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O historiador Milton Pedro Dias Pacheco publicou em 2013, um interessante estudo intitulado Do aqueduto, das Fontes e das Pontes: a Arquitetura da Água na Coimbra de Quinhentos no qual aborda a temática do abastecimento de água decorrente da chegada à urbe de um significativo número de pessoas docentes, funcionários e discentes.
Desse texto respigamos os excertos que constituem a série de entradas que, a partir da referida obra, elaboramos.
A principal cidade do Mondego, a romana Aeminium convertida pelos Árabes em Qulumriyya e depois rebatizada pelos Cristãos de Coimbra), veio a sofrer grandes transformações materiais e culturais ao longo de toda a centúria de Quinhentos.
Profundamente marcada pelas instituições reais, episcopais e monásticas nos finais da Idade Média, a cidade de Coimbra, nos alvores da Idade Moderna, foi palco de uma séria reforma promovida pela Coroa e efetivada in situ pela casa monástica de Santa Cruz de Coimbra. Se a partir de 1527 D. João III perspetivou a reinstalação do Studium Generale em Coimbra, onde já estanciara por duas vezes no século XIV, foi frei Brás de Braga, o monge hieronimita, tornado prior-mor de Santa Cruz, quem a concretizou a partir da década de 1530.
Fig. 1. Vista da cidade de Coimbra em 1572. In: Civitates Orbis Terrarum, vol. V, 1598. Op. cit., pg. 219
… Junto do Mosteiro de Santa Cruz, casa reformada nos princípios do século XVI, viria assim a constituir-se o primeiro núcleo da rede de colégios … Foi, pois, em torno da Rua de Santa Sofia – a artéria urbana consagrada à Sagrada Sabedoria –, que as diversas Ordens Religiosas nacionais ergueram e sustentaram alguns dos mais importantes colégios, instituições responsáveis pelo contínuo afluxo de estudantes naquela instituição universitária através da administração de um ensino que hoje chamaríamos de preparatório. Junto a este novo eixo urbano, paradigma nacional no planeamento urbano e arquitetónico Quinhentista, também a Coroa decidiu pela construção de uma unidade colegial laica, ainda que a funcionar por um breve período: o Real Colégio das Artes.
…. Mas dentro em breve uma segunda fase construtiva irrompia no casco antigo da cidade em torno do Paço Real da Alcáçova, a mais antiga residência régia portuguesa que se tornaria na principal morada da Sabedoria, pois aqui se instalou a Universidade a partir de 1537. Uma vez mais, os novos modelos arquitetónicos adotados viriam renovar a estética urbana conimbricense, sobretudo, com a presença esmagadora do grande complexo colegial promovido pela Companhia de Jesus.
No final do trabalho ora visitado são apresentadas as Considerações Finais de que destacamos, o que segue.
Poderíamos ter mencionado também muitas outras obras arquitetónicas relacionadas com a distribuição e fornecimento de água à cidade e que seguramente sofreram algumas diversas transformações técnicas, assim como aperfeiçoamentos materiais ao longo de todo o século XVI, mas fomos, em certa medida, obrigados a tratar somente o conjunto mais emblemático.
Sabemos, por exemplo, através das vereações de 21 de Agosto e de 24 de Setembro de 1567, que a edilidade havia planeado uma intervenção de limpeza e reparação da Fonte dos Judeus, noticiada já em 1137;
Fonte Nova ou dos Judeus. In: Planta de Coimbra de Isidoro Emílio Baptista. 1845.
ou que, em 1592, o chafariz de Sansão, junto do Mosteiro de Santa Cruz – conhecido pelas suas águas boas “para amassar o pão e para lavar o rosto porque o faz mais alvo” –, recebera, sobre um pedestal quadrangular, a estátua da personagem bíblica homónima, com cerca de dois metros de altura, da autoria do escultor Manuel Fernandes (séc. XVI).
Outras deixam-nos algumas dúvidas quanto à data da sua execução, como a Fonte da Bica, construída junto do antigo Colégio de São Miguel, no início da Rua da Sofia e onde hoje se ergue o edifício da Caixa Geral de Depósitos.
Mosteiro de Santa Cruz, celeiro e outros. Acervo RA
Ou, noutro caso, a Fonte da Torre de Santa Cruz, erguida no local onde mais tarde se instalou a cadeia comarcã (ficando conhecida desde então como Fonte da Cadeia), cuja água, proveniente das nascentes do Jardim da Sereia, jorravam, pelo menos desde o ano de 1541, da tromba de um elefante.
De igual modo, surgem inúmeras dúvidas quanto à data de construção do mais antigo chafariz da praça de S. Bartolomeu abastecido pelo reservatório da fonte da Sé Velha e identificado no desenho levantado em 1572, mas publicado na obra Civitates Orbis Terrarum em 1598.
Merece ainda especial menção o fontanário central do claustro do Mosteiro de Santa Maria de Celas, fundado por D. Sancha (c.1180-1229), filha de D. Sancho I, para a comunidade da Ordem de Cister, cuja estrutura se assemelha às piscinas batismais utilizadas nos primórdios do Cristianismo.
Claustro de Celas
Através da documentação relativa a esta casa religiosa, sabemos que o claustro recebeu novas obras de revalorização durante o abadessado de D. Maria de Távora (séc. XVI), entre 1541 e 1572. De facto, D. João III oferecera à comunidade, no ano de 1553, um conjunto de capitéis historiados proveniente do edifício dos antigos Estudos Gerais
Pacheco, M. P.D. Do aqueduto, das Fontes e das Pontes: a Arquitetura da Água na Coimbra de Quinhentos. In: História Revista. Revista da Faculdade de História e do Programa de Pós-graduação em História, v. 18, n. 2, p. 217-245, jul. / dez. 2013. Goiânia (Br.). Acedido em: https://www.academia.edu/37539380/DO_AQUEDUTO_DAS_FONTES_E_DAS_PONTES_A_ARQUITETURA_DA_%C3%81GUA_NA_COIMBRA_DE_QUINHENTOS.
Terceira e última entrada dedicada à obra de Augusto Filipe Simões (1835-1884), intitulado Relíquias da Arquitectura Romano-Bysantina em Portugal e Particularmente em Coimbra.
Quando pensei nos objetivos que o blogue “A´Cerca de Coimbra” pretenderia atingir coloquei em primeiro lugar o de avivar a memória dos Conimbricenses para a história e para o património da sua Cidade. Coimbra tem de ter memória e orgulho naquilo que atualmente é e que resultou de uma evolução longa de milénios.
Recentemente voltou a falar-se da igreja de S. Cristóvão e daí resultou a prioridade que damos a uma entrada sobre este templo, um dos mais antigos da Urbe.
Fazemo-lo na esperança de que ele possa servir aos decisores municipais como motivo de reflexão sobre o destino a dar ao espaço onde este local de culto esteve erigido.
Há dez anos que transformaram num teatro a velha igreja de S. Cristóvão de Coimbra. De sua veneranda fábrica não ficou patente um só vestígio. Foi completo o sacrifício. À voz imperiosa das necessidades da moderna civilização, um monumento perfeito da arquitetura cristã cedeu o lugar a um edifício acanhado e defeituoso da alvenaria contemporânea. Aquelas paredes esmaltadas de hera e de musgo, aquelas pedras tisnadas pelos soes de muitos séculos, aquelas formosas esculturas, em que a firmeza do cinzel exprimia a força da nação pareceram velharias inúteis. As recordações gloriosas do reinado de D. Afonso Henriques deviam sumir-se para deixar em todo o esplendor as pinturas, a cola e os ouropéis do Teatro de D. Luiz.
Todavia, o desamor das artes, o desprezo das tradições históricas, a estúpida indiferença para com as memórias do passado não chegaram ainda a tal ponto que nos tornasse impossível dar hoje por meio do desenho, uma ideia clara e exata do que foi aquela igreja. O sr. conde da Graciosa, coletor diligente de curiosidades artísticas e naturais, recolheu com louvável empenho em suas propriedades de Luso e da Graciosa alguns capiteis e outros ornatos que estariam provavelmente destinados para avolumar as paredes do teatro. O sr. Luiz Augusto Pereira Bastos, à primeira noticia da demolição, correu pressuroso a desenhar o frontispício da igreja antes que a pusesse por terra o camartelo destruidor.
Igreja de S. Cristóvão. Desenho de Luiz Augusto Pereira Bastos. Estampa 2, pormenor 1. Op. cit., pg. 15
O sr. António Francisco Barata, dedicado cultor da poesia do passado, guardou com veneração a planta do edifício.
Igreja de S. Cristóvão. Estampa 2, pormenor 2. Op. cit., pg. 15
Ao amoroso cuidado destes três homens e ainda ao santo zelo com que o sr. Joaquim de Mariz Júnior, fervoroso devoto das coisas da nossa terra, foi em piedosa peregrinação a quatro léguas de Coimbra desenhar os capiteis, devemos a estampa 2, sem a qual menos completo ficaria este trabalho.
Igreja de S. Cristóvão. Desenho de Joaquim de Mariz Júnior. Estampa 2, pormenor 3. Op. cit., pg. 15
Igreja de S. Cristóvão. Estampa 2. Frontispício, capiteis e planta da igreja de S. Cristóvão de Coimbra. Op. Cit., pg. 15
Os mais antigos documentos que se conhecem, além da carta citada em nota, respetivos à igreja de S. Cristóvão, são uma inscrição em que se memora a morte de D. João Pater, presbítero, em 21 de dezembro do ano 1169, uma doação de certas casas que lhe foi feita por Martim Anaia e sua mulher Elvira no mês de fevereiro da era de 1211 (ano de 1173) e uma inscrição sepulcral achada na base do cunhal da frontaria, ao lado esquerdo, quando em 1838 se principiou a obra do teatro. Nesta inscrição decifrou o sr. Aires de Campos algumas letras avulsas e a data: E : M : CC : XVIII : correspondente ao ano de 1180.
0 autor da Coimbra Gloriosa descreveu a igreja de S. Cristóvão nos termos seguintes: «Tem a capela-mor ao nascente, porta principal ao poente, travessa ao sul. Tem o templo 60 palmos de alto, 113 de comprimento e 58 de largo, obra toscana e de três naves, fabricada de pedra e cal e de abobada, a qual se segura sobre três colunas de cada parle e por todas são seis. Tem o coro quatorze cadeiras com suficiente claridade provinda de oito frestas, entre elas cinco que foram abertas no ano de 1754…. também lhe foi posta no mesmo ano uma cruz de pedra no teto da igreja ficando arvorada para o poente. Neste tempo foram extraídas do frontispício várias carrancas de pedra.»
Segundo uma comunicação do sr. prior M. da C. Pereira Coutinho, bem conhecido por seus estudos arqueológicos, as colunas de S. Cristóvão eram de um só corpo e coroadas por capiteis modelados pelos da Sé Velha. A cada uma das três naves correspondia um altar em forma de semicírculo que parecia da construção primitiva. Finalmente as paredes eram guarnecidas de ameias como as daquele templo.
Quando se fez a demolição apareceu pela parte anterior, junto da porta um subterrâneo com forma análoga à da igreja, porém em ponto mais pequeno. Nas paredes deste subterrâneo viam-se vestígios de pinturas a fresco. Dois grandes pedestais de alvenaria, quadrangulares e não afeiçoados serviam de apoio ás duas colunas do templo que a esta parle correspondiam. Na planta da estampa 2.a vê-se indicada com pontos esta construção inferior. Pelo lugar que ocupava, por sua forma e pintura, bem se conhece ter sido uma cripta. Convém saber que na Sé de Lisboa apareceu também um subterrâneo em lugar correspondente junto da porta principal.
No capítulo seguinte mostraremos como as semelhanças da arquitetura da igreja de S. Cristóvão e da Sé Velha, autorizam a supor que foram obra do mesmo arquiteto, ou pelo menos de artistas contemporâneos e da mesma escola.
À transcrição apresentada permitimo-nos acrescentar que são pertinentes e aplicáveis à realidade atual as reflexões do Autor, publicadas em meados do século XIX.
Importa, também, sublinhar aqui o meritório trabalho que Isabel Anjinho e Rúben Vilas-Boas têm vindo a concretizar no seu blogue “Coimbra Medieval”, onde apresentaram uma reconstituição do que seria a igreja de S. Cristóvão. Encontra-se disponível em: https://coimbramedieval.wixsite.com/coimbramedieval/post/igreja-colegiada-de-s-crist%C3%B3v%C3%A3o-ii.
Reconstituição do exterior da igreja de S. Cristóvão, disponível no blogue “Coimbra Medieval”
Reconstituição do interior da igreja de S. Cristóvão, disponível no blogue “Coimbra Medieval”
NOTA FINAL:
Ousamos perguntar se não será o espaço que ora regressa à posse da Cidade, o local ideal para a instalação de um núcleo museológico dedicado não só à igreja de S. Cristóvão e à sua história, mas também um local destinado a contar aos vindouros e aos nossos visitantes a história milenar de Coimbra?
Pedimos aos nossos leitores que reflitam sobre esta questão.
Simões, A. F. Relíquias da Arquitectura Romano-Bysantina em Portugal e Particularmente em Coimbra. 1879. Typographia Portugueza, Lisboa.
Segunda entrada dedicada à obra de Augusto Filipe Simões (1835-1884), intitulada Relíquias da Arquitectura Romano-Bysantina em Portugal e Particularmente em Coimbra.
…. segundo os fragmentos do concilio de Lugo de 569, à catedral de Coimbra não pertenciam então mais que cinco igrejas.
Se desde essa época até aos fins do século VII, a influencia da civilização visigótica chegou a estender-se a esta parte da Península, comunicando à arquitetura e às demais artes o impulso, que em Toledo receberam, é o que ainda se ignora. Já, porém, dissemos que não faltam razões para crer que a opulência e a perfeição da arquitetura e da escultura se limitariam às cidades mais poderosas, onde a proteção e os tesouros dos reis as acolhiam e sustentavam. Confirma de algum modo esta hipótese o não ter aparecido até hoje em Coimbra um só vestígio da época dos godos, a não ser uma inscrição que se perdeu, e que parece desse tempo, com quanto Coelho Gasco, que foi quem dela conservou memória, lesse no seu último verso a era de 1200.
Nos séculos IX e X, dilatado o cristianismo, apesar da reação sarracena, aumentou-se o número das casas destinadas aos exercícios religiosos. Não era somente nas povoações grandes que se edificavam templos. Nos tratos de terra, que os reis ou os nobres davam á cultura dos servos ou colonos, construíam-se também pequenas igrejas, mosteiros ou oratórios. Multiplicaram-se depois estas instituições, por devoção ou por interesse dos sacerdotes e seculares, empenhados não somente em firmar a religião, mas ainda em celebrar ou perpetuar seus nomes e pôr os bens ao abrigo das extorsões com a proteção eclesiástica. Às casas da oração consideravam-se, como as terras, os gados e os moveis, propriedades particulares, e delas se faziam frequentemente doações, trocas e vendas.
…. No cartório do mosteiro de Lorvão ficou um documento interessante em que se vê o atraso artístico dos povos que no século X habitavam Coimbra e suas circunvizinhanças. É uma memória escrita em latim bárbaro no livro dos testamentos, na qual se refere que no tempo do abade Primo (978 a 985) viera de Córdova para aquele mosteiro mestre Zacarias, o qual o concelho de Coimbra mandou pedir ao abade que lho desse, para lhe fazer pontes em seus ribeiros. Respondeu o abade que sim; porém que, para memória, acompanharia o mestre. Vieram, pois, ambos e chegando a «IIlhastro» [sic] (junto ao lugar que chamam hoje Fornos) aí assentou o abade sua tenda e mandou aos homens da terra que trouxessem carros, pedra e cal, com o que fizeram uma ponte. Vieram a Cozelhas e fizeram outra. Vieram à ilharga do Bussaco e fizeram outra. E ultimamente chegando à ribeira de Forma [sic] construíram ainda outra ponte e junto dela uns moinhos.
Fica, portanto, bem patente que no século X não havia em Coimbra pedreiros, capazes de fazer, ao menos com segurança, as pontes dos minguados ribeiros circunvizinhos; que um mosteiro rico, situado a três léguas da cidade, mandava vir de Córdova um mestre de obras, para suprir à falta de artistas nesta parte remota dos domínios do rei de Leão; que o concelho de Coimbra uma embaixada ao abade do mosteiro, como se lá estivesse o primeiro arquiteto do mundo; e, finalmente, que o poderoso donatário, por fazer favor á cidade, e mais ainda por zelar os interesses do convento, acompanhava o mestre cordovês pelo território conimbricense, estacionando com ele pelas margens dos ribeiros e assistindo á construção das pontes e moinhos, como se foram obras admiráveis de grande e primorosa fábrica.
…. A primeira conquista da cidade de Coimbra pelos sarracenos no primeiro quartel do século VIII foi talvez a que menos estragos causou.
…. Com diversidade de circunstâncias se fizeram as posteriores conquistas, se dermos crédito às cronicas antigas. Afonso III, quando tomou Coimbra no século IX, transformou-a num deserto, para depois a povoar com gente da Galiza.
Afonso III de Leão. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_III_das_Ast%C3%BArias
Al-Manssor procedeu da mesma sorte nos fins do século X. No espaço de sete anos teve a cidade destruída e deserta, até que os moiros a povoaram e edificaram de novo.
Recuperou-a, finalmente, depois de dilatado cerco Fernando Magno em 1064.
Fernando Magno, à esquerda. Imagem acedida em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_I_de_Le%C3%A3o,
Assim, ora a cruz, ora o crescente, tremulavam, alternados em cada século nos muros da formosa rainha do Mondego, mudando com suas leis e costumes o estilo de seus edifícios e mais em particular dos religiosos. Estes, pelas repetidas conquistas e assolações deveriam ser os mais comumente destruídos.
…. Não admira, portanto, que se não achem hoje em Coimbra nenhuns vestígios evidentemente anteriores á última conquista que foi, como dissemos, no ano de 1064.
…. A vitoria de Fernando Magno assinalou o princípio de uma época memorável na história de Coimbra. Fazendo esta cidade capital de um extenso e importante condado, que tinha por limites naturais o Douro e o Mondego, o rei de Castella e de Leão confiou o seu governo a Sesnando, pelo qual fora aconselhado a invadir aquela parte da antiga Lusitânia.
O vulto notável de Sesnando sobressaí com vivos e esplendores nas trevas, que precederam a fundação da monarquia. Nas velhas escrituras dos mosteiros do Território conimbricense, na gótica inscrição do seu tumulo acham-se vestígios expressivos do enérgico e fecundo influxo do ilustre moçárabe.
Arca tumular de D. Sesnando, nos claustros da Sé Velha
É para lamentar que da sua vida gloriosa, e por tanto da história de Coimbra na metade última do século XI, não ficassem mais copiosos documentos.
Simões, A. F. (1870), Relíquias da Arquitectura Romano-Bysantina em Portugal e Particularmente em Coimbra. 1870. Typographia Portugueza, Lisboa.
Uma notícia, não assinada, publicada na edição de 19 de dezembro de 2004 do jornal Público, referencia a existência, na cave da antiga livraria Coimbra Editora, de vestígios arqueológicos – um trecho do fosso que integrava o sistema defensivo da cidade, silos árabes entulhados de cerâmicas e de fragmentos de alcatruz cerâmico – que julgamos relevantes para todos quantos se interessam pelas coisas de Coimbra.
A esta notícia acrescem documentos que nos foram disponibilizados que referem a realização em 2004, de uma reunião nos Paços do Concelho que teve por objetivo «aferir/otimizar a melhor solução para o fosso», na qual foi autorizado «um corte de 0,80m paralelo à parede sul, ao nível da cave» e, ainda, «um rebaixamento do coroamento do fosso no máximo de 0,34m».
“Acordo/autorização” que permitiu que os vestígios então encontrados sumissem parcialmente e os que restavam fossem seriamente mutilados.
Vestígios mutilados que a Livraria em ordem aos quais a Livraria Coimbra Editora. Ld.ª criou condições mínimas para a sua visualização.
Porta da Barbacã e fachada lateral do prédio, ainda com letreiro da Coimbra Editora. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&mediaurl=https …
Logotipo da Coimbra Editora, colocado na frontaria das suas antigas instalações, na Rua do Arnado. Imagem acedida em: https://observador.pt/2020/09/22/coimbra-editora-cessa-atividade-ate-ao-fim-do-mes/
À declaração, no final de 2015, da insolvência da Coimbra Editora. Ld.ª, seguiu-se a compra do imóvel pela empresa Gomes & Góis, Ourives e Joalheiros que continuou a facilitar a visualização do que restava das descobertas feitas.
Porta da Barbacã e fachada lateral do prédio, com letreiro da empresa Gomes & Góis. Imagem acedida em: https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&mediaurl=https
Recentemente, o imóvel voltou a ser vendido agora, segundo parece, a uma empresa estrangeira da área da restauração. Atualmente o edifício está encerrado, não sendo conhecidas informações seguras quanto a futura utilização do mesmo.
Os factos referidos, levaram-nos a refletir sobre o assunto e a voltar a uma questão que, desde há longos anos, tenho procurado interessar Coimbra, a qual resumo colocando as seguintes interrogações.
Será que Coimbra não merece um núcleo museológico dotado das condições técnicas de exposição hoje disponíveis, destinado a dar a conhecer a história milenar da urbe?
Será que o edifício onde durante tantos anos esteve instalada a Livraria Coimbra Editora e que possui ainda, no seu subsolo, alguns vestígios arqueológicos ligados aos primórdios longínquos da existência do burgo não seria o local mais adequado para nele se instalar esse núcleo?
Será que a civitas irá assistir sem um arrepio a que, dos vestígios arqueológicos ali descobertos, nada mais reste do que um conjunto de documentos esquecidos nos arquivos?
Será que interessa a Coimbra que, num local tão nobre, seja dada prioridade à abertura de mais uma venda de pizas ou de “artesanato”?
É para esta reflexão que convoco todos os que amam Coimbra.
Texto do artigo
Livraria Coimbra Editora. Instituto Português de Arqueologia e o Instituto Português de Património Arquitetónico tem opiniões distintas quanto à conservação do achado.
A remodelação da Livraria Coimbra Editora, implantada junto à Cerca e Portas de Almedina, em Coimbra, desvendou importantes tesouros do passado, mas um achado inédito – um fosso do sistema defensivo da cidade – ... Presumivelmente do período medieval, essa vala escavada na rocha, que ainda conserva uma profundidade de cerca de dois metros e meio, é um achado único em Coimbra. Embora apareça vagamente referenciada em documentos antigos, nunca tinha sido encontrada.
Para o IPA, sendo o fosso parte integrante do sistema defensivo de Coimbra, e encontrando-se este classificado como monumento nacional desde 1910, através da Cerca e das Portas de Almedina, deverá ser preservado e musealizado.
Mas o IPPAR, que tutela os monumentos nacionais, a 12 de novembro último deu parecer favorável à reformulação do projeto de arquitetura do dono do imóvel, autorizando o “desmonte de um trecho do fosso, salvaguardando o princípio da conservação pelo registo cientifico” … na prática, isso consistiria na destruição de uma parte significativa deste troço de fosso com a colocação no piso da cave de uma espécie de tampa amovível para que uma pequena parte pudesse ser observada...
Tesouros do passado
Além do troço do fosso, as obras de remodelação da livraria desvendaram no subsolo da cave outros tesouros do passado, considerados de grande importância para o conhecimento da ocupação da cidade de Coimbra.
“Naquela cave conseguimos percorrer a história de Coimbra, desde o século VIII até à atualidade”, comentou Costa Santos. Aí foram descobertos antigos silos árabes entulhados com cerâmicas e moedas de várias épocas, e ainda fragmentos de alcatruz cerâmico que cronistas norte-africanos diziam existir no vale do rio Mondego.
Várias peças cerâmicas de uso doméstico, algumas delas do período árabe, foram recolhidas quase intactas, e os arqueólogos admitem que ainda será possível a reconstituição de outras através da colagem de fragmentos. Três dos quatro silos foram destruídos durante as obras, após o seu registo científico … O silo conservado, semi-incrustado numa parede do edifício, será futuramente convertido em suporte expositivo da livraria. Igualmente a parte de uma das torres das portas da cidade aí descoberta, que Costa Santos julga datadas do século XIII ou XIV, ficará visível aos utentes da livraria, em consequência das adaptações ao projeto original de remodelação.
Publico, jornal. 2004. Achados Arqueológicos em Livraria Opõem Entidades em Coimbra. Texto acedido em: http://jornal.publico/2004/12/19/LocalCentro/LC03.html
Foi subscrito pelo Professor Doutor Pedro Dias o texto, publicado na revista Munda em novembro de 1981. Faremos a sua divulgação nesta entrada e na seguinte.
A evolução do espaço urbano de Coimbra é hoje bastante bem conhecida, porque dado não ter sido regular, se podem precisar com razoável rigor os seus limites em determinadas datas, nos momentos em que certos eventos a fizeram desenvolver ou a mutilaram.
O povoamento do morro da Alta atual justifica-se plenamente, por ser dominante ao último local até à costa onde era fácil atravessar o Mondego, em qualquer época do ano, dado que, a partir daqui o rio entrava na sua vasta planície aluvial por onde desbordava nas invernias. Assim, este ponto era de passagem quase obrigatória no trânsito entre o Norte e o Sul, pois também para montante, e devido às escarpas que cingiam o leito do Mondego, a viação era difícil. Era, pois, o morro onde a cidade veio a crescer de excecional valor estratégico, no campo militar, e também privilegiado para o florescimento de uma povoação, pois era uma encruzilhada, onde as trocas se poderiam fazer e onde os habitantes se poderiam ocupar a fornecer serviços aos passantes.
Os vestígios pré-históricos são raros, de qualquer modo, existem, o que prova a permanência do Homem no atual perímetro urbano, muitas dezenas de milhares de anos antes da nossa Era. Na margem Sul, para lá de Santa Clara, também, nas grutas dos Alqueves, deixou a marca da sua passagem, aí, na forma de espólio funerário. Pouco sabemos desses nossos remotos antepassados, exceto que, com a sua decisão de se fixarem, iniciaram a História da Cidade de Coimbra.
Mas é do período de dominação romana, já dos primeiros dois séculos da Era Cristã. que nos ficou o mais antigo testemunho material importante: o criptopórtico. Situa-se sob as construções do antigo Paço Episcopal, hoje o Museu Nacional de Machado de Castro, e é formado por duas galerias sobrepostas que serviam para suportar uma grande plataforma artificial na vertente, a fim de se construir o fórum. Aí era o centro da vida da civitas, que então se chamava Aeminium. Por aqui passava a grande via Olissipo-Bracara Augusta, a verdadeira espinha dorsal da viação peninsular ocidental. As invulgares dimensões deste criptopórtico são denunciadoras da importância desta cidade hispânica.
Museu Nacional Machado de Castro. Criptopórtico romano. Imagem acedida emhttps://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_Nacional_de_Machado_de_Castro#/media/Ficheiro:ForumRomanoDeCoimbra3.jpg
Não é de aceitar que a área ocupada fosse multo grande. Certamente não ultrapassaria o perímetro que, mais tarde, as muralhas medievais haveriam de definir. O cemitério. ao lado do grande aqueduto, que o atual substitui no final do séc. XVI, prova o fim da urbe romana, na zona do castelo onzecentista. Na atual Baixa, é provável que também houvesse alguns núcleos de casas, e os Banhos Reais, que D. Afonso Henriques cedeu para a construção do Mosteiro de Santa Cruz, podiam ser umas termas ou um balneário romano.
Com a invasão germânica, a fácies de Coimbra/Aeminium teve, forçosamente, de se modificar. O brilho da civilização romana foi-se apagando, mas, mesmo assim, a cidade ganhou importância, relatlvamente a outros povoados que, décadas antes, a ultrapassavam em prestígio o valor económico e político. Em meados do séc. VI, o Bispo de Conimbriga muda-se para o morro mondeguino e a nova residência do Episcopus Conlmbrlgensls, a Imlnio visigoda. passa a chamar-se Coimbra, enquanto aquela cidade florescente, três léguas a Sul, desapareceria.
O que era a Coimbra do séc. VII? Ao certo não sabemos. Que era pequena e modesta não se duvida, mas suficientemente importante no panorama peninsular, para que quatro monarcas nela cunhassem suas moedas: Recaredo, Lluva, Slsebuto e Chintila.
Com as invasões muçulmanas de 711, a cidade seguiu o destino de todas as que se situavam a Sul das montanhas das Astúrias, e durante mais de três séculos foi islâmica, não obstante breves momentos de domínio de tropas cristãs, como aconteceu em 878. As marcas deixadas nas gentes e nos seus costumes foram profundas, mas no campo artístico os testemunhos dessa intensa colonização não chegaram até nós. Coimbra, pela sua posição geográfica foi o entreposto entre o Sul Islâmico e o Norte Cristão, tendo existido uma importante comunidade moçárabe, que levantou e melhorou os seus templos e que, mesmo depois da vinda para a terra portucalense dos senhores de linhagem franca, continuou a impor o seu modelo de vida, bem diferente do feudalismo de além Pirenéus. A cidade foi definitivamente reconquistada em 1064 pelas tropas de Fernando Magno, mas a reorganização de todo o vasto território e a defesa da linha do Mondego, ficou a cargo de um moçárabe de Tentúgal, o alvazil D. Sesnando, que nas prósperas cidades andaluzas passara os primeiros tempos da sua vida.
O mais antigo testemunho medievo do aspeto da cidade, ainda que vago, é dado pelo geógrafo ldrici, que nos confia que, no início do séc. XII, Coimbra estava «edificada sobre uma montanha, rodeada de boas muralhas, rasgadas por três portas e mui bem fortificada. Fica nas margens do Mondego, que corre a ocidente da cidade até ao mar e cuja foz é defendida pelo forte do Montemor. Sobre o rio existem moinhos. No território da cidade abundam vinhedos e hortas. Na parte que se estende até ao mar, do lado do poente. Existem campos cultivados onde criam gados. A população faz parte da comunidade cristã».
Sem dúvida que, durante os reinados dos nossos primeiros monarcas, a generalidade da população vivia dentro da cerca, onde ficava a alcáçova em que pousaram Afonso Henriques e os seus mais chegados descendentes, o castelo – o último reduto de todo o sistema defensivo – a Sé e o Paço dos Bispos, e as principais igrejas paroquiais.
Sé Velha. 1902. Acervo RA
Mas no arrabalde, além muros, já começavam a despontar alguns pequenos núcleos de habitações, sobretudo junto dos templos que aí se levantavam: Santa Justa, S. Tiago e S. Bartolomeu. Em 1131 começou-se a construção do que viria a ser o mais importante mosteiro português, Santa Cruz. Nesse mesmo ano, e igualmente sob o patrocínio do príncipe D. Afonso Henriques, lançaram-se os fundamentos da grande ponte de pedra sobre o Mondego, cuja solidez desafiou séculos de enxurradas e de assoreamento.
Ponte de Pedra. Acervo RA
Tinha a cidade judiaria e mouraria, continuando a vida destas duas comunidades a processar-se sem grandes sobressaltos até ao final do séc. XV. O bairro judaico ficava na encosta, do lado de Santa Cruz, nas ribas de Corpus Chrlstl. No interior da cerca, uma grande via ligava a Porta de Almedina à Porta do Sol, junto ao castelo, passando pelo adro da Catedral e dividindo ao melo o espaço urbano intramuros. Outra, também de largo uso, fazia a comunicação entre a Porta de Belcouce, a mais próxima do rio, com o adro da Sé e com a Alcáçova.
No final da primeira dinastia a cidade estava já claramente dividida em almedina e arrabalde, cada zona com características muito distintas e bem definidas. Na nova zona além muralha – a Baixa atual – fervilhava o povo miúdo, os comerciantes e os artesãos, sobretudo em torno da Praça, balizada por duas igrejas paroquiais: a de S. Tiago e a de S. Bartolomeu. Nos becos e vias que dela saíam arruavam-se alguns mesteres, mantendo-se ainda em muitos casos a toponímia medieval. Na Alta, dentro dos muros, vivia o alto clero, os cónegos da Sé e outros beneficiados eclesiásticos, a nobreza local e os seus servidores, e também, evidentemente, algum povo.
Dias, P. Evolução do Espaço Urbano em Coimbra. In: Munda, Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, n.º 2, pg. 5-11.
De como as Reis de Leão ganharão Coimbra, antes do Imperador D. Fernando, e de como se sustentou na Fé.
Antes que o Imperador D. Fernando Magno libertasse Coimbra, a ganhou aos infiéis D. Ramiro, Rei de Leão [770-850] e a tirou do poder de Haneh, Rei tyranno della.
Ramiro I, Rei de Leão
Acedido em: http://www.barrosbrito.com/1386.html
Depois deste heroico Principe a conquistou outra vez D. Affonso, o Terceiro Rei de Leão [866-910]… quando castigou o traidor Vostisa.
Vindo sobre ela com hum grande exercito no anno do Senhor de 838, a 30 de Dezembro, dia da Trasladação do Apostolo Sant-Iago. Nesta batalha se achou com elle o Conde Hermenegildo seu parente, e seu Capitão General, de Nação Portuguez.
Afonso III, o Magno
https://ww.alamy.com/stock-photo-afonso-iii-o-magno-tumbo-a-r-132573717.html
Representação de Hermenegildo Guterres
Acedido em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/69/Estacao_de_Rio_Tinto_Azulejo_07.jpg
Mas logo foi conquistada por El-Rei Almaçor [938c.-1002], com que chegou a tal desventura, que sete annos esteve despovoada, e quasi arruinada, no fim dos quaes os Mouros a reedificarão.
El-Rei Almanzor, acedido em
https://alchetron.com/Almanzor#demo
Busto de Almaçor em Algeciras de onde era natural
Acedido em https://pt.wikipedia.org/wiki/Almançor#/media/Ficheiro:Question_book-4.svg
…. Vendo-se seus nobres moradores deitados de suas casas, despojados dos sues patrimonios; mas de continuo alegres por terem suas Igrejas, e Mosteiros concedidos de E-Rei Alboacem, neto de Tarif, aquelle forte vencedor de Hespanha, que foi Senhor e Principe della. E toda a mais terra, que banha os rios Alva e Mondego. Hum deles foi de clérigos claustraes, que estava em Santa Justa, que o fez hum D. Rodrigo … Os mesmos Religiosos tinhão em S. Bartholomeu, que o dotou o Sacerdote Samuel a Lorvão nestes infelices dias.
… Aquelle bellicoso Rei Mouro Alboacem … que reinou prosperamente em Coimbra, inda que bárbaro, Principe clementíssimo, foi o que benignamente concedeo nova Lei, que os Catholicos, que estavão debaixo do seu Senhorio, tivessem Condes para com elles serem governados, conforme seus Institutos, e Fóros. E sendo Rei desta Cidade Marvam Ibenzorach, foi Conde della hum generoso varão, chamado Theodoro, descendentes dos Serenissimos Reis Godos.
Gasco, A.C. Conquista, Antiguidade, e Nobreza da mui Insigne, e inclita Cidade de Coimbra… Recolha de textos e notas por Mário Araújo Torres. 2019. Lisboa, Sítio do Livro. 51
Esta entrada, que reproduz um artigo publicado na revista O Panorama, carece de uma explicação.
O Panorama. Jornal litterário e instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Uteis, foi publicado aos sábados, entre 1837 e 1868, estando a digitalização dos seus índices e das revistas disponível em:
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/OPanorama/OPanorama.htm.
Folha do rosto de O Panorama
A maioria dos artigos ali publicados não são assinados, embora a sua paternidade seja comumente atribuída a Alexandre Herculano, a alma e o motor deste projeto.
Daí o título aposto à entrada, que reproduz na íntegra um texto ali publicado – cuja ortografia foi atualizada para facilitar a sua leitura – e que consideramos de uma grande beleza.
Importa sublinhar que se trata de uma síntese, escrita em 1836, onde se dá conta dos conhecimentos de então relacionados com a história de Coimbra e com a de alguns dos seus monumentos; os conhecimentos atuais relacionados com estas temáticas são muito mais aprofundados e desenvolvidos.
O artigo em causa insere uma gravura onde também se não vislumbra a assinatura do autor, mas cuja autoria poderá ser atribuída a Manuel Maria Bordalo Pinheiro ou a José Maria Baptista Coelho, porque foram estes dois artistas que, maioritariamente, colaboraram na revista.
Coimbra xilogravura de autor desconhecido. In O Panorama, n.º 51
O Panorama esteve entre as primeiras publicações portuguesas que inseriram gravuras, a impropriamente chamada xilogravura, ou seja, a gravura aberta em blocos de madeira; mas utilizou a “xilogravura de fio”, também conhecida como madeira à veia ou madeira deitada, porque o bloco foi cortado longitudinalmente em relação ao caule da árvore e trabalhado com canivete ou goiva, procurando aproveitar as fibras rígidas e salientes. Posteriormente, noutras publicações, passou a ser utilizada a “xilografia de topo”, porque o bloco que vai ser utilizado se obtém cortando a madeira no sentido horizontal; esta trabalha-se com buris das mais variadas secções, semelhantes aos utilizados pelo gravador na chapa de metal.
Por último uma nota pessoal. Dos textos de Alexandre Herculano que tenho lido ressalta o pouco apreço do autor por Coimbra e, principalmente, pelo ensino que então se ministrava na Universidade. O texto ora apresentado vai, inequivocamente, nessa linha.
Apesar do profundo respeito pela figura maior que Herculano é, não posso esquecer que foi ele o responsável pela saída de Coimbra das duas cousas mais importantes que havia no convento [de Santa Cruz e que] eram a livraria e o sanctuario: as preciosidades d’um e d’outro foram levadas para a cidade do Porto.
COIMBRA
Depois de Braga é Coimbra, em nosso entender, a mais bem assentada cidade de Portugal; e até não sabemos se a vizinhança do Mondego lhe dá a primazia sobre a antiga capital do Minho. É verdade que as sendas [o nome de estradas não o merecem] que de várias partes conduzem a Braga, acompanhadas em quase toda a sua extensão de vales cultivados, de ribeiros deleitosos, de montes selvosos, de pequenas povoações, não contrastam com o painel que descobrimos ao aproximarmo-nos da cidade; enquanto as estradas que do Porto ou de Lisboa conduzem a Coimbra, comumente por brenhas cerradas, descampados inférteis, pinhais extensíssimos, mas sem majestade, e povoações pobres e derramadíssimas, preparam o caminhante com hábitos de tristeza e de tédio, para contemplar a cena de Coimbra, que, semelhante a uma pirâmide esculpida, se levanta dominadora dos seus fresquíssimos e saudosos arredores, e do tranquilo Mondego, que se revolve mansamente a seus pés, como uma fita branca, lançada por meio de um tapete de verdura.
Da «Collimbria», «Conimbrica» ou «Conimbriga» dos romanos já não existem há seculos, senão umas gastas ruinas, no sitio chamado Condeixa velha, a duas léguas da moderna Coimbra. Esta, fundada por Ataces, segundo dizem, só data do tempo da dominação dos Alanos e Suevos. Da época da sua fundação pretendem alguns ainda sejam as armas atuais da cidade; mas semelhante crença tem todos os visos de fabulosa.
No tempo da invasão dos mouros, Coimbra, como todas as demais povoações de Portugal, caiu debaixo do jugo dos conquistadores. Seguiu-se a longa luta dos cristãos com os muçulmanos: no mesmo século Coimbra foi resgatada; mas no século seguinte tornou ao poder dos infiéis, até que em 1064 D. Fernando o Magno, rei de Castela e Leão, a conquistou pela última vez. Parece que os monges beneditinos de Lorvão, que tinham trato com os cristãos da cidade, ajudaram D. Fernando a levá-la de salto, entrando pela porta da traição. – Houve aqui grande estrago de mouros, e querem afirmar que o arco de Almedina é um monumento desta vitória, dando aquela palavra a significação de «porta do sangue»; mas nem esta é a verdadeira tradução do vocábulo arábico, nem por certo o arco que existe junto á igreja de S. João d’Almedina, é de tão remota antiguidade.
Divididas as conquistas de D. Fernando entre seus filhos, guerrearam uns com os outros por causa da herança paterna, pertencem essas guerras á historia de Espanha. Basta saber que no tempo de D. Afonso 6.º de Leão, neto do conquistador de Coimbra, a cidade foi entregue ao conde D. Henrique com o resto de Portugal, dado em dote da rainha D. Tareja, sua mulher. Desde este tempo até o de D, João 1.º Coimbra foi o principal assento da corte dos reis portugueses; porque a sua posição geográfica, a salubridade do clima, e a fertilidade do território lhe davam jus a semelhante primazia. Lisboa, entretanto, crescia em poder e riqueza, que lhe atraía o seu porto magnifico, propriíssimo para o trato de comércio, e nas cortes celebradas na mesma Coimbra, em tempo de D. João 1.º, os povos pediram a el-rei mudasse a residência da corte para a cidade do Tejo.
O Panorama. Número 51. 21 de Abril de 1838. Pg. 121
Contavam as antigas tradições, que a Virgem cristã Comba (Columba-Coomba-Comba), em tempos em que esta região era dominada pelos mouros, fora requestada por um poderoso príncipe crente de Mafoma, a qual, para se escapar às suas ternuras e solicitações, fugira para estes sítios, então ocupados por floresta inextricável, onde conseguiu ocultar-se algum tempo. Descoberta um dia pelo príncipe apaixonado, quando ela ia ao fundo da colina, buscar água à fonte, que ainda hoje se chama da Santa, novas tentativas de sedução a envolveram.
Como fosse inabalável a resistência da donzela a apostar da fé em Cristo, e a romper o seu voto religioso de virgindade, arrastaram-na encosta acima até uma clareira, onde os cristãos haviam erguido uma grande cruz de madeira para aí se reunirem e orarem; nesta cruz a fixaram os do séquito do príncipe, e, assim exposta, foi alvejada com setas, até exalar o último suspiro, invocando, com os olhos no céu, o divino Esposo.
Depois os cristãos tiraram da cruz o corpo da Mártir, e sepultaram-no naquele mesmo local, onde sofrera o martírio, e que ficou a ser muito frequentado de gente piedosa, que vinha junto da sepultura suplicar as intercessões da Santa.
Tempos decorridos, passou Coimbra ao domínio dos cristãos, sendo então construída uma capelinha modesta, da invocação de S." Comba, que ficou a abrigar a sepultura.
Até aqui o que nos dizem as lendas.
Esta capelinha existia, é certo, no século XII ... nos princípios do 2.° quartel daquele século, foram procuradas as relíquias de S.ta Comba na cripta da sua capela, onde a tradição dizia haver sido sepultada. Lá encontraram o esqueleto, que pelos monges da Caridade foi trasladado para a sua igreja de S.ta Justa, de cujas ruínas ainda hoje restam vestígios no local conhecido pela denominação de terreiro da herva.
Decorridos alguns anos, foram as venerandas relíquias segunda vez trasladadas, agora para a igreja de S. João, contígua ao templo de S.ta Cruz.
Ainda há anos se via numa parede da casa, que atualmente está transformada em café ou restaurante, uma lápide com inscrição a designar o local, onde as relíquias estiveram depositadas. Dizia em belos caracteres do século XII, onciais de mistura com capitais: HIC QVIESCVNT OSSA BEATE COLVMBE
Mais tarde, no século XIII, fez-se nova trasladação, desta vez para o templo do mosteiro crúzio, donde vieram a ser cedidas relíquias para algumas igrejas, indo uma relíquia insigne para a Catedral, onde se erigiu um altar na nave da Epístola em honra de S." Comba.
Por fim as relíquias restantes da Virgem e Mártir de Coimbra foram recolhidas no Santuário de S.ta Cruz, e ali se guardam.
... Considerava-se S.ta Comba especial advogada contra as maleitas ou sezões, doença que atacava e dizimava os habitantes dos campos do Mondego, então pantanosos e muito insalubres.
Vasconcelos, A. A ermida de Santa Comba. In “Correio de Coimbra”, 227, Coimbra, 1926.09.25.
Era o ano de 878 … segundo a contagem comum da sucessão dos tempos, ano de novecentos e dezasseis, da hispânica, que nessa época se usava.
Ano glorioso este, ano pedra angular em que assenta o teor da vida moderna da cidade e da região.
Feito de tal grandeza e que, contudo, hoje, passado um milénio e centena de anos, o seu conhecimentos nos é dado por breve nota da ‘Chronicon Laurbanense’: "Era DCCCCXVI prendita est conimbrie ad ermenegildo comité". Na era de 916 foi tomada Coimbra pelo conde Ermenegildo.
Era este conde de Portucale e Tui e procedeu por ordem do rei asturo-leonês D. Afonso III – o grande, aquele que de Oviedo veio assentar a sede do governo em Leão.
Oito palavras somente a rememorar esse facto de extraordinário alcance. Comentado singelamente pelo ‘Chronicon Gotorum’, na ementa de resenha da vida daquele rei … Coimbra, possuída pelo inimigo, fora ermada e povoada a seguir por gente vinda de acima Douro.
Ação epopeica consideramo-lo, como em todos os tempos os vencedores julgaram as suas; porém, nós, com a sensibilidade moderna, meditamos nos morticínios a seguir à tomada e na redução ao cativeiro dos moradores restantes.
… E esse período, essa primeira reconquista cristã, permaneceu por um século, até às razias de Almançor, o que na mesma ementa é comentado sumariamente: … Almançor, pois, tomou Coimbra e, como a muitos foi ouvido dizer, ficou deserta sete anos, sendo reedificada pelos ismaelitas, que a conservaram em seu poder.
Era o ano de 987, como para Montemor se daria em 990. Se foi despovoada a cidade, o território permaneceu com a gente adstrita.
… a tomada de Coimbra, leva-nos … a da restaurada diocese visigótica conimbricense, a qual tinha por limite norte a corrente do rio Douro, desde Gaia (‘Castrum Antiquum’), com o distrito de Aveiro, prolongando-se para sul do Mondego.
… a vida (em Coimbra) podia decorrer normalmente, só entrecortada das lutas domésticas que não foram pequenas e dos ataques muçulmanos na fronteira sul, porque aqui, como diz Gonzaga de Azevedo … «Coimbra, cidade de fronteira com os sarracenos, mudou frequentemente de possuidor no decurso do século X. Libertada por S. Rosendo, em 968, voltou ao poder dos muçulmanos, que a dominaram até 981, e, em 975, percorriam e despovoavam a terra, até ás vizinhanças do Douro, sem obstáculo».
Gonçalves, A. N. 1978. Evocação do XI Centenário da Primeira Reconquista Cristã de Coimbra. Separata das Actas das I Jornadas do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro. Coimbra, Edição do GAAC. Pg. 3 a 5
Como seria, porém, internamente, o orgulhoso alcácer? Não é fácil sabê-lo, por enquanto, atento o carácter limitado, em especial justamente no que respeita às áreas a norte da muralha, das intervenções realizadas no «Pátio das Escolas». Mas é certo que este flanco parece revelar a presença de estruturas habitacionais, ao mesmo tempo que a conservação dos rebocos no intradorso do trecho mural exumado sob o gigante da Capela … sugere, também aí, a existência de espaços habitados. Outro tanto sucederia a norte, provavelmente, como indicia a pequena «cloaca» da fachada (mesmo que a natureza da relação topográfica, entre o «ninho das águias» e o plano mais elevado, obrigassem certamente os construtores do alcácer a providenciar sistemas de drenagem)
… Por outro lado, no que respeita ao lanço de entrada, de acesso direto, como indicam os cubelos de flanqueio e porta dupla, seguramente, na tradição califal do séc. X, como impunha a existência de dispositivos internos de defesa, não parecem os «encontros» garantir aí espessura adequada à implantação de dependências … Porém, estrutura “marcadamente militar”, erguida numa cidade «submetida», confiada às ordens de um «qa’id» - como afirma o relator da conquista de Fernando Magno – e não, por certo, de um «governador», muito dificilmente ostentaria, em anos apesar de tudo recuados, a tipologia dita de «governo», palacial, mas essa outra, essencialmente «funcional», assente no pátio único central, em torno ao qual, apoiadas na muralha, se alinhavam as diversas dependências, característica, de facto, dos palácios omíadas, em cujo modelo se inspirava e dos «rubut» dos místicos guerreiros da «djihad» que, em fim de contas, na sua própria essência, fundamentalmente configuraria. Mas talvez, na verdade, se não assemelhasse a qualquer deles. De facto, persiste ainda, em redor do «alcácer de Qulumryya», a enigmática aproximação feita por Vergílio Correia e Nogueira Gonçalves entre o seu aparelho construtivo e o da própria cintura das muralhas urbanas, tradicionalmente atribuídas ao período romano. E talvez também por essa via seja possível precisar melhor o verdadeiro recorte da construção que nos ocupa.
Pimentel, A.F. 2005. A Morada da Sabedoria. I. O Paço real de Coimbra. Das Origens ao Estabelecimento da Universidade. Coimbra, Almedina, pg. 193 e 194
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