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Um outro artista do ferro, que não pode deixar de merecer referência especial é Daniel Rodrigues, homem que nasceu a 26 de março de 1886 no Largo das Ameias, em Coimbra, terra para onde os seus pais, oriundos de Penacova e de Figueira de Lorvão se haviam transferido. Penso poder dizer que o pai, também Daniel Rodrigues de seu nome, casou com Maria do Rosário a 9 de janeiro de 1881, na igreja de S. Bartolomeu.
Daniel Rodrigues
Iniciou a sua aprendizagem numa oficina de serralharia civil, mas a sua habilidade invulgar para o desenho e manejo do ferro terão despertado o interesse de António Augusto Gonçalves, que o levou a frequentar as aulas de Desenho Ornamental e de Modelação, ministradas na Escola Industrial Brotero por Silva Pinto e pelo próprio Gonçalves.
Retrato de Bissaia Barreto. Desenho de Daniel Rodrigues
Foi também aluno da Escola Livre. Em 1933, conjuntamente com António Maria da Conceição e com Manuel de Jesus Cardoso, integra a direção daquela “universidade plebeia”, fazendo-se também sócio da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Coimbra. Morreu, com 84 anos, quase à beira de cumprir mais um, a 11 ou 12 de fevereiro de 1971.
Daniel Rodrigues, começou a executar, em 1928, uma artística grade para o palacete Sotto-Mayor que foi construído na Figueira da Foz.
A fundição deste trabalho esteve a cargo da casa Alves Coimbra, Sucessores, desta cidade, e a cinzelagem e acabamento foram feitos na oficina do mestre serralheiro. A peça, que foi muito apreciada e mereceu rasgados elogios de João Ameal no Diário de Notícias, esteve exposta no estabelecimento “A Vigorosa”, da rua Ferreira Borges.
Grade para o palacete Sotto Mayor
Daniel era um homem católico e, por conseguinte, de certo modo marginalizado pelos seus colegas e mestres, ateus ou agnósticos e que se encontravam fortemente ligados à maçonaria; por isso não admira que trabalhos como os que bateu para a igreja de Santo António dos Olivais não tivessem na imprensa o eco que alcançaram peças de igual gabarito saídas do malho de outros artistas. Mas, em 1934, por iniciativa do pároco daquela freguesia, padre Manuel Estrela Ferraz, fez o desenho e executou duas artísticas grades de ferro, em estilo gótico, destinadas às capelas laterais da escadaria da igreja. Quatro anos depois, bateu uns artísticos portões para a capela de Nossa Senhora das Dores e para a do Senhor dos Passos, da mesma igreja, bem como o lustre central do templo.
Porta da Capela de Nossa Senhora das Dores
Porta da Capela de Nossa Senhora das Dores. Desenho
De entre as obras de Daniel Rodrigues, com temática religiosa, destaca-se o Anjo da paz eterna, “esculpido” em 1941, a fim de ser colocado no portão do cemitério da Conchada, a substituir o esqueleto que ali se encontrava. Trata-se de uma estátua vultuosa que teve por modelo uma das suas filhas; dir-se-ia que o artista trabalhou o ferro com a mesma facilidade com que as mãos do oleiro modelam o barro.
Cemitério da Conchada. Anjo da Paz Eterna
O anjo ergue as suas asas e, segurando a cruz, como que aponta o céu, num sinal de esperança e de evasão que é, afinal, o estigma de toda a arte. Neste trabalho deve salientar-se a perfeita nitidez das feições do rosto e a execução do cabelo, o subtil drapeado da túnica, apertada na cintura com um cordão, deixando aparecer, ligeiramente, os pés descalços, simbolizando a humildade e a fragilidade inerente ao ser humano.
Nas horas vagas, vai trabalhando a porta do jazigo da sua filha Berta que havia falecido prematuramente. Trata-se da obra mais sentimental saída da sua oficina A peça revela a forte sensibilidade do artista, que retrata, através da imagem esculpida no ferro duro e frio, o real-irreal ou o tempo-não-tempo, que é a transição vida-morte, numa quase ausência de dimensões. No tímpano retratou, ao mínimo pormenor o quarto onde a filha morreu, com o seu mobiliário, a janela que já não dá para este mundo e a jovem, soerguida no seu leito, enfrentando o Anjo da morte.
Cemitério da Conchada. Porta do jazigo da filha
Sob o tímpano encontram-se esculpidas, duas almofadas: na da esquerda pode observar-se “Daniel na cova dos leões” e na da direita encontra-se representada “Santa Beatriz”; alusões diretas ao seu nome e ao de sua mulher.
Em baixo, a meio dos batentes, visualizam-se dois medalhões que mostram, respetivamente, Cristo e a Virgem, entre lírios e rosas, apontando, nitidamente, para a ressurreição.
Tímpano da porta do jazigo da filha
Ao longo da sua vida, Daniel Rodrigues, que perde dinheiro em muitos trabalhos (a salvação do artista é o artífice), executa “relevos erguidos no ferro forjado à força de buris e martelada”. É um trabalho verdadeiramente “toledano, grosso de aspeto, mas de um valor que atesta bem as possibilidades da forja e do martelo ao serviço da arte”.
Medalha da Casa da Criança Bissaia Barreto
Medalha da Casa da Criança Bissaia Barreto. Estudo
Na IV Exposição Oficial de Arte em Coimbra (1942), patrocinada pela Comissão Municipal de Turismo e que se realizou no edifício da Faculdade de Letras, o artista expôs uma banqueta de ferro forjado e cinzelado, que se destinava à capela da base aérea da Ota, posteriormente também mostrada na igreja de S. Tiago; o desenho e a execução pertencem-lhe, mas apoiou-se, para a riscar, na opinião avalizada do Doutor António Nogueira Gonçalves.
Banqueta para a basa aérea da Ota
Em 1955, mestre Daniel foi encarregado de executar também dois portões para o edifício da Caixa Geral de Depósitos de Coimbra, mas resolveu ceder parte da empreitada ao artista industrial Joaquim Geraldo Lopes.
Portão cinzelado por Daniel Rodrigues com desenho de Raúl Lino
Os seus trabalhos, e já se não refere Coimbra, encontram-se espalhados por todo o país, desde a Régua, a Odemira, passando por Braga, Porto, Aveiro, Figueira da Foz, Torres Novas, Beja, Lisboa, Covilhã, Belmonte, Figueiró dos Vinhos, Espinhal, Santa Comba ou Mortágua.
Oficina de serralharia. Desenho de Daniel Rodrigues
Daniel Rodrigues é um dos artistas que integram a vasta plêiade de serralheiros da cidade do Mondego; para ele, a arte de alindar o ferro não tem segredos: aproveitou bem as lições dos seus mestres.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021.Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-292.
No terreiro que está detrás da igreja de S. António dos Olivais, um pouco escondida, está uma pequena capela.
Capela do presépio, no terreiro posterior da igreja de S. António dos Olivais
Dentro dessa capela encontra-se, na sua singeleza de figuras de barro, um presépio que julgamos ser conhecido de não muitos conimbricenses.
Presépio que foi assim descrito em meados do século passado:
Encostada ao muro do mesmo terreiro, para o lado da estrada dos Tovins, fica a capelita do Presépio, de elementos arquitetónicos do século XVII, abrigando um presépio popular, de algumas dezenas de figuras que devem datar te fins do século XVIII ou já do XIX. Segundo uma lápide foi restaurado em 1929. No seu caráter popular é digno de consideração. O pobre artista inspirou-se de diversos pontos, encontrando-se figuras vestidas à maneira quinhentista, etc.
(Correia, V., Gonçalves, N. Inventário Artístico de Portugal. Cidade de Coimbra. 1947. Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, p. 95.)
Mais chegado aos nossos dias numa conferência a que iremos voltar, o presépio é assim descrito:
“Presépio” popular, de algumas dezenas de figuras, e que devem datar já dos finais do século XVIII ou até mesmo dos primórdios do XIX. Apesar do seu carácter popular, é digno de consideração.
(Anacleto, R. Conferência. Santo António dos Olivais: de ermitério a freguesia, Comemoração dos 151 anos de elevação a freguesia civil de Santo António dos Olivais. 2005.11.20. Coimbra, Casa Municipal da Cultura.)
Embora se possa visualizar no local, o blogue “Pingo de Luz”, permite aceder em https://umpigodeluz.blogspot.com/2012/12/presepio-da-igreja-de-santo-antonio-dos.html, a um conjunto muito interessante de fotografias do presépio.
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Esta lembrança fez-me voltar à minha meninice.
Meu Pai era um Homem que sabia fazer quase tudo. Uns dias antes do Natal, num canto da nossa casa, com algumas pequenas tábuas montava a estrutura de uma pequena montanha que tinha no sopé uma gruta à qual todos os caminhos iam dar.
Depois, o meu Pai pintava, com cores escuras, procurando imitar a terra e as pedras, papel de sacos de cimento ou outro qualquer papel grosso e com esse material dissimulava a estrutura de madeira.
Concluída esta fase era tempo de ir, pela sua mão, buscar um saco de serradura, a uma serração que existia ao fundo da rua Direita. Serradura que servia para se representarem os caminhos.
Existia ainda uma outra tarefa de que muito gostava. Depois de descer até à Portagem e atravessar a ponte, subíamos ao monte sobranceiro ao miradouro do Vale do Inferno. Ali havia um belo musgo verde com tons de amarelo das folhas caídas e também um musgo seco branco que parecia a neve.
Esse musgo era colocado com carinho e arte no presépio.
Na véspera do Natal, durante a tarde dispunham-se as figuras todas a caminho da gruta. Figuras compradas, primeiro na romaria do Espírito Santo e, depois, numa loja da Rua da Sofia que ainda existe. O Menino Jesus só era colocado na manjedoura depois da ceia de Natal e os Reis Magos só chegavam em janeiro.
Era a alegria de uma criança feliz de outros tempos. Eu.
Rodrigues Costa
A todos e a cada um, a quem gosta da nossa Coimbra e em particular aos que seguem este blogue desejo um Feliz Natal e um Bom Ano Novo. Até ao início de 2022.
Rodrigues Costa
Os seguidores da regra instituída por São Francisco entraram na cidade de Coimbra em 1217, fixando-se, inicialmente, nas proximidades da pequena ermida de Santo Antão, numa circunscrição que podemos situar na atual igreja de Santo António dos Olivais.
O levantamento de instalações próprias iniciou-se 30 anos depois, a partir da edificação do complexo conventual junto à ponte, na margem esquerda do Mondego, próximo do hodierno estádio universitário. Mais tarde, em 1314, terá como vizinhança a morada das clarissas conimbricenses que professavam a mesma regra.
Se a intervenção do infante D. Pedro, já em 1247, nos parece fundamental no impulso dado à fundação e respetiva ereção do convento franciscano, os contributos monetários deixados, em testamento, pela sua irmã D. Constança Sanches (falecida em 1269), auxiliaram na continuação da referida empresa. Em 20 de janeiro de 1362, a igreja foi sagrada por D. Vasco, antigo arcebispo de Toledo, assumindo, à época, o cargo de administrador da Diocese conimbricense.
A austera vida quotidiana presente no medievo convento de São Francisco da Ponte contou, desde cedo, com as várias intempéries trazidas pelo Mondego, entre o assoreamento do leito e as consequentes inundações das margens. Da representação gráfica de Coimbra de George Hoefnagel, datada de 1581, transparecem tais dificuldades, uma vez que as águas ladeiam, já com alguma perigosidade, o seu edifício, bem como o análogo cercano pertencente às clarissas.
Na mesma fonte documental são visíveis os resultados nefastos das investidas fluviais, através da representação do mosteiro de Santa Ana - morada das cónegas regrantes de Santo Agostinho - já em ruínas, totalmente cercado por água, uma autêntica ilha no leito do Mondego.
Gravura da cidade de Coimbra nos finais do séc. XVI… George Hoefnagel
O abandono efetivo das instalações franciscanas mediévas ocorreu nos últimos anos do século XVI. Na centúria seguinte, mais propriamente a 2 de maio de 1602, lançou-se a primeira pedra para a edificação de um novo complexo conventual, nos terrenos na margem esquerda do rio, em local mais defensável das suas investidas
… Graças às esmolas recolhidas pelos fiéis, a construção do espaço foi avante, permitindo, já a 29 de novembro de 1609, a passagem dos religiosos para as novas instalações, ainda em fase de edificação
Epígrafe que invoca a construção do novo convento de Sâo Francisco (foto de António Cal Gonçalves), pg. 66
Em termos estético-estilísticos, podemos enquadrar a nova construção conventual nos cânones estéticos do maneirismo, bem presentes na fachada do edifício, de cuja descrição se encarregou o historiador de arte António Nogueira Gonçalves nos seguintes modos: “A frontaria da igreja, grande mas de simples composição de pilastras, divide-se em três zonas: a baixa, com os cinco arcos do átrio; a das janelas, mais estreita, acolitada de dois torreões cheios, terminados em obeliscos; a terminal, só com o grande nicho, onde se encontra uma fraca escultura da Senhora da Conceição, acompanhado de duas outras menores e independentes, S. Francisco e outro santo da Ordem [Santo Antônio]. A sineira fica recuada da linha da fachada; mostra uma ventana grande e, como apenso, uma outra muito menor, para sineta".
O programa estabelecido para o interior da igreja consubstanciou-se numa nave de grandes dimensões, ladeada por três capelas laterais em cada lado, com ligação à zona conventual no lado da Epístola, localizando-se ainda, sobre o nártex, um coro alto que detinha passagem para os espaços privados dos frades franciscanos.
Fachada principal do convento de São Francsco (foto de António Cal Gonçalves), pg. 67
Importa, de igual modo, compreender as restantes dependências que ladeavam a igreja, insertas numa fachada de três filas de janelas colocadas de modo simétrico. Neste quadrante encontram-se a casa do capítulo, a livraria (ou biblioteca), oficinas, os corredores dos dormitórios e respetivas celas, o claustro e nas suas proximidades outras demarcações de intuito doméstico, identificadas como sendo a cozinha, a dispensa, o ante-refeitório, o lavabo e o refeitório.
Na cerca do convento instalou-se uma pequena ermida, provavelmente dedicada a São João Batista, cuja datação surge marcada na entrada com o ano de 1624. Ainda no exterior, desta vez no adro de acesso à igreja, situou-se um cruzeiro datado da mesma centúria que a edificação do convento, embora, por razões de alteração do trajeto viário e, mais tarde, do foro estritamente funcional – uma vez que se achava implementado à entrada da fábrica -, este fosse apeado do local primitivo.
A ocupação dos espaços conventuais pelos frades franciscanos foi interrompida abruptamente pela lei da extinção das ordens religiosas, assinada por Joaquim António de Aguiar, em 30 de maio de 1834. Antes mesmo da referida data que modificou, sobremaneira, a vida dos seguidores da regra monástica assentes por todo o país e, em particular, o contexto religioso da própria cidade de Coimbra, não deverão ser esquecidas as vicissitudes que ocorreram no complexo conventual nos inícios de Oitocentos, sendo ocupado pelas tropas gaulesas - durante as invasões francesas a Portugal (1807-1811) -, que dele improvisaram um hospital de campanha militar.
Descobertas arqueológicas recentes confirmam a presença do referido contingente, uma vez que se exumaram, em valas comuns, cerca de 600 indivíduos do sexo masculino, cujos vestígios da sua indumentária nos reportam indubitavelmente para um contexto militar. Alguns relatos da época afiançam que foi a própria população conimbricense responsável por tais assassinatos, uma vez que após a saída para sul dos soldados liderados por André Masséna, os feridos da Batalha do Buçaco foram deixados nos aludidos hospitais, à mercê da fúria da população. Tais episódios da história da cidade ainda não se encontram devidamente esclarecidos, revestindo-se mais de "sombras" do que de "luzes", faltando ainda compreender a situação dos próprios frades franciscanos perante a ocupação do seu locus matricial.
Com a passagem dos bens religiosos das casas masculinas para o Estado, através do já referido decreto de 1834, o convento de São Francisco viveu tempos novamente tumultuosos, com a saída definitiva dos seus ocupantes, sujeitando-se, num período inicial, ao abandono e à rapacidade. Deste modo, o ciclo primordial fechou-se e um novo se abriu, onde o murmúrio das orações e de vida em comum ditada por uma regra será substituído pelos sons industriais das máquinas e dos trabalhadores.
Freitas, D. M., Meunier, P.P. e Mendes, J. A. (Cordenação e Prefácio). 2019. O Fio da Memória. Fábrica de Janfícios de Santa Clara de Coimbra. 1888.1994. S/loc, s/ed.Pg. 66-70
Será apresentado no próximo dia 6 de fevereiro, às 17h00, na Casa Municipal da Cultura, sala Francisco de Sá de Miranda, o livro A. Nogueira Gonçalves. Colaboração em publicações periódicas.
A. Nogueira Gonçalves. Colaboração em publicações periódicas, capa
A obra, editada pela Câmara Municipal de Coimbra, é constituída por 1148 páginas que se dividem por 2 volumes e incluem, no final, os índices onomástico e toponímico que, obviamente, se revelam de enorme utilidade. Reúne os textos que o Padre Nogueira Gonçalves foi inserindo, ao longo da sua vida, em publicações periódicas, não propriamente de índole científica, mas onde procurava transmitir ao cidadão comum, através de palavras simples e de frases bem buriladas, o seu muito saber. Todo este material, que se encontra disperso e, na maior parte das vezes, é de difícil acesso, passa a estar reunido numa única fonte.
Deve-se aos seus discípulos Doutores Regina Anacleto e Nelson Correia Borges a árdua tarefa de terem procurado e agrupado esses numerosos textos.
O índice dos dois volumes, que aqui reproduzimos, é elucidativo.
Índice da obra
Lembro-me bem da sua figura de homem alto e austero, a caminhar lentamente pela Cidade, de olhos atentos a tudo o que via.
P.e António Nogueira Gonçalves
Conhecendo parte dos escritos ora reunidos – que iremos divulgando neste blogue – não tenho qualquer dúvida em afirmar que se trata de uma obra que irá ser de consulta obrigatória para todos quantos se interessam e dedicam à história de Coimbra e da Região onde a nossa Cidade se insere.
Deve ainda salientar-se a qualidade estética dos textos, dos quais ressalta a paixão pelos temas tratados e o imenso saber de quem os escreveu.
Rodrigues Costa
Notas biográficas;
António Nogueira Gonçalves deixou uma profunda marca na historiografia da arte portuguesa, uma vez que iniciou caminhos nunca antes trilhados e que se vieram a tornar credibilizadores desta área do conhecimento.
Nasceu a 22 de dezembro de 1901 na Sorgaçosa, pequena aldeia escondida nas pregas da serra do Açor, bem perto da mata da Margaraça, concelho de Arganil… Ordenado presbítero a 26 de julho de 1925.
A “res artística” desde muito cedo o atraiu e, apenas com 19 anos, em setembro de 1921, publica no jornal A Comarca de Arganil, um texto onde dá a conhecer a existência, na igreja de Pomares, de um arco românico.
… A dimensão científica que o virá a projetar no tempo, absolutamente pioneira quando, nessa década de 30, desenhou os seus primeiros passos, prosseguirá quase até ao final da vida e manter-se-á, em muitos domínios, inultrapassada.
… A sua multifacetada erudição permitiu-lhe abranger vastas áreas: da Epigrafia à Pintura, da Heráldica à Arquitetura, da Paleografia à Escultura, passando pela Ourivesaria, pela Cerâmica, pelos Tecidos, etc.
Autor de uma vasta obra da qual se releva os “Inventários Artísticos da Cidade de Coimbra” (1947) e do “Distrito de Coimbra” (1952), inicialmente entregues a Vergílio Correia, mas que este mal teve tempo de começar e nos três volumes do “Inventário Artístico” dedicados ao “Distrito de Aveiro” (1959, 1981 e 1991), já da sua inteira responsabilidade.
… Foi nomeado conservador do Museu Machado de Castro em 1942, e depois da morte de Vergílio Correia assumiu a sua direção.
… Em 1968, a Universidade de Coimbra convidou-o para lecionar, na Faculdade de Letras, as disciplinas de História da Arte. Aí se manteve, até à jubilação, ocorrida no ano de 1976, ultrapassado que era o limite de idade.
… A Universidade de Coimbra concedeu-lhe o grau de “Doctor honoris causa” pela Faculdade de Letras em dezembro de 1979.
A Academia Nacional de Belas Artes, por seu turno, elevou-o à categoria de Académico de Honra e, posteriormente, agraciou-o, em 1991, com a Medalha de Mérito de Belas Artes, classe de ouro.
Anos depois, em 1983, a Câmara Municipal de Coimbra, terra que adotara como sua, numa homenagem merecida, atribuiu-lhe a medalha de ouro da cidade e o título de cidadão honorário.
A edilidade arganilense, considerando-o «uma personalidade multímoda, de saber diversificado e profundo», orgulhosa por o poder contar entre as suas gentes, numa sessão solene realizada a 6 de setembro de 1992, no salão nobre dos Paços do Concelho, condecorou-o com a medalha de ouro da municipalidade.
Homem «de um só parecer, de um só rosto, uma só fé, de antes quebrar que torcer», como diria Sá de Miranda, faleceu na sua Sorgaçosa natal a 25 de Abril de 1998.
In: A. Nogueira Gonçalves. Colaboração em publicações periódicas. Nota biográfica. 2019. Coimbra, Câmara Muncipal, pg. 11-13.
O Mondego era na Antiguidade navegável até Coimbra, e mesmo até à foz do Dão; constituía uma importante via fluvial, de oeste a leste, largamente praticada ainda na Idade Média; no sentido norte-sul, a via, agora terrestre, não podia encontrar melhor cruzamento do rio que em Coimbra: para poente, os terrenos eram alagadiços, o rio muito caudaloso e largo; para o interior, as vias tornavam-se ásperos caminhos de montanha. Coimbra era, pois, ponto de passagem obrigatório entre o norte e o sul, centro onde naturalmente se podiam trocar os produtos da serra pelos da planície e do mar.
A existência de uma ponte de pedra romana em Coimbra é mais do que provável. Ficaria sensivelmente no sítio da atual, sítio que corresponde, com ligeira diferença, ao das pontes de D. Afonso Henriques e D. Manuel. Aliás, terão sido estas fábricas novas ou simples restauros da ponte romana?
Atravessado o rio, a estrada romana seguiria a linha das atuais rua de Ferreira Borges (antigamente chamada de Calçada), Visconde da Luz e Direita. Esta última, chamada na Idade Média rua da Figueira Velha, constituiu a saída da cidade até à abertura, no século XVI, da Rua da Sofia.
Na atual Praça 8 de Maio, a via cruzava a torrente, já referida, de ‘balneis Regis’. Foi Vergílio Correia quem sugeriu a existência de umas termas romanas no local onde, em 1131, se deu início à construção do mosteiro de Santa Cruz. E Nogueira Gonçalves … admitiu que a porta mourisca mencionada em documento de 1137 fosse último resto desta construção. De tais termas, porém, nada ficou.
... De outros monumentos romanos de Coimbra, infelizmente desaparecidos, conserva-se mais segura memória. São eles o arco da Estrela e o aqueduto.
… Hefnagel, na gravura de Coimbra, incluída na obra ‘Civitates orbis terrarum’, atribuída tradicionalmente a Braunio, desenhou, no ângulo entre a Couraça de Lisboa e a Couraça da Estrela, três colunas que na legenda aparecem designadas: ‘colunnae antiquae Romanorum’. As colunas assentam sobre um estilóbato baixo e são coroadas por arcos.
Que as colunas romanas não podiam estar situadas exatamente no local onde Braunio as representou, é indiscutível. Daí até negar a existência do monumento é passo grande … não nos deixam dúvidas sobre a existência do monumento, que a Câmara da cidade deixou demolir em 1778 … Era um monumento tão notável, que deu nome à porta da muralha situada ao fundo da Couraça de Lisboa. Com efeito, o nome que esta teve – de Belcouce – significa «no arco» ou «junto ao arco»
… O aqueduto de S. Sebastião foi construído sobre as ruínas de um idêntico cano, muito mais antigo e provavelmente romano …Provam-no as lápides que, em 1570, se colocaram no aqueduto restaurado por D. Sebastião … «… mandou reedificar de novo todo este aqueduto, mais nobremente do que fora feito havia muitos anos…»
Alarcão, J. 1979. As Origens de Coimbra. Separata das Actas das I Jornadas do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro. Coimbra, Edição do GAAC. Pg. 28 a 34
A ocupação pré-romana da cidade é provável, ainda que não provada.
… Na área da cidade, mesmo da cidade alargada do nosso tempo, não se encontraram nunca vestígios pré-romanos. Os mais próximos são os da Caverna dos Alqueves.
Fica situada entre as aldeias da Póvoa e Bordalo, a poente de Coimbra, nas traseiras do mosteiro novo de Santa Clara. Descoberta pelo Dr. Santos Rocha, que aí fez explorações em 1898, foi escavada também por A. Mesquita de Figueiredo, em 1900 e 1901. O espólio encontrado é neolítico.
É provável que o festo da colina onde, no nosso tempo, se instalou a cidade universitária, tenha sido ocupado desde épocas recuadas. O sítio é excelente. Dois vales profundos cavam um fosso natural em redor da colina. O primeiro corresponde à atual Avenida de Sá da Bandeira. Por ele corria um ribeiro chamado ‘torrente de balneis Regis’ no documento de 1137 demarcatório da freguesia de Santa Cruz. O ribeiro, que tomava a direção da Rua da Moeda, tinha caudal suficiente para moer, na Idade Média, as azenhas instaladas nesta rua … O segundo vale corresponde ao Jardim Botânico e à sua mata. Uma rampa natural, que o aqueduto de S. Sebastião, ou dos Arcos do Jardim acompanha, separa os dois vales … Este morro é ainda fendido a meio por aquilo que Fernandes Martins chamou expressivamente uma «cutilada»: um valeiro que, saindo do antigo Largo da Feira, «e seguindo pelo Rego de Água em direção à Rua das Covas, ganha declive cada vez mais rápido, para se despenhar por Quebra-Costas, a caminho da Porta de Almedina». Em 14 de Junho de 1411, segundo revela Nogueira Gonçalves, uma enxurrada de tal sorte se precipitou por este córrego, que arrancou as portas chapeadas de ferro da cidade…
Um sítio naturalmente defendido e cómodo para assento de povoado fica assim definido entre a Couraça de Lisboa e o córrego da Rua das Covas ou de Borges Carneiro. Se nenhuns vestígios de épocas pré-históricas foram aí encontrados, isso se deve, certamente, ao facto de os trabalhos para a instalação da cidade universitária não terem sido acompanhados por arqueólogos.
Na área da atual cidade, outro ponto que os povos pré-históricos poderiam ter ocupado, é o morro da Conchada; não se conhecem aqui, porém, vestígios arqueológicos. Uma «necrópole com sepulturas antropomórficas abertas em rocha», provavelmente medieval, foi descoberta no vale de Coselhas.
Alarcão, J. 1979. As Origens de Coimbra. Separata das Actas das I Jornadas do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro. Coimbra, Edição do GAAC. Pg. 25 a 27
Parece, pois, ser chegado enfim o momento de procurar reconstituir o processo de remodelação do Paço Real de Coimbra posto em marcha por D. Manuel I.
Efetivamente e como escreveria Nogueira Gonçalves, “A Capela de S. Miguel apresenta-se como uma inserção ao conjunto dos paços” – situação ainda hoje visível ao nível dos telhados, que claramente fletem no seu ponto de arranque, evidenciando a sua justificação ao velho organismo palatino e mesmo ao «albacar». Apenas não é, como o ilustre mestre imaginou, “uma das extensões manuelinas aos paços antigos”, mas o produto da intervenção do Infante D. Pedro no solar dos seus maiores, nos quinze anos em que, apesar de tudo, lhe foi dado usufruí-lo. Capela que não é fácil saber como era na verdade, mas que não custa imaginar correspondesse ao corpo e ao vestíbulo da atual, num comprimento duplo da largura, rematada a sul por uma ousia rasgada, no topo, por ventanas … Em ângulo reto e a expensas do corpo do «albacar» que seu pai edificara, avançaria a nova ala residencial, destinada a dotar de melhores condições habitacionais o velho Paço, nesse tempo de crescente civilização e requinte da vida cortesã e que talvez tenha sido o cenário do seu cavalheiresco juramento com o conde de Avranches, antes da trágica jornada de Alfarrobeira, quando no dizer de Rui de Pina, o príncipe o “apartou soo a huuma camara”. E onde também não custa imaginar que remontasse à sua intervenção esse vão que abria da futura antecâmara da Rainha sobre a nave da capela.
Pimentel, A.F. 2005. A Morada da Sabedoria. I. O Paço real de Coimbra. Das Origens, ao Estabelecimento da Universidade. Coimbra, Almedina, pg. 388 a 390
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