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Acerca da Casa de Sub-ripas ainda há poucos anos alguns caturras teimavam a favor da lenda que pusera dentro das suas paredes a tragédia do D. Maria Telles — morta ás mãos do marido por intrigas da irmã rainha.
Rainha D. Leonor Teles, a origem da intriga. Imagem acedida em https://www.google.pt/search?q=leonor+teles
O resultado da intriga. Imagem acedida em http://invitaminerva45.blogspot.com/2017/07/estorias-curiosas-da-nossa-historia-2.html
Isto, apesar de tal invenção estar claramente destruída desde 1871, com a publicação ou aproximação de certas datas históricas e documentos. Entre outros podem ver-se os artigos e cartas publicadas nos n.os 2526, 2527 e 2530 do Conimbricense daquele ano, por J. Martins de Carvalho, Miguel Osório, Senhor das Lágrimas, e Dr. Filipe Simões. Nem mesmo valeria a pena discutir o caso, se não estivéssemos num país onde quase toda a gente prefere seguir e repetir o que ouve a investigar e a refletir por conta própria.
Assim, sempre enfileiro aqui os argumentos que minaram a ingénua invenção.
Em primeiro lugar: da leitura da passagem de Fernão Lopes [Chronica de El-rei D. Fernando – Tomo IV da coleção de livros inéditos de história portuguesa.... pag. 350 a 354] invocada como fundamento da lenda — infere-se exatamente o contrário do que queriam aqueles caturras; pois o pai da nossa história muito positivamente indica como teatro da tragédia uma casa próxima á igreja de S. Bartolomeu — igreja situada no mesmo local onde existe a atual, constituída em 1756. Pertencia essa casa a um homem nobre, de nome Álvaro Fernandes de Carvalho.
— Depois: seguindo Fernão Lopes, também Frei Manuel dos Santos na «Monarchia Lusitana» refere o facto como passado na freguesia ou arrabalde de S. Bartolomeu.
— Há mais: porque é que António Coelho Gasco— escritor do século XVII, autor da Conquista, antiguidade e nobreza da mui insigne e Ínclita cidade de Coimbra —nada menciona do facto? Certamente por estarem já no seu tempo arrasadas ou irreconhecíveis as casas de Álvaro de Carvalho. Mas se a tragédia se tivesse dado na Casa de Sub-ripas ele aí tinha o teatro do crime — e não passaria em silêncio tão importante acontecimento.
— Ainda: nos pergaminhos e papéis do arquivo dos Perestrellos —proprietários históricos das casas de Sub-ripas até há poucos anos — nada apareceu, entre documentos referentes a estas casas, que desse o caso como acontecido nas suas moradas.
Não faço, nesta altura, pesar a circunstância de ver dado como acontecido numa casa quinhentista um facto pertencente ao século XIV; pois os defensores da lenda explicavam: que a casa existente fora levantada sobre as ruínas da casa ou torre do crime. Mas a isto responde-se: no século XVI, mercê de vida nacional mais pacífica e das novas condições da cidade, já podiam ser abandonadas partes da muralhas com as torres — como de resto o prova o documento da doação a João Vaz; enquanto que nos tempos precários — tão abrolhados de perigos o surpresas — do reinado de D. Fernando I não podia estar ainda desprezada a muralha de Coimbra, e convertidas as suas torres do vigia em aposentadorias de princesas.
Este argumento de boa razão fortalece os que nos fornecem os documentos.
Para mais — a lenda é de origem relativamente recente, e nenhum dos escritores que a adotaram o fez como historiador. Sorria-lhes á fantasia.
Mas não há remédio senão passar sem ela.
O interesse que nos merece a Casa de Sub-ripas em nada diminuirá, de resto, por termos afugentado dos seus desvãos e terraços o fantasma da linda e branca Maria Telles, imolada a golpes de bulhão, pelo filho da outra mísera e mesquinha numa madrugada de novembro de 1379.
Coimbra. 25 de março do 1906.
Manuel da Silva Gayo
Gaio, M.S. Palácios, castelos e solares de Portugal. IV – A casa de sub-Ripas, In “Illustração Portugueza”, 9, Primeiro semestre, 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 265-272.
Há, pois, além do corpo central, mais uns quatro.
E todo esse encontrado jogo de cobertos e de faces, todos esses ângulos vivos e arestas livres de paredes aprumando fortes imprimem, na verdade, à velha morada, vista dessas bandas da barreira, uma feição original, vigorosamente pitoresca, de casa acastelada — feição ainda acentuada pela grande altura a que, para este lado, o edifício inteiro se levanta.
O corpo principal, cujo centro corresponderá ao meio da fachada da rua, está erguido, assim como o terraço que se lhe segue a sudoeste, sobre a grossa alvenaria da primitiva muralha da cidade. É na face que, sobre a vertente, forma ângulo com a torre, e na que liga ao terraço, que se vêm as melhores janelas deste lado da casa. São emolduradas de cordões torcidos arqueando em conopial, a rematarem no fecho por cogulhos, estróbilos enfolhados e bustos.
Também assentou sobre a antiga muralha, no extremo norte, a manga de comunicação a que já me referi.
A torre, que a princípio me ocorreu identificar com a primitiva, deve estar edificada sobre os seus alicerces.
A casa de sub-Ripas – A torre vista do poente. Pg. 271
E quando avistada de poente, a dominar a escarpa, ela é que parece a parte central de todo o edifício, o tronco de ondo bracejam, a um lado o terraço livre, a outro a manga do norte. Vista deste lado, então, avança ainda, de aresta viva, a impor-se numa dureza altiva de quina de menagem, sob o elmo escuro do seu telhado amoriscado.
Construída toda de cantaria, ainda daí reforça aos nossos olhos a impressão de solidez maciça entre os outros corpos, em que. desta banda da escarpa, predominam a alvenaria argamassada e os panos de tijolo e cal.
A janela saliente, de beiral livre, suspensa sobre grossos cachorros golpeados, a lembrarem machicoulis medievais, acaba de dar-lhe, com a sua cor sombria, louro-broa, um ar brusco e caprichoso, de individualidade anacronicamente esquiva.
E sente-se que o seu aspeto, como o de todas estas fachadas da casa, quase briga com o tipo e corte das janelas lavradas, já do sazão da nossa Renascença; pois aquelas massas, de fortaleza, ainda parecem resistir, teimar no passado, afirmar tradição de vida pré-quinhentista.
Casa do Arco (a Sub ripas) – Muro brasonado do pátio de entrada. Pg. 268
Em mais de um ponto exterior da casa encontraremos detalhes sugestivos; aqui — um alegrete saliente, sustentado em cachorros de pedra; logo perto, um pilar de argamassa a dissimular um recanto baixo, e que dava pé a um vaso de craveiros; além, uma folha lavrada anima qualquer quebra de aresta; deste lado, um escudo de Cristo corta a linha monótona de um cunhal: tudo a revelar ainda a livre e tocante colaboração de artistas obscuros e a manter a graça própria. individualizante, de todas as construções das grandes épocas vivas!
A casa de Sub-ripas, vista do norte – Torre e manga de comunicação com a “Torre do Prior do Ameal”. Pg. 269
Dentro — temos de o confessar — a casa não apresenta grande interesse. Excetuando o teto, certamente manuelino, da sala próxima ao terraço aberto, e a passagem interior da manga do norte — nada aparece digno de maior nota.
A casa do arco, que comunicava por este com a do Sub-Ripas, devo ser um pouco mais moderna — talvez do tempo de D. João III. Interessante pelos painéis e aventais das janelas — Renascença manuelina — só tem de notável, afinal, o pequeno pátio a que dá entrada um portão ostentando o brasão dos Perestrellos, pedra evidentemente mais recente do que o resto. Esse pátio é, realmente, um dos mais curiosos cantos de Coimbra.
Entrando o portão, veremos à esquerda uma cisterna de janela, coberta de alpendre avançado em arco, que logo nos prende os olhos, como tudo quanto representa uma adaptação feliz de utilidade e de arte.
E sem dúvida a cisterna o quo ali há de mais interessante.
Mas por quase todos os lados do pátio veremos medalhões embutidos nas paredes — prejudicadas, como a da fachada manuelina, pela obra recente de rebocos menos felizes.
A profusão desses medalhões, dentro e fora do pátio, por vários pontos sobretudo da casa do arco; a grande diversidade deles, tanto nos motivos como na execução — pois os há dos mais absurdos e dos mais toscos entre outros já do melhor corte e garbo —; finalmente, o próprio capricho e arbitrariedade da sua insignificativa distribuição e colocação — por muito tempo intrigaram os que atentavam nesse conjunto, tão curioso, das casas de Sub-ripas, entre si ligadas pelo arco — passadiço de João Vaz. E tentavam explicar.
No entanto, de todas as explicações e alvitres — é a hipótese apresentada pelo meu amigo António Augusto Gonçalves a que me parece admissível.
Ao tempo da construção de uma o da outra casa, era terreiro livre grande parte do chão onde mais tarde, em 1593, foi edificado o atual Colégio-Novo, o colégio da Sapiência — pertencente aos crúzios.
Nesse terreiro tinha o arquiteto João de Rouen, ou de Ruão, um telheiro de trabalho, onde se amestravam lavrantes e escultores — seus discípulos e seus operários. À falta de lugar ondo expusessem e guardassem os seus ensaios e provas — os novos artistas vinham pregá-los nas paredes das casas em construção, dando assim a estas um aspeto vivamente pitoresco no gosto da época, embora esses detalhes decorativos não fossem coisas de real valor.
Serão as construções do Sub-ripas, e em especial a casa manuelina de jeito a poderem sofrer comparação com vivendas senhoriais o com edificações de puríssima arte tão numerosas lá fora, como na Itália e na França?
Certamente quo não. Simples vivendas particulares, devidas ao caprichoso bom gosto de um licenciado rico ou do arquiteto por ele chamado, não excedem, em proporções e detalhes, algumas outras moradas da época, mesmo em Portugal.
Contudo, a sua excecional situação, o relevo e carácter do seu conjunto, o desvelo de arte — hoje tão apagado, ou tão postiço — que nos revelam ainda, e a raridade do género neste país de extremos — miserável ou sumptuoso — dão-lhe direito à nossa enternecida contemplação, e teriam justificado amplamente a sua aquisição pelo Estado.
Gaio, M.S. Palácios, castelos e solares de Portugal. IV – A casa de sub-Ripas, In: “Illustração Portugueza”, 9, Primeiro semestre, 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 265-272.
Na entrada, hoje bastante prejudicada pelo leito erguido da rua, teremos de considerar duas partes: a porta, propriamente, e o corpo que a encima.
Entrada da casa de Sub-ripas: fachada da rua. Pg. 267.
Esta porta apresenta-nos, talvez, nas molduras e na verga, uma modificação do arco de sarapanel, fórmula adotada pelo estilo manuelino, assim como a volta inteira e tantas outras.
O corpo que coroa a porta, representa uma espécie de retábulo, cuja moldura apresenta a forma de um arco alteado.
Do fundo deste retábulo ressalta em pleno relevo uma cruz de troncos, tão comida já, que se torna impossível decifrar-lhe qualquer intenção emblemática. Assenta o retábulo, propriamente, numa longa mísula lavrada de folhagens, de onde prende, para fixar-se também no alto da porta, um pequeno escudo, hoje quase gasto, que talvez tivesse representado as chagas, envolvidas em flores.
De toda a frontaria, é a entrada a peça mais importante. Liga-se pelo estilo com as janelas, como disse, aparentando especialmente com as do primeiro andar.
O próprio remate acogulhado do arco e do seu retábulo a relaciona logo com todas estas. Abrindo arcos conopiais, munidas de painel, realçadas de cordões, ou guarnecidas de colunelos, de variada base e molde, vegetalizadas de cogulhos pelo extradorso o fecho das curvas, floridas de rosinhas ou relevadas de folhas e frutos ao longo dos intradorsos, golpeadas de lavores torçalados ou trabalhadas de foliado nos sub-rebordos dos parapeitos — as janelas da frente, umas por outras, revelam-nos, como a porta, nas linhas de corte, nas molduragens, nos motivos de decoração — alguma coisa da caprichosa liberdade desse estilo que, não sendo original de raiz, representando antes um compromisso de formas tradicionais e de simbolizações recentes da época, prestando-se, por vezes, a manifestações de intemperante inventiva — representou, contudo, larga concessão à mais opulenta fantasia artística, ficando, além disto, a valer para nós como documento, como associado traço de consoladora evocação histórica. Mas toda a casa, além desta fachada da frente, o revela sob variadas formas nos seus vãos e rasgaduras: nas janelas dos corpos voltados para a escarpa—embora algumas o acusem somente na curva o no golpe das vergas, nos cortes do aparelhamento—; e ainda em portas antigas do interior, o nos muitos cachorros, florões, medalhões e escudos encontrados por dentro e por fora do edifício.
Quem vir apenas a fachada unida sobre a rua, mal suspeitará que a Casa de Sub-ripas forma, no seu exterior mesmo, um conjunto curiosamente irregular, como se pôde reconhecer observando-a do poente, do norte, ou de algum ponto sobredominante da cidade, de onde então os múltiplos telhados da casa, telhados de quatro águas, nos dão logo a ideia de corpos diversos ligados numa só construção.
É que, além da parte recuada junto ao cunhal da rua, outras se destacam do corpo principal.
Prolongando este, avança sobre a escarpa, entre sudoeste e poente, um corpo em forma de terraço — livre e aberto ao rés do primeiro pavimento, mas cobrindo uma curta galeria, fendida de janelas que medem para baixo uma altura de andar. Desta galeria devia ter havido qualquer descida interior para a faixa dos quintais—chão da antiga barbacã.
A casa de Sub-ripas, vista de sudoeste – o terraço. Pg. 268
Fazendo ângulo com o mesmo corpo central, a olhar entre noroeste e norte, destaca-se outra massa em forma do torre, [Chamar lhe-hei sempre torre; para não haver confusões, designarei por Torre do Prior do Ameal a que fica situada distante, a norte da casa] cujo ressalto mede a sua menor extensão de curto retângulo. Mas com esta torre liga ainda, para norte, por detrás de um pequeno terraço triangular, hoje desfigurado em cubículo, uma estreita manga de construção.
A Casa de Sub-ripas – A torre, que, de certos pontos, parece a parte central do edifício. Pg. 268
Era esta — ao nível do primeiro pavimento, a passagem para a antiga cortina de comunicação com a Torre do Prior do Ameal — no pavimento superior — um miradouro coberto de telhado, a dominar, como toda a casa, a baixa da cidade, antigo arrabalde, e o vale doce do Mondego.
Gaio, M.S. Palácios, castelos e solares de Portugal. IV – A casa de sub-Ripas, In “Illustração Portugueza”, 9, Primeiro semestre, 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 265-272.
Não se pode indicar a data precisa da construção. Devia ter sido edificada no reinado de D. Manuel, entre 1514 e 1521 — pelo menos grande parte dela. Ignora-se o nome do arquiteto.
O corpo principal ocupa uma superfície trapezoidal, duns cento e sessenta metros quadrados, aproximadamente, e cuja maior extensão corre quase na linha de nascente a poente, da rua para a escarpa da cidade. Sobre a rua, a casa apruma numa fachada unida, de dois andares, da qual apenas se desalinha, na extrema inferior, o pequeno corpo que faz recanto com o cunhal. Deste cunhal até á extrema superior, junto ao arco que atravessa a rua — o passadiço de João Vaz — a fachada mede pouco mais de dez metros, devendo ter de altura a prumo uns onze metros.
Planta da casa de sub-Ripas, pg. 272.
Dá-nos uma impressão de solidez maciça, de densa resistência, mais do que de elegância nobre ou de ousadia construtiva, embora a diferente composição da parede logo fizesse distinguir, antes de modernos revestimentos a deplorar, a fábrica dos seus dois andares.
Há nela um absoluto predomínio da parte cheia, como a acusar e a manter a reminiscência dos muros e defesas cerradas. Nada até parece haver que admirar de proporções combinadas ou de equilibradoras compensações nessa massa retangular—tanto ela, de plena e socada, se firma e assenta por si, como um bloco inteiriço. É esta, na verdade, a primeira impressão. E no entanto é casa bem curiosa, exatamente por nos oferecer um exemplar de construção que alia ao aspeto sólido da sua arquitetura, ainda no molde de tempos crus, a preocupação e desvelo duma arte já flexuosa, viva, liberta, derivada de outras formas e desviada de primitivos intuitos, mas apropriada agora á decoração de moradas abertamente hospitaleiras, alegradas de graça expansiva, revelando corresponderem ao resfolego duma existência social tornada mais despreocupada e leve.
Casa de Sub-ripas - Passagem interior da manga norte. Pg. 269.
Casa do Arco (a Sub-ripas) – A cisterna do pátio. Pg. 269.
Todas as aberturas ornamentadas revelam aqui a influência manuelina, com mais ou menos abundância.
Janela da fachada sobre a rua, 1.º andar. Pg. 266
Janela para os lados de trás, sobre a vertente, junto ao terraço. Pg. 266
Janela de uma fachada sobre a vertente da cidade. Pg. 266
Não é talvez do mais delgado e nervoso, nem do mais originalmente sugestivo, nem do mais elasticamente rico o desenho das guarnições e lavrados que as decoram, cortados na mesma pedra de Bordalo, empregada em quase toda a construção.
Mas a combinada acumulação e reforço de ornatos, como no portal, por exemplo, e a expressão confiada dos cortes e relevos imprimem a tudo um quê de simpatia comunicativa, de vigor cordial, com todo o carácter das coisas feitas quando as próprias fórmulas seguidas continham e exalavam ainda penetrante calor de vida.
Gaio, M.S. Palácios, castelos e solares de Portugal. IV – A casa de sub-Ripas, In: “Illustração Portugueza”, 9, Primeiro semestre, 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 265-272.
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