoresca e Descriptiva de Portugal com vistas Photograficas n.º 5. Lisboa. 1862
Pouco se sabe, contudo, sobre os equipamentos litúrgicos, os investimentos artísticos, o aspeto interior, a organização espacial e, no fundo, a paisagem visual da sé medieval.
…. Procurámos, então, reencontrar a “catedral habitada” … dos séculos medievais, ainda genericamente desconhecida. Dela sabemos hoje, em traços muito gerais, que contaria:
- Com três capelas principais, de estrutura arquitetónica perene e, portanto, sobreviventes até hoje: a capela-mor, dedicada à Virgem, a capela de São Pedro, ao Evangelho, e a capela de São Martinho (dedicada, desde o século XVI, ao Santíssimo Sacramento).
Capela mor, na atualidade. Acervo RA
.... Com muitas outras capelas entretanto descaracterizadas ou desaparecidas, como a capela de Santa Clara e a capela de São Geraldo, cada uma na sua extremidade do transepto, ou a capela de Santa Maria Madalena, encostada à extremidade ocidental do coro, junto à porta do claustro ou, ainda os altares de Santa Maria, do Anjo, de São Sebastião, Santa Bárbara, São Nicolau e dos Santos Cosme Damião e que não pudemos ainda localizar com precisão mas que, a partir do século XVI, deixarão de ter existência física, canalizando-se as respetivas devoções (e imagens devocionais) para o retábulo-mor encomendado por D. Jorge de Almeida e, mais tarde, para altares menores.
- Com um coro central, ocupando dois tramos da nave central a partir do cruzeiro, dotado de uma porta ocidental encimada por um crucifixo, à maneira do que se erguia sobre o «leedoiro» do coro de Santiago de Compostela e onde a poderosa D. Vataça de Lascaris (f. 1336) se faz sepultar em monumento elevado e, nesta época, coberto com um pano com “signaes, figuras d’aguias e flores” …
Sé Velha, tumulo de D. Vataça. Mestre Pero, 1336. Imagem acedida https://pt.wikipedia.org/wiki/Vata%C3%A7a_L%C3%A1scaris#/media/Ficheiro:Vata%C3%A7a.jpg
- Com um cadeiral, encomendado em 1413, pintado e dourado, com o seu “almocarabez de ouro fino”, … numa solução formal cuja dimensão seria, muito provavelmente, impeditiva de uma vista ampla e desafogada da capela-mor a partir da entrada da igreja.
- Com um coro-alto, concluído em torno de 1477, ocupando os dois primeiros tramos da nave central, ao nível do trifório, e ostentando, no subcoro, um teto mudéjar de laçaria.
- Com numerosas tumulações, em campa rasa, em campas pintadas e em monumentos funerários esculpidos e dotados de jacente, dos quais nos chegaram, sobretudo, túmulos episcopais.
- Com panos, véus, cortinas, corrediças, das mais variadas cores e materiais, a comporem estruturas de capelas ou cenários efémeros, ocultarem imagens ou vesti-las de acordo com as muitas festas do calendário litúrgico.
De todos estes espaços e equipamentos, aquele que maior atenção recebe nos dois primeiros séculos da catedral românica é, sem dúvida, a capela-mor. Espaço pequeno, não obstante a sua importância, foi sendo composto, dignificado, enobrecido e densamente preenchido nos séculos seguintes. E é a partir dele, portanto, que iniciaremos esta abordagem à Sé Velha medieval, focando-nos exclusiva e operativamente (embora não exaustivamente) nos objetos, equipamentos e imagens de que foi sendo acrescentado ao longo de quatro séculos.
Antunes, J. F. (Re)ver a Sé Velha de Coimbra: Equipamentos Litúrgicos da Capela-Mor Medieval (Séculos XII.XV). In: Actas. Congreso Internacional VIII Centenario Catedral de Burgos “El mundo de las Catedrales” celebrado en Burgos del 13 al 16 de junio de 2022. Edição Fundación VIII Centenario de la Catedral. Burgos 2021. Acedido em
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