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Folheto, pormenor
Mais uma vez em Coimbra, procura um destino profissional duradouro, tirando uma especialidade: "Dispus-me, finalmente, a meter o corpo aos varais. Comecei a praticar no consultório de um colega otorrinolaringologista".
…. Concluída a especialidade, nova fase surge m sua vida. Como não era fácil abrir consultório em Coimbra, vai para Leiria, onde "montou a sua tenda", segundo as suas próprias palavras. Foi determinante para a escolha da cidade a proximidade de Coimbra, o que lhe permitia. ir aí todas as semanas, para o convívio literário de que necessitava e pela proximidade das livrarias, das tertúlias e da tipografia onde imprimia os seus livros. E um deles, saído em 1939, «O Quarto Dia da Criação do Mundo», narração da sua viagem pela Europa, da Espanha franquista e da Itália de Mussolini, bem como do encontro em Paris com os exilados do regime salazarista, iria levá-lo à prisão do Aljube, em Lisboa, onde passou o Natal desse ano e escreveu alguns dos seus mais significativos poemas.
Liberto da prisão, regressa a Leiria. No ano de 1940 a vida de Miguel Torga iria tomar um novo rumo, com o casamento com Andrée Crabbé, uma jovem belga que conhecera em Coimbra em casa de Vitorino Nemésio, de quem era aluna em Bruxelas. E nesse ano publica um livro de contos, Bichos, um dos mais representativos da sua obra. A censura não dormia e, no ano seguinte, um outro livro do escritor, «Montanha», é apreendido.
Continua a viver, agora casado, em Leiria. Mas a cidade não preenchia os seus anseios. E quando pensa em mudar de ares, a resposta surge naturalmente: "Coimbra, como não podia deixar de ser. Era ela, quer eu quisesse quer não, a, minha Agarez alfabeta, o húmus pavimentado que os meus pés pisavam com mais amor".
E assim, mais um nome vinha, juntar-se aos clínicos da cidade. Num primeiro andar do Largo da Portagem estava agora o seu consultório. Na parede, uma placa: "Adolfo Rocha - Ouvidos, Nariz e Garganta".
Em frente, o pequeno jardim, com a estátua de Joaquim António de Aguiar, mais além o Mondego e, em fundo, o verde do horizonte de Santa Clara.
Não longe, no n.º 32 da Estrada da Beira, num caminho bordejado pelo Parque da Cidade, instalara-se o casal. Nas traseiras, a vista descia até ao Mondego numa paisagem inspiradora.
O seu consultório era não só um local de alívio para os seus doentes, mas também um ponto de reunião com os seus amigos e com sucessivas levas de estudantes, onde tudo se discutia, da política à literatura, e sobretudo, as suas janelas eram os olhos com que Miguel Torga viu, no decorrer dos anos, o mundo à sua volta e as alterações que se iam desenrolando e de que, observador atento, deu conta nos seus livros … O seu consultório era também a sua oficina de escritor.
Numa cidade que mudava, também ele mudara de residência. E na Rua Fernando Pessoa, para os lados da Cumeada, passa a ter o seu novo lar, em 1953, a que, em breve, o sorriso de uma filha vem dar nova vida.
O reconhecimento da sua obra não tardaria, com a atribuição de vários prémios, quer nacionais quer internacionais, e a sua universalidade está bem patente na tradução dos seus livros nas mais variadas línguas e nos mais diversos países.
… O tempo corria, inexoravelmente. Para trás iam ficando as longas jornadas de caça, o subir dos montes, a descida dos vales. O médico usaria menos vezes o bisturi, daria maior descanso ao estetoscópio. E um dia o velho consultório da Portagem deixaria de ser o seu posto de observação. Estávamos em 1992: "Desfiz-me do escritório. Mil circunstâncias adversas conjugaram-se encarniçadamente nesse sentido. E adeus, meu velho reduto, onde durante tantos anos lutei como homem, médico e poeta". Mais do que uma porta que se encerrava, era uma vida que se escoava, fechadas que estavam as janelas por onde o mundo entrara pelos seus olhos iluminando as paredes do que fora espaço de tertúlia, alívio de dores e oficina de poesia.
Andrade. C.A. Passear na Literatura. Miguel Torga. Sem data. Coimbra, Câmara Municipal.
Um dos itinerários organizados por Carlos Santarém Andrade, no âmbito da iniciativa Passear na Literatura, foi dedicado a Miguel Torga. Dessa iniciativa tão meritória, para além da memória, resta um pequeno e muito bem ilustrado folheto com o título … A ver correr Serenas, as Águas do Mondego.
É dele que nos socorremos para, mais uma vez, lembrar Torga e o seu percurso pela terra que adotou como sua.
Folheto, capa
Adolfo Correia da Rocha nasceu em São Martinho de Anta, em Trás-os-Montes, em 1907. Depois de concluir a escola primária na sua terra natal e após uma breve passagem pelo Seminário de Lamego, ruma ao Brasil, com 13 anos de idade. Em 1925 regressa a Portugal, chegando a Coimbra no Outono desse ano, a fim de tirar um curso.
Para ingressar na Universidade precisava primeiro de fazer o curso liceal. Instalado num pequeno colégio na Estrada da Beira (hoje Rua do Brasil), faz os cinco primeiros anos em apenas dois.
Morando depois numa casa ao fundo da Ladeira do Seminário, conclui num só ano os dois que lhe faltam, frequentando o Liceu José Falcão, então sediado no antigo Colégio Universitário de S. Bento, sobranceiro ao Jardim Botânico.
Matriculado na Faculdade de Medicina, em 1928, publica então o seu primeiro livro, «Ansiedade». Frequentador da tertúlia literária da «Central», não tarda a sua colaboração na «Presença», em 1929, altura em que muda para a república «Estrela do Norte» (na sua ficção «Estrela de Alva»), também na Ladeira do Seminário, n.º 6. Com a chancela da «Presença» vem a lume o seu segundo livro, Rampa, em 1930. No entanto, em breve se dá a sua cisão com o movimento presencista, juntamente com Edmundo Bettencourt e Branquinho da Fonseca. Com este, que usa o pseudónimo de António Madeira, edita a revista «Sinal», de que apenas sai um número. A par dos estudos médicos a sua obra literária. prosseguia, com os contos de «Pão Ázimo» e os poemas de «Tributo», em 1931, ou «Abismo», também de versos, saídos dos prelos da Atlântica. Em todos eles usa ainda o seu nome civil, Adolfo Rocha. Finalmente, conclui o curso, em dezembro de 9933.
Formado em Medicina, regressa a S. Martinho de Anta. Mas não cabiam na terra natal as suas ambições. E pouco depois está de novo em Coimbra. Sem uma situação profissional definida, numa terra em que abundavam os médicos, a escrita continuava, e mais uma vez a «Atlântida» lhe iria imprimir um novo livro. Escritor e médico, como depois escreveria, "serviria devotadamente a dois amos". Mas sentia que era necessário separar os nomes de quem empunhava o bisturi e de quem manejava a caneta. Adolfo Rocha seria o clínico, cuidando dos corpos. Para o escritor iria buscar na admiração por Cervantes e por Unamuno o nome de Miguel, a que acrescentaria Torga, matriz transmontana das urzes selvagens das suas origens. E quando em 1934 sai o livro A Terceira Voz, encimava o título o seu nome literário. "Com um Ósculo vo-lo entrego. Chama-se Miguel Torga'', escreveu pela última vez Adolfo Rocha no prefácio.
No mesmo ano vai substituir, temporariamente, o médico de Vila Nova, no concelho de Miranda do Corvo, tomando todos os fins de semana, quando as obrigações médicas não o impediam, o comboio para Coimbra, onde tinha um quarto para as suas pernoitas na A C. E. (hoje A C. M.), na Rua Alexandre Herculano. E do convívio à mesa da «Central», bálsamo semanal para o isolamento da aldeia, nascia mais uma revista, «Manifesto», que funda em 1936 com Albano Nogueira. Nesse ano, mais um livro, «O Outro Livro de Job». Não se demoraria muito em Vila Nova. O regresso do médico permanente, as intrigas aldeãs e a falta de saúde fazem-no regressar à cidade do Mondego.
Andrade. C.A. Passear na Literatura. Miguel Torga. Sem data. Coimbra, Câmara Municipal.
A existência de uma Feira dos Estudantes está documentada desde os primórdios da instalação da Universidade em Coimbra. Os Estatutos da Universidade, de 1597, referem-se a uma “feira franca que se faz na praça dos estudantes”. O lugar que adquiriu o seu próprio nome – Feira dos Estudantes – no séc. XVI, ainda hoje existe, no largo frente à Sé Nova de Coimbra.
Fig. 3 – Foto da Feira dos Estudantes datada de década de 70, do séc. XIX (col. Alexandre Ramires).In: Passado ao Espelho. Máquinas e imagens das vésperas e primórdios da Photographia.
Felizmente, sobreviveu no tempo um volume dos almotacés da feira, com o preço dos géneros ali vendidos (1796-1809). Os almotacés eram sempre doutores ou graduados na Universidade, que eram eleitos para o cargo, para taxarem os preços dos produtos vendidos e verificarem a qualidade dos mesmos.
É esse volume que podemos consultar, para conhecer o que a Natureza produzia ao longo das diversas estações do ano e que géneros alimentares existiam na feira, sejam os legumes, as frutas ou mesmo o peixe.
Assim, em maio e junho de 1804 (Fig. 1) podemos ver o registo dos preços das ervilhas (tortas e direitas), as favas, o feijão verde, mas também o ruivo, a pescada, o cação, a tainha, a raia, a sardinha, o robalo, as enguias, etc. Entre maio e julho, surge sempre o registo das cerejas, cuja produção, na estação própria, certamente trazia à feira o fruto tão saboroso, havendo também a designação de “cereja preta”.
Fig. 1 - Registo dos produtos almotaçados na feira dos Estudantes, de 23 de maio a 19 de junho de 1804
Os adágios populares espelham bem esse devir do tempo e a passagem dos meses e estações do ano, como o que escolhemos para introduzir um exemplo dos alimentos nos meses de final de ano: em novembro, prova o vinho e semeia o cebolinho.
Fig. 2 – Registo dos produtos almotaçados na feira dos Estudantes, de 29 de novembro a 13 de dezembro de 1803
A informação sobre a venda, em 29 de novembro de 1804, de “penduras de uvas brancas” também identificadas como “uvas de dependura”, diz respeito às uvas que, fora da estação própria, depois da vindima, se podiam conservar, dependuradas, para se consumirem nos meses de setembro a dezembro. Assim como se referem as “uvas secas” ou passas de uvas. Quanto a outra fruta, saboreavam-se as “maçãs doces da Beira” e a “fruta doce da Beira” (v. dias 29 de novembro e 13 de dezembro de 1803). Também a castanha, fora da sua estação, se poderia consumir seca. E aí está, a designação “castanha longal seca”, tal como a castanha rebordã e a castanha longal, vendidas em abril ou em junho, certamente com outras formas de conservação.
Os testemunhos dos hábitos alimentares da população estudantil, e de todos os docentes e funcionários da Universidade que poderiam abastecer-se na feira, são um interessante tema de estudo, existindo, felizmente, estas fontes documentais que atestam a diversidade de produtos, em cada estação.
Os queijo e paios do Alentejo, esses não respeitam qualquer estação e, pela sua qualidade, estão presentes ao longo do ano, com registos de preços, desde 1796, sem tirarem o lugar aos “queijos do Sabugueiro”, pela forma como, repetidamente, surgem registados.
Bandeira, A. M. Estações. Maio pardo e ventoso faz o ano farto e formoso. Acedido em Acedido em https://www.uc.pt/cultura/estacoes/maiopardo/
A preparação das entradas publicadas sobre o brasão de Coimbra, implicaram um trabalho de leitura do que sobre o tema se tem publicado, bem como alguma investigação no Arquivo Histórico do Município de Coimbra.
Estava em causa uma reflexão, à luz dos conhecimentos atuais, da evolução do brasão de Coimbra.
Reflexão que teve a ajuda da Dr.ª Paula França que nos chamou a atenção para o facto de os diversos autores que ao longo do tempo tem escrito sobre o brasão e o selo da cidade acabam por ir dar ao artigo de Afonso de Dornelas, acrescentando ser comum não só a utilização das referências ali citadas, bem como o tema tratado girar sempre em torno da figura no selo representar uma mulher de cabeça coroada, a Rainha / a Virgem / Nossa Senhora / ou a Cindazunda.
Aquela Investigadora, no seu trabalho quotidiano de investigação, localizou no Arquivo Nacional da Torre do Tombo outros documentos que permitem concluir: houve um selo com figura coroada, anterior ao selo com a cobra e esse selo está presente em mais actos/documentos do que aqueles que são referenciados por Afonso de Dornelas.
Apresenta, os seguintes exemplos.
- Carta de venda feita por Johannes Petris ao cabido da Sé de Coimbra de uma herança em Embibera, pelo preço de 60 morabitinos, datada de abril de 1244.
ANTT. Carta de venda datada de 1244.04. Acedida em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7585002
ANTT. Carta de venda datada de 1244.04, pormenor do selo. Acedida em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7585002
Trata-se de um documento lavrado quando reinava D. Sancho II, antes do início do seu exilo em Toledo, onde viria a morrer em 1248. O selo pendente representa, unicamente uma mulher coroada.
- Carta de venda feita por Pedro Eanes, Alcaide, Tomás Martins e Martinho Eanes, Alvazis de Coimbra, por autoridade de carta régia de 1275.10.11, a D. João Pires, Cónego de Coimbra, de um olival com todas as suas pertenças, no lugar chamado Fonte da Rainha, no termo de Coimbra, por 200 libras.
ANTT. Carta de venda de venda datada de 1275.10.11. Acedido em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7585006
ANTT. Carta de venda de venda datada de 1275.10.11,pormenor do selo. Acedido em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7585006
Trata-se de um documento lavrado 31 anos depois do anteriormente referido, quando D. Afonso III já era, efetivamente, rei de Portugal e no qual para além da Mulher coroada são representados dois castelos com as cinco quinas e por baixo uma serpente.
No que concerne às pedras colocadas por cima das portas das casas foreiras da Câmara de Coimbra, com cronologia desconhecida, guardadas no Museu Nacional de Machado de Castro, já agradecemos aos Técnicos daquele Museu, Drs. Pedro Ferrão e Jorge Venceslau, a ajuda na localização das imagens que ilustraram e documentaram este conjunto de entradas.
De assinalar que nas referidas pedras, quanto à base sobre a qual está a figura feminina, existem exemplares que mais se assemelham a um pedestal e quanto aos animais estando o leão sempre presente, numa das pedras o dragão foi substituído por uma serpente. Entre outros exemplos possíveis, apresentamos o seguinte.
© DGPC| Arquivo do MNMC. 710; E589
Sobre a razão da presença de uma serpente no brasão de Coimbra não se conhece qualquer documento que a explique.
Tendo procurado um significado para a sua simbologia encontramos no Diccionario de símbolos, de Juan-Eduardo Cirlot, a seguinte passagem. Las serpientes son poderes protectores de las fuentes de la vida y de la imortalidade así como de los bienes superiores simbolizados por los tesoros ocultos. Hay una evidente conexión de la serpiente com el principio feminino.
Según Zimmer, la serpiente es la fuerza vital que determina nacimientos y renacimientos, por lo cual se identifica com la Rueda de la vida.
Será esta a explicação para a presença da serpente, depois transformada em dragão?
Aqui chegados deixamos à consideração e à discussão dos leitores as seguintes conclusões.
- O brasão de Coimbra foi evoluindo ao longo dos séculos até se fixar em 1930, na composição que hoje apresenta.
- As lendas da Cindazunda e outras que ao longo do tempo foram surgindo, são isso mesmo lendas sem qualquer suporte documental que as justifiquem.
- A hoje Sé Velha foi reconstruída sob a invocação da Virgem Santa Maria, na segunda metade do século XII, por iniciativa de D. Afonso Henriques e de D. Miguel Salomão, bispo de Coimbra. Partilhamos a hipótese levantada pela Dr.ª Paula França de a figura feminina que decora o selo de Coimbra, na sua versão mais antiga documentada, se deverá tratar da Virgem Santa Maria.
- Lembrando que foi nas cortes de Coimbra que ocorreu a aclamação de D. João I, com a consequente criação de uma nova dinastia, será credível a explicação de que o Município de Coimbra de então assinalou esse facto tão relevante na História de Portugal, com a integração no brasão da Cidade de elementos do brasão dessa nova dinastia, ou seja, o leão e o dragão.
Deixo à reflexão dos leitores a decisão sobre a justeza das conclusões tiradas.
Rodrigues Costa
O sacrário de altar, que António Gomes fez para a capela do palácio do Sr. Dr. Carvalho Monteiro em Sintra, é de um desenho que o moço artista complicou no desejo, que tão nobremente o distingue, de se aperfeiçoar e de caminhar na profissão em que é tão estimado pelo seu caracter, como pela alegria com que trabalha, sempre a procurar fazer melhor.
O seu sacrário, de uma bela linha, com os santos em oração sob baldaquinos rendilhados, encimando um curioso enfeixamento de colunas mostra todas as suas qualidades e recursos artísticos.
Luís da Fonseca – Parte média de um frontal de altar
Luiz Fonseca é de uma família de artistas e tem trabalhado sempre na oficina de João Machado, ao lado do pai, artista justamente considerado em Coimbra, há muitos anos.
O seu trabalho - um frontal de altar - é delicadamente tratado, numa grande doçura de cinzel, amorosamente detalhado, e revela-o já como trazendo galhardamente o nome que assinala toda uma família de excelentes canteiros.
Para terminar a resenha dos trabalhos em pedra, apresentados na exposição da Escola Livre das Artes do Desenho, resta-me falar da mísula de António Gomes.
É um rapaz muito novo ainda, mas, em tudo o que faz ou planeia, revela uma natureza artística fora do vulgar.
Desenho ou modelação sua fazem demorar o olhar.
O seu desenho revela um espirito que viu e a intenção de dizer claramente o que o impressionou na obra de arte ou da natureza.
A sua modelação não tem nada da banalidade d'um estudante que tenta reproduzir planos e volumes.
Modela por amor á pedra, para fixar numa matéria branda o que concebeu para ser executado em pedra. Não é o barro que vê quando está modelando, nem os seus efeitos que procura, é a pedra que os seus olhos estão lavrando, tentando realizar a imagem no barro dúctil.
A palheta é como que o escopro de dentes e no barro traça logo os efeitos que mais tarde há-de realizar na pedra
As cabecinhas de dois anjos da mísula eram de uma técnica de encantar, como toda a execução, em que a pedra por efeitos no lavrar se coloria dos mais imprevistos tons.
António Gomes – Modilhão em gesso
O modilhão, que apresentou em gesso, é uma obra de forte execução, que não parece de uma criança. A mascara é colorida e viva, o desenho fácil e largo.
Na modelação, os seus dedos não deixam seduzir-se pelas facilidades do barro, que trata como se fosse uma matéria dura, num grande amor pela pedra, que revela a excecionalidade da sua organização artística.
Com amor á sua profissão, e á matéria que lavra, com a sua forte organização artística, António Gomes virá um dia a honrar singularmente a arte em que trabalha e que se assinala no movimento artístico nacional por tão notáveis obras dos artistas de Coimbra.
Na alocução proferida na abertura da exposição disse António Augusto Gonçalves: as artes da pedra e do ferro estão ostentando em Coimbra recursos de vitalidade e tão desenvolvida compreensão estética como em parte alguma do país.
Assim o mostra o que deixamos dito, quanto á arte de canteiro, e esperamos demonstra-lo também quanto á serralharia artística, objeto do próximo artigo, com que fecharemos estas despretensiosas notas sobre a exposição de Coimbra.
JOAQUIM MARTINS TEIXEIRA DE CARVALHO
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
Coimbra: Uma Escola de Canteiros 4
António Carolino – Verga de uma fresta manuelina
Dos outros lavrantes expositores, apenas não é discípulo de João Machado o Sr. António Carolino, artista de dotes naturais, que se tem desenvolvido á vontade, longe de qualquer direção, e que é um dos sócios mais recentes da Escola Livre das Artes do Desenho.
Expôs a verga de fresta manuelina, que reproduzimos e foi feita, como aliás todos os trabalhos de canteiro de que teremos a ocupar-nos, para o palácio que faz atualmente construir em Sintra o Sr. Dr. Carvalho Monteiro.
O desenho foi bem compreendido, num desenvolvimento gradual e natural das linhas, sem hesitações; a modelação é vigorosa, o corte largo, e planos bem acentuados e bem graduados.
José Ferreira – Gárgula
A gárgula de José Ferreira é, pela conceção, uma das obras expostas em que mais se acentua o espirito da Renascença, pela visagem dolorida da máscara terminal.
Não é uma obra forte, como as gárgulas do Jardim da Manga ou do Colégio de S. Tomás, em que o espirito gótico se vê ainda bem na nitidez dos planos, no grotesco das figuras, na acentuação caricatural dos detalhes anatómicos; é antes um trabalho de completo espirito do renascimento na conceção e na sua realização técnica, de uma execução, de uma doçura exageradas talvez.
A boca é enigmática como a compreendeu a arte do renascimento; ri e chora, ao mesmo tempo, misteriosamente.
A anatomia, de visão, dá bem a carne, saindo viva do tufo de plantas que prende a gárgula ao edifício.
O movimento, escolho em que tantas vezes se embaraçam os artistas modernos, que tentam criar tipos novos d'estas delicadas fantasias artísticas, é bem achado: a figura adianta-se numa atitude natural, graciosa, em pleno equilíbrio no gigante de que espreita.
João das Neves Machado – Pia de água benta
João das Neves Machado, primo de João Machado tem um modo de talhar a pedra, com decisão, em planos largos e encontrados, de um belo efeito decorativo. É um artista de recursos naturais, cuja individualidade se acentua dia a dia, conhecendo bem a natureza da pedra em que trabalha, e sabendo utilizar todas as suas qualidades nos efeitos decorativos que obtém.
A sua execução pode dizer- se colorida, tais são os efeitos de luz e sombra que procura, já pela disposição dos planos e volumes, já por particularidades de técnica que modificam o aspeto da pedra, nas esculturas de outros, uniformemente branca e monótona.
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
João Machado é o mais completo discípulo de António Augusto Gonçalves, quer na sua arte, quer na orientação geral do seu espirito.
E uma alma de artista formada já, um temperamento que começa agora a contar-nos as suas visões artísticas.
Expõe duas obras - a predela em execução, e um estudo em gesso, ambas para o altar de Nossa Senhora da Conceição na igreja da Santa Cruz, que, como as obras de arte capitais do convento, foi delineado em estilo do renascimento.
É seu o desenho como a execução da obra. João Machado conhece a Renascença bem de muito a ter estudado, e nesse estudo tem feito a educação do seu espirito que é, apesar de tudo, apaixonado por todas as tentativas modernas de arte.
A Renascença é na verdade a mãe da escultura contemporânea: Donatello e Miguel Ângelo são os ascendentes diretos de Rodin.
Muito cedo diretor de uma oficina, João Machado tem versado toda a vida problemas de arquitetura; daí o equilíbrio de todas as suas obras, ou sejam o plano de um grande edifício, ou o desenho de uma pequena joia para o capricho de um ourives.
Os maiores artistas do renascimento italiano começaram por ourives; só mais tarde passaram a escultores, revelando sempre o seu trabalho o amor que lhes ficou ao seu primeiro mister.
Com João Machado deu- se o fenómeno inverso: foi do estudo e contemplação demorados das obras da Renascença que lhe nasceu, pela admiração, o amor às artes do metal.
Assim é que hoje são numerosas as obras feitas em ferro forjado por desenhos seus; e mais de um tem feito para obras de ourivesaria.
Assim se criou e completou nele o espirito da Renascença, que domina a maior parte da sua obra decorativa.
Mas, apesar de tão intimamente consubstanciado com a alma dos artistas da Renascença, João Machado é um artista de hoje, como o prova a sua larga obra.
A sua alma moderna vê-se mesmo através dos seus mais perfeitos trabalhos do renascimento.
João Machado – Predela de um retábulo, em estilo Renascença, para a igreja de Santa Cruz de Coimbra
Na predela tudo revela a posse em que está deste estilo: a composição na linha geral e nos detalhes, a disposição das figuras dos doutores, os baixo relevos, a riqueza dos baldaquinos, a variedade dos capitéis, a delicadeza dos medalhões, a beleza com que a Renascença vestia a admiração pelos camafeus antigos, os frisos decorados, o corte das molduras, a sua disposição, as suas penetrações.
O altar de João Machado é bem uma obra da Renascença pelo espirito, pela linha, pela beleza e pela harmonia.
É-o também pela análise subtil dos movimentos fugidios que animam todas as figuras, coisa tão própria da Renascença a que, no apostolado da Sé Velha, dá a unidade, a intensidade dramática que nos domina naquela obra de arte excecional.
Pela riqueza da decoração e pelo seu espirito, a obra da predela é da Renascença francesa e lembra por uma aproximação fácil a do púlpito de Santa Cruz, não faltando quem erradamente iguale João Machado ao artista genial que lavrou aquelas formosas pedras.
Os dois artistas são, porém, dois temperamentos opostos, em duas situações diversas de vida.
O autor do púlpito é um torturado, conhecendo bem toda a miséria da carne, toda a alucinação que persegue os artistas franceses muito para além do período gótico.
O seu trabalho condensa, é um artista reprimindo-se, cortando por exuberâncias.
João Machado é um tranquilo, uma natureza que se expande alegre, nas primeiras horas da sua vida de artista.
As figuras de João Machado aparecem-nos tranquilas, a sorrir, quando evocadas; as do autor do púlpito perseguem-nos.
É que ao artista de hoje falta o meio de então.
Só assim se poderiam gerar obras iguais de sentimento e intenção decorativa.
Para fazer as gárgulas do Jardim da Manga, é necessário ter visto os corpos deformados pela histeria, ter visto o diabo nos corpos dos possessos, na crispação das mãos e dos pés, torcendo o olhar, convulsionando a garganta num grito satânico.
Para se sentir assim a pompa dos brocados raros, a leveza aristocrática das linhas preciosas era necessário ver e admirar todo o esplendor do culto antigo no convento de Santa Cruz.
João Machado não tem tido tempo de se encontrar com Deus ou com o Diabo, que nestes tempos se furtam mais á analise; o seu talento criou-se na adoração do seu lar modesto.
Por isso é vulgar encontrar, em imagens da Virgem que ele faz, as feições queridas da mulher estremecida, e ver o sorriso, a boca fresca dos filhos nos anjos que voam em volta dela.
João Machado é um artista do seu tempo e é hoje pelo amor á sua arte, pelo conhecimento que tem da sua evolução histórica, pela sua técnica delicada, pela sentimentalidade fina da sua alma de artista, o primeiro canteiro do seu país.
Há na exposição uma pequenina obra, que mostra que o seu espirito inquieto, na ânsia de saber, aspira a mais alguma coisa. É o busto da filha, trabalho incompleto, mas em que a frescura da boca, a delicadeza de modelação do colo e da parte superior do peito, revelam uma tendência nova do seu espirito.
Deve segui-la.
Modele do natural pertinazmente, como tem modelado de obras de arte e encontrará pela admiração da carne a revelação do pensamento, como a admiração do mármore o levou á revelação da carne e da vida.
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
A Escola Livre das Artes do Desenho não passa, porém, o seu tempo a copiar estilos seguindo a norma do ensino clássico.
Os discípulos de António Augusto Gonçalves, canteiros ou serralheiros, sabem executar os mais modernos caprichos da arte.
É certo, porém, que os discípulos da Escola Livre das Artes do Desenho dão às interpretações dos diversos estilos um encanto; que raras vezes outros conseguem dar, e que os fazem justamente estimados e apreciados por Manini, Raul Lino, e todos enfim para quem o culto do passado não é esterilizador das fecundantes energias modernas.
Eu, por mim, nunca vi obra de estilo antigo, em capricho moderno de artista, que me desse a impressão estética das de António Augusto Gonçalves ou discípulo dele.
Deve-se isso á natureza: do seu ensino, que nos estilos passados, corno nas grandes obras da antiguidade clássica, procura apenas a intenção artística e a sua realização prática dentro da beleza.
A antiguidade clássica, o objeto de arte exótico, até as tentativas artísticas abortadas são para este mestre excecional fonte de ensino vitalizador e forte.
António Augusto Gonçalves não ensina a copiar um estilo, ensina a compreende-lo. E, na transcrição de qualquer motivo decorativo, os discípulos de Gonçalves metem sempre um pouco da sua alma.
Por isso as obras que produzem, na adoração dos velhos estilos, são vivas e não paradas e mortas como os pastiches que o romantismo e o mercantilismo da indústria moderna têm vulgarizado.
Os discípulos de António Augusto Gonçalves conhecem a unidade de espirito característica de cada estilo e a fôrma como se traduz na visão da linha, da superfície e do volume, na utilidade da luz e sombra, e sabem assim dar a uma planta rara de jardim, capricho moderno de floricultor curioso, a graça antiga com que os velhos escultores vestiam amorosamente as plantas humildes dos campos.
Alberto Caetano Ferreira – Sacrário de altar
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
Iremos aqui relembrar um artigo que Joaquim Martins Teixeira de Carvalho - Homem que em Coimbra foi, na transição do século XIX para o século XX, professor da Universidade, arqueólogo, crítico de arte, jornalista, diretor do jornal A Resistência, polemista, entre muitas outras coisas, conhecido então apenas por Quim Martins - publicou na conceituada revista Illustração Portugueza, no segundo semestre de 1906, a propósito de uma exposição promovida, em Lisboa, pela conimbricense Escola Livre das Artes do Desenho.
O texto, de excelente recorte literário e com ilustrações magníficas, revela também um profundo amor a Coimbra e ao que de melhor aqui, então, se fazia. Para uma mais fácil compreensão decidimos proceder a pequenos acertos e à atualização da grafia.
UMA ESCOLA DE CANTEIROS
Em Coimbra, a arte de canteiro é uma eflorescência do solo, criou-se pelo amor ao calcário brando, que se vê alvejar à flor da torra, mal passa a chuva forte do inverno.
E é opinião que aqui teria nascido e florescido naturalmente a mais bela escola de escultores se não fosse o que muitos julgam a ventura da arte em Portugal – o glorioso movimento da Renascença, que é mais uma página da histeria da arte estrangeira do que propriamente um movimento decisivo e determinante de progresso na evolução da arte nacional.
O delicioso claustro de Celas, tão tocante de sentimento popular e de ingenuidade artística, as obras, assinadas ou não, de dois Pires, o velho e o moço, as de Pedro Anriquez e do irmão, as dos Alvares, as estátuas anónimas que o acaso depara às vezes esquecidas, os lábios num sorriso enigmático, os olhos pequeninos a rir, cobertas de ouro, como ídolos preciosos, de um lavor gótico cheio de intenção, inquieto, revelando num detalhe mínimo sempre a vontade de progredir, palpitando da vida da consciência artística nacional em formação, muitas vezes me têm feito adivinhar a gloriosa escola de escultores que poderia ter sido a honra de Portugal e que morreu no meio dos esplendores da Renascença como as crianças fracas ao beber à vontade um leite abundante e forte.
Os canteiros de Coimbra foram sempre os primeiros de Portugal, e são-no ainda hoje, como demonstrou a exposição que vamos analisando ao correr destas sumárias notas.
Pelos trabalhos expostos não pode fazer-se ideia completa nem das aptidões dos artistas nem da sua orientação.
A exposição foi organizada com as obras em elaboração no momento, em estilo determinado, com destino certo.
O acaso fez por isso que as obras expostas tenham o cunho do estilo manuelino, ou da Renascença francesa.
João Machado – Fragmento de um retábulo Renascença, em gesso
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
A estrada romana que ligava Olisipo e Bracara Augusta, ao evitar «tanto os terrenos acidentados do interior, como as baixas alagadiças da beira-mar» encontrou como lugar de eleição para transpor o rio o estrangulamento entre o sopé do cabeço de Santa Clara e o oppidum fronteiro. Aqui surgiu a ponte. E nunca mais, até hoje, se deslocou o local de semelhante travessia.
Nos séculos XVI e XVII, e certamente em tempos anteriores, a ponte real de Coimbra, «estrada que vinha da corte e iha para ella», era das mais frequentadas do País.
… De Cernache (ou Antanhol) podia partir-se para Coimbra, «pollo caminho do campo», indo sair-se a S. Martinho do Bispo. Foi esta a direção seguida pela embaixada do Preste João em 1527.
… Mas outra estrada, mais direta, seguia pela Cruz dos Mouroços, Vale do Inferno – por Santa Eufémia – e, depois de uma «descida perigosa» penetrava na ponte pela Calçada de Nossa Senhora da Esperança.
À saída da cidade, por S. Lázaro, a estrada transpunha a Ribeira de Coselhas, pela ponte de Águas de Maias. Progredindo atravessava Assamassa, passava junto da capela de Nossa Senhora Loreto e subia à Pedrulha, depois de ultrapassada venda da Fontoura. Descendo, penetrava na ponte do Rachado e seguia para os Fornos.
Oliveira, A. 1971. A Vida Económica e Social de Coimbra de 1537 a 1640. Primeira Parte. Volume II. Coimbra, Universidade de Coimbra, pg. 5 e 6, 13 a 17
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