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Illustração Portugueza”, 5, Primeiro semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 149
Mas como essa - se não me falhasse o espaço - quantas historietas haveria ainda para vos contar: - da Raquelinha dos olhos em amêndoa, da Laura literata e tuberculosa, da reboluda Olívia, a bolinha de amor, da Julinha Feijó com o seu rosto arrancado a algum quadro religioso dos Primitivos, da outra Júlia que se passeava em Coimbra, trazendo numa das mãos uma guitarra, e na outra a Casa de Ramires, da Terezinha de Santa Clara, a casta, da aloirada Palmira, da Micas, da Elisa, da Silvina, de tantas mais que vejo passar em farandola, derramando em torno, como chuva de ouro, o Amor, a Vida, o Prazer, o Riso!. ..
- E depois? - inquirireis. - Que é feito delas?
Oh! pungente coisa!... À hora em que se dissipa o sonho, em que esmaece a beleza e as carnes começam a ser flácidas, chagou a expiação. Invaginai uma rainha do ontem - rainha pela graça, pelo encanto, pelo prestígio da carne - que ao ver partir-se contra o último degrau do seu trono efémero a taça da derradeira libação votiva, é subitamente condenada a ir servir, nas noites tumultuosas das repúblicas, o triunfo das mais jovens, a quem uma nova legião de cavaleiros acaba de erguer agora nos escudos! Pensais o que isto deva ser para uma mulher, muitas vezes patrícia pelo sangue?
Op. cit., p. 149, pormenor 1
Servente, a tricana mudou-se em animal prestável. Arruma quartos, faz recados, distribui sebentas, empresta sapatos para o ato e informa solicitamente das notas escolares dos patrões o das dificuldades prováveis da lição seguinte - isto por inconfidência dos lentes, que, conservadores e saudosos, continuam ainda a visitá-la.
Perde então os seus cognomes carinhosos. Aquela que além vedes desgrenhada, encobrindo o torso espapaçado num casibeque de chita sem enfeites, é a Clara Perna-camba, e foi outrora a mais linda tricana do seu tempo; aquela outra de tez cansada e olhar mortiço, é a Conceição Carqueja, por quem três estudantes se mataram; e - como quer que as mulheres acabem breve - a ideal amante do Hilário, poeta e cantador de fados, é hoje uma velha desleixada e beberrica, que se chama - a Cavacá...
Surge a filharada - alcateias de crianças que foram nascendo no decorrer dos anos, que ninguém jamais conseguira ver, o aos quais só a mãe pode determinar agora a exata filiação paterna.
- Ó Conceição Pulquéria! - interroga-se - quem é este?
E ela, buscando rápido com o olhar o pimpolho apontado:
- Este é o Eduardito, filho do sr. dr. X..., conservador em Beja.
- E esta, ó Conceição, qual é?
Logo ela, dando conta do recado:
- Esta é a Madalena, filha do sr. dr. V..., tabelião em Braga.
- E mais esta, ó Conceição?
- Esta é Vitorina, filha do sr. dr. T..., juiz da Relação.
Filhos do acaso, que para o acaso se criam, esses corpitos frágeis de cândidas adolescentes já vão sonhando as noitadas de luar, o Penedo da Saudade, as estúrdias ruidosas no Choupal, e as manhãs sobre a relva, aconchegadas numa capa, a qual seria a daquele estudante de olhos como carvões, que passa todos os dias com a pasta, que lhes dá palmadas na face e fala muito, com sua mãe, nos bailes maravilhosos do palácio real...
Op. cit., p. 149, pormenor 2
- O Jacob dos Arcos do Jardim criou e educou não sei quantas filhas esbeltas - sem proveito, porque todos os anos, fatalmente, a mais velha da casa, fosse qual fosse, tinha de fugir-lhe numa manhã de primavera, para aparecer, corridos dias, de «ménage» estabelecido com algum quintanista de Direito, dos mais irresistíveis.
Interrogado sobre as suas impressões, o Jacob encolhia resignadamente os ombros, murmurando:
- Que fazer, meu senhor, isto é fadário!...
E continuava pacificamente a criar as outras, até lhe desaparecer na primavera seguinte a que era para então indigitada - enquanto lhe duraram, está visto.
Coimbra é como esse pai bonacheirão, cercando de ternura, de desvelos, de carinho, as suas virgens, que todos os anos serão sacrificadas, uma por uma, iniludivelmente, ás exigências e mandados implacáveis do Minotauro-Amor...
Soares, A. As Tricanas de Coimbra. In: Illustração Portugueza, n.º 5. Primeiro semestre. 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 146-149.
Illustração Portugueza”, 5, Primeiro semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 148
Nunca foi narrada por escrito, que eu saiba, a verdadeira história da Rosa, mais da sua tragédia; o os leitores desta «Illustração» vêm a ser os primeiros, segundo creio, que possam medir-lhe cabalmente o pitoresco.
Há dez ou onze anos estudavam em Coimbra Afonso Lopes Vieira e D. Thomaz de Noronha, um curioso topo de estudante à antiga, boémio, desfrutador, estoira-vergas, gozando em gourmet as aventuras e os grandes lances dramáticos.
Op. cit., p. 148, pormenor 1
Lopes Vieira, prestigioso entre as mulheres pelos seus versos e pelo estranho do seu tipo de loiro sonhador, era um pouco talvez por snobismo - porque toda a tricana é snob - um pouco, sem dúvida, por sentimento, amado e perseguido pela Rosa Espanhola, cachopa célebre, que por seu turno punha a cabeça á roda a muitos bacharelandos do tempo, desprovidos, por seu mal, do buço fino e da bagagem literária daquele outro.
As coisas seguiam os seus tramites e encaminhavam-se, provavelmente, para o desfecho habitual de incidentes tais, quando feriu lume o génio teatral de D. Thomaz.
Op. cit., p. 148, pormenor 2
Um poeta, uma tricana airosa, uma paixão - que três incomparáveis elementos para o preparo duma destas cenas de melodrama, que dão brado e deixam um autor para sempre em paz com a sua consciência !...
Isto foi pensado de noite. Na manhã seguinte, D. Thomaz faltou ás aulas, chamou a tricana à fala, e com o ar compungido e austero de quem vai dizer solenes coisas, deu parte à triste do uma grande calamidade: Lopes Vieira, prometido em casamento a uma duquesa de Lisboa, não podia de modo algum baixar os olhos até ao tugúrio humildo da mal-aventurada; mas, enternecido pela pureza dos sentimentos que animavam Rosa (e dos quais Afonso - insinuava D. Thomaz - não andaria longe, porventura) pedia-lhe resignação, convidando-a a acolher-se, ao menos temporariamente, ao severo claustro dum convento bracarense, que nomeava.
A Rosa Espanhola, quando tal ouviu, dizem que pôs a mão na anca, arrebitou o nariz, e perguntou a D. Thomaz se estava doido, ou se julgava que ela fosse parva. Porém o mistificador acudiu com cópia de argumentos, aventou a possibilidade de vir tudo a acabar em bem, volvidos meses, discorreu sobre os regalos e confortos da vida monástica, acenou com o engodo de uma abundante mesada, para as doçarias o licores: e com tais artes se houve, em suma, que a pobre moça, bastante lida em Camilo, foi atentando na proposta, no começo com desprazer, depois condescendente, e por fim com o alvoroço de uma noviça que houvesse sido catequisada, não pelo malicioso D. Thomaz, mas pelo mais virtuoso e inspirado de todos os padres da Igreja.
Op. cit., p. 148, pormenor 3
A notícia da próxima profissão da Rosa estalou em Coimbra como um petardo. Lopes Vieira, ficou, no primeiro instante, fulminado; e mais ainda quando se empalharam pela cidade as quadras vesgas assinadas pela nova e rude Soror Mariana, mas entregues na tipografia por D. Thomaz, clandestinamente, em original escrito por seu punho...
Nada mais cómico, por esses dias, que ver a Rosa Espanhola, a Rosa das fogueiras e das ceias, atravessar desalentadamente as ruas do Coimbra, pendida a fronte, o rosto macerado, com a mala arranjada em casa para a partida - fazendo às companheiras e ao mundo pecaminoso os seus derradeiros adeuses. Alguns estudantes encontravam-na, exclamavam espantados:
- Ó Rosa, pois tu vais enterrar-te num convento?!
A Rosa logo, com um fulgor momentâneo no olhar:
- Que importa? Ao menos fico na legenda!
E este na legenda cheirava a D. Thomaz, que tresandava...
Breve lhes conto o remate da história. Não é banal: a Rosa Espanhola, cansada em curto espaço da monotonia da cela, rasgou o hábito, disse adeus á madre superiora, e reapareceu em Coimbra ao tempo em que D. Thomaz obtinha ao fim o seu solicitado emprego público.
Em virtude do que, o interessante funcionário resolveu levá-la consigo para a Índia, onde a esta hora, provavelmente, a ama entre palmares...
Soares, A. As Tricanas de Coimbra. In: Illustração Portugueza, n.º 5, Primeiro semestre, 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 146-149.
llustração Portugueza”, 5, Primeiro semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 147
A tricana de Coimbra é uma desterrada dos ócios aristocráticos de salão para a subalternidade vexatória e injusta da vida plebeia. Em cada qual somos forçados a ver uma princesa encantada por artifícios de fada má e constrangida a correr a sua sina enquanto um conde não vem de terras longes pronunciar a palavra misteriosa que lhe quebre o encantamento…
Op. cit., p. 147, pormenor 1
E não é rara, em verdade, a aparição desse conde na pessoa de um bacharel enamorado que as arranca das penas e trabalhos do ferro de engomar para o tranquilo remanso da sua casa de lavoura na província, onde elas ao depois vêm a tornar-se senhoras, e gordas.
Op. cit., p. 147, pormenor 2
Filha, quase sempre, de estudante e engomadeira, descendente, muitas vezes, das mais nobres casas deste reino - algumas delas sendo mesmo conhecidas e tratadas, com geral consenso, pelos seus apelidos fidalgos - a tricana tem mui pouco do povo em que arbitrariamente se encontra classificada, e herdou da degenerescência das classes altas, além da agudeza do espirito, a mórbida palidez das carnes, certa perversão das tendências e desejos, o apetite dos prazeres pouco banais, o romanticismo postiço das paixões e a queda para os ócios deleitosos, que afinam a sensualidade e dão ensejo às aladas fugas da fantasia... Tudo isto, sem fazer da tricana, positivamente, o que se chama uma boa dona de casa, a torna apta, por excelência, para o desempenho da sua missão social, que é a de tornar ligeira o alegre, quão possível, a preparação científica de quase toda a mocidade portuguesa.
Op. cit., p. 147, pormenor 3
Esta austeridade aristocrática a todo o instante se comprova, mesmo nos costumes instintivos da tricana.
Quem não sabe dos chás galantes da Assunçãozinha dos bandós, célebre pelo seu pálido perfil de santa bizantina, e só rival na graça, ao tempo, da flexuosa Isabel - a tricana que eu conheci antes de todas em Coimbra, e com quem joguei idiotamente a bisca nos meus primeiros dias de caloiro?...
A Assunção reunia então em sua casa tudo o que a Academia contava de melhor, nas letras, na boémia e na estirpe. Certamente, era indispensável que os convivas - o D. Thomaz de Noronha, hoje na Índia, o poeta Lopes Vieira, o estúrdio Pad-Zé, agora transmutado em dr. Alberto Costa, Emérico d'Alpoim, D. Sebastião da Grama e outros mais - tivessem o cuidado de levar no bolso, para o festim, uma garrafa de Madeira, um pacote de chá e alguns bolos. Tornava-se mesmo necessário que um deles se prestasse a acender o fogareiro, pôr a água ao lume e agitar o abano, até que se aprontasse a infusão; mas, feito isto, a Assunção dos bandós presidia á festa com a gentileza o «donaire» que uma grande dama não excede, no «five o-clock» mais distinto o precioso…
Op. cit., p. 147, pormenor 4
Esta parte anedótica da vida coimbrã afigura-se-me extremamente curiosa, e sobretudo muito elucidativa no que respeita á psicologia desse estranho entesinho que é a tricana, vivendo na sombra da Universidade, em êxtase, como a sonhadora do Zola no sopé da Catedral, ou amando o estudante com o amor meio carnal e meio místico, que a beata oferece aos santos o aos padres. Que pode haver mais interessante, sob este aspeto, do que a lenda da Rosa Espanhola, que por amor se foi a um convento, o que há poucos anos chamou lágrimas aos olhos de todas as donzelas da província, com a patética elegia, cantada em verso coxo, dos seus amores inditosos?
Soares, A. As Tricanas de Coimbra. In: Illustração Portugueza, n.º 5. Primeiro semestre. 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 146-149.
Começamos hoje a divulgar um artigo publicado em 1906, na Illustração Portugueza, onde o autor traça um retrato amargo das tricanas de Coimbra, quiçá excessivo, mas representativo da época em que foi escrito. Como se verá, na última entrada vislumbra-se no texto a face negra desse retrato.
Illustração Portugueza”, 5, Primeiro semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 146, pormenor
E considero-o excessivo e a apontar para uma face negra, porque, do que conheço sobre o assunto e face ao que com ele estive relacionado, a tricana de Coimbra não passava só pelo retratado, mas existiam outras realidades, bem diferentes das descritas.
Como acentuou Nelson Correia Borges, o que caracterizava a tricana era a forma de trajar: «O cachené emoldura-lhe o penteado feito com desvelo e o rosto, que avulta entre duas alentadas argolas.
Cinge-lhe o busto o aristocrático chambre das avós, tufado nas mangas de bofe.
O aventalinho, com aplicação arrendada, é traço quase exclusivo da mulher de Coimbra. Por sobre tudo traça o xaile naquele jeito como só ela sabe e ninguém consegue copiar. A paisagem urbana situa-a. É a tricana. É Coimbra.
Decorre de aí concluirmos que o artigo peca por generalizar o que não é generalizável. Poderá descrever, parcialmente, a realidade da época, mas é injusto e desajustado no que respeita à maioria das mulheres de Coimbra, dado que elas pisavam outros caminhos.
O artigo, profusamente ilustrado, do qual só reproduzimos parte é o seguinte.
Op. cit., p. 146
«Ninguém como ella traja
A gosto do namorado:
Lenço de pontas atraz,
Chalinho de sobraçado,
Chinella curta, a fugir,
Embora o pé seja leve
E pequenino de ver
Na meia branca de neve;
Corpete todo a estalar,
Saia subida e ligeira,
Aventalinho tamanho
Como folha de figueira.»
Manuel da Silva Gaio.
O que maiormente enleva e surpreende, a quem aborda pela vez primeira a terra sagrada pelos amores de Inês, não é tanto a pompa dos seus lentes, o sabor das suas arrufadas ou a hirta majestade dos oito séculos de monarquia enfileirados na Sala dos Capelos, mas a subtil harmonia, a maravilhosa proporção e congruência que a Natureza estabeleceu ali, em tudo o que é criado.
Num clima benfazejo e quase sempre igual, nada de grandes traços, de fortes vegetações, ou dos coloridos berrantes na paisagem. Esta é alguma coisa como um quadro do japonês, místico sacerdote da arte, comprazendo-se em tirar os seus efeitos sempre de linhas breves, ondulantes, fugidias, de levezas de cor, de atitudes martirizadas nos caules finos e dolentes do arvoredo.
A cada passo uma colina, um montículo, um outeiro; mas até quando os horizontes se alargam, a planície a perder de vista não ganha nunca a bruteza da charneca, ou sequer a uniformidade fatigante do pastio da campina estremenha — antes fica toda feita em detalhes, e tão terna nas suas meias-tintas, que jamais a fitou um olhar nostálgico, sem pressentir nessas jardas de terreno como que a expressão dum instante de tristeza — que deveria ser branda e suavíssima — do Criador dos mundos...
O artista, por seu turno, possuído do espírito regional, buscou talhar na pedra afeiçoável das velhas construções do burgo, coisas ingénuas e sinceras, que não pudessem ofender a carinhosa melancolia das terras: e, havendo-o conseguido, só faltara que a mulher, fecho e síntese de toda a obra de beleza, não destoasse dos elementos do quadro, antes viesse traduzir, em quintessência, a alma de quanto a rodeava.
Op. cit., pg. 146, pormenor
Ponham no campo coimbrão uma alentejana bem fornida, ou a beiroa máscula e alvar, e aí teremos anulada toda a obra, como se, numa tela delicada de Ho-Ko-Sai, alguém fosse pintar em suplemento uma «touriste» alemã, pesada, inestética, de «canotier» e mala de viagem.
Por felicidade, ainda neste ponto foi coerente e sábia a Natureza.
Soares, A. As Tricanas de Coimbra. In: Illustração Portugueza, n.º 5. Primeiro semestre. 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 146-149.
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