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Sabemos que as Invasões Francesas deixaram atrás de si um rasto de destruição e morte. Sabemos, também, que a terceira, em 1810-1811, foi terrível para as populações civis. Mas não haverá algum exagero nos relatos da época? O impressivo deve, se praticável, assentar na solidez da investigação em fontes directas. Assim sendo, o que me proponho é esclarecer, com a exactidão possível, a dimensão dos massacres cometidos pelos invasores numa vasta região da zona Centro do nosso país e avaliar os sacrifícios impostos a essas populações.
The Duke of Wellington, por Thomas Lawrence, pintado c. 1815-1816. Acedido em https://en.wikipedia.org/wiki/Arthur_Wellesley,_1st_Duke_of_Wellington
[Segundo António José Telo, a estratégia inglesa não visou proteger as populações portuguesas e nem sequer expulsar rapidamente o invasor, mas desgastar na Península os exércitos napoleónicos. Porque não interessava uma vitória rápida, evitaram-se as grandes batalhas e, quando estas foram inevitáveis, como a do Buçaco em 1810, os seus resultados não foram explorados. Wellesley (futuro duque de Wellington) rumou para Sul, abandonando Coimbra ao saque dos invasores, que decorreu nos dias 1, 2 e 3 de Outubro de 1810, até ser reconquistada pelas milícias comandadas pelo coronel Trant.
… Em Março de 1811 os Franceses iniciaram a retirada. Desesperados pela fome, buscando mais a sobrevivência do que o combate, levaram as atrocidades ao último grau, apanhando as populações em fuga, a quem torturavam e matavam para lhes extorquir víveres. Coimbra foi poupada, pois Massena não conseguiu entrar na cidade. Conduziu então os seus homens para Espanha pela margem sul do rio Mondego, onde a carnificina prosseguiu.
Nos dias 19 e 20 de Março, sem encontrar nada para comer, as tropas francesas espalhavam-se por Pinhanços, Sandomil, Penalva do Castelo, Celorico da Beira, Vila Cortês, Vinhó, Gouveia, Moimenta da Serra, etc.
… Em Coimbra, já no mês de Junho de 1810 se vivia uma situação aflitiva: os sucessivos sacrifícios impostos desde 1808 e a contínua chegada e passagem de tropas com o consequente aboletamento compulsivo, a imundície acumulada, a escassez de víveres e alta de preços, conduzia à miséria e à doença grande parte da população. Em reunião de 17 de Junho da Mesa da Misericórdia, afirma-se que vivendo-se “tantas e tão extraordinárias necessidades”, “... a numerosa classe da mesma pobreza se acha reduzida à maior consternação e miséria, tendo subido o preço do pão a treze e a catorze tostões a medida, com cujo preço não tem proporção alguma os lucros e os meios dos jornaleiros e oficiais mecânicos e geralmente de toda a mesma pobreza, a qual por isso tem padecido e actualmente padece as mais rigorosas fomes, acrescendo a este flagelo o horroroso contágio que tanto tem grassado nesta cidade e suas circunvizinhanças desde os princípios do corrente ano e que infelizmente ate aqui não tem diminuído”.
…As vítimas da diocese de Coimbra
Mapa 1. Op. cit., pg. 9
… A pilhagem de Coimbra, de 1 a 3 de Outubro de 1810, foi absolutamente devastadora e não tem sido devidamente valorizada pelos historiadores, não obstante ter sido cabalmente comprovada já em 1944 por Maria Ermelinda Fernandes Martins. Só a Universidade escapou parcialmente, protegida pelos cuidados dos oficiais portugueses que integravam as tropas invasoras. As residências das populações humildes também não foram poupadas. Quando regressaram não possuíam uma peça de mobiliário ou um fato com que se cobrissem. Aos Franceses tinham-se seguido as pilhagens feitas pelo povo que, entretanto, voltara e pelos refugiados das zonas a sul do Mondego.
Em petições de esmolas dirigidas à Misericórdia de Coimbra na Páscoa de 1813, 63 mulheres evocam ainda estes acontecimentos, responsabilizando-os, pelo menos em parte, pela indigência que sofriam quase três anos depois.
Em inícios de 1811 viveu-se na cidade um cenário dantesco. A Santa Casa da Misericórdia não dispunha dos recursos necessários para acudir aos “imensos pobres que de fora se tinham acolhido a esta cidade”. Por ordem de Trant, todos os habitantes de Miranda do Corvo, Lousã e circunvizinhanças até ao rio Alva haviam sido obrigados a retirar para norte do Mondego. As populações acorreram a Coimbra, refugiando-se nas casas abandonadas, e só regressaram às suas terras a partir de 10 de Abril, quando tal foi autorizado. Os dirigentes da Misericórdia sentiam-se tão vivamente impressionados com o ambiente da cidade em Fevereiro de 1811, que afirmam tratar-se de “uma calamidade incomparável, de que não há memória nos séculos passados”.
Lopes, M.A. Sofrimentos das populações na terceira invasão francesa. De Gouveia a Pombal. In: O Exército Português e as Comemorações dos 200 Anos da Guerra Peninsular. Volume III. 2010-2011. Lisboa/Parede, Exército Português/Tribuna da História, pp. 299-323.
Não tardou, porém, a desencadear-se a terceira invasão. Um exército mais poderoso que os anteriores, com um efetivo de 85.000 homens … atacou a nossa praça de Almeida cercando-a a 15 de Agosto de 1810, a qual teve de render-se em consequência de uma explosão de pólvora que arruinou as suas defesas.
Esse desastre forçou o exército anglo-luso a operar uma retirada estratégica, só se dispondo a combater nas alturas do Buçaco, onde se travou batalha a 27 de Setembro, com êxito para o exército anglo-luso, pois que o exército invasor não conseguira desaloja-lo das suas posições
… os franceses … resolveram contornar a serra e meter em direção à estrada de Lisboa-Porto, indo atingi-la na povoação de Avelãs de Caminho, uma vez apercebidos disso, os anglo-lusos operaram uma retirada sobre Coimbra … e entraram em Coimbra a 30 de Setembro, sempre sob o comando de Wellington … Pouco se demorou contudo nesta cidade, prosseguindo afanosamente na sua retirada, para as famosas linhas de Torres Vedras.
A 1 de Outubro entrou Massena em Coimbra, aqui praticando o exército francês os vandalismos habituais … não foi possível obstar a que os franceses na sua saída para Lisboa incendiassem algumas casas da Calçada … e entre elas a Casa da Câmara da Praça, no dia 3 de Outubro de 1810 … dirigiram-se à quinta da Cheira … e lançaram fogo à casa da residência do Doutor Tomé Rodrigues Sobral … Este incêndio foi o produto de um ato de vingança pelo papel representado pelo Doutor Sobral na expulsão dos franceses em 1808, fabricando pólvora.
… Pouco se deteve Massena em Coimbra e partiu para Lisboa, tendo ali deixado uma guarnição de certo vulto.
«O coronel inglês Trant, que na ocasião da batalha do Buçaco havia ficado do lado do Porto com algumas forças, tratou de surpreender a guarnição dos franceses em Coimbra. Para isso marchou com um pequeno corpo de exército, quase todo constituído de milícias, em que entrava o regimento de milícias desta cidade, e no dia 7 de Outubro entrou nesta cidade com as suas forças. E tão bem combinada e executada foi a operação que, com escassa resistência, aprisionaram um corpo de cerca de 5.000 franceses, na sua quase totalidade alojado no Mosteiro de Santa Clara. Os prisioneiros foram remetidos para o Porto, e custou salvar-lhes as vidas, dado o estado de indignação popular e exaltação dos ânimos em face dos malefícios perpetrados pelos cruéis invasores».
Desta feliz empresa resultou não mais o exército francês ter voltado a Coimbra.
Loureiro, J. P. 1967. Coimbra no Século XIX. Separata do Arquivo Coimbrão, Vol. XXIII. Coimbra, Câmara Municipal de Coimbra. Pg. 73 a 76
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