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Quando, como escolar, me incorporei (Afonso de Sousa) na Academia de Coimbra, já dela, ou do seu ambiente artístico, se haviam afastado ou se avizinhavam da deserção credenciados cultivadores do canto e da guitarra, de cujas modalidades os da minha geração foram não menos reverenciados continuadores.
Enquadravam-se naquele afastamento os nomes de Manassés de Lacerda, António Menano, seus irmãos Francisco, Alberto e Paulo, Roseiro Boavida, Agostinho Fontes, Paulo de Sá, Borges de Sousa, plêiade de que ainda restavam, cursando estudos um Aires de Abreu, um Aduzindo da Providência, um Lucas Junot …
Em idênticas circunstâncias de temporalidade se deverão contar Edmundo de Bettencourt e Artur Paredes e que, já afamados em 1920, atravessaram todo este decénio …
Desconheciam-se ainda os futuros pares, adventícios reforços da mesma constelação, colunas de um empório cultural que a Academia jamais logrou superar … estou a lembrar-me dum Luís Goes, dum Zeca Afonso, dum Jorge Tuna e, sobretudo … desse genial Carlos Paredes, em cujas mãos se entregaram os últimos segredos dum sortilégio de que a guitarra, até Artur Paredes, se havia mostrado instrumento de cioso engenho.
Efetivamente, Armando Goes, Paradela de Oliveira, Albano Noronha, Almeida d’Eça, Laurénio Tavares, José Pais de Almeida e Silva surgiram ou evidenciaram-se só por volta de 1923/1924 … mas ainda dentro do aludido ciclo, se viram despontar – um Serrano Batista, um Lacerda e Megre, um Felisberto Passos, um Jorge Alcino de Morais (Xabregas), um Fernando Pinto Coelho, outros não citando porque Pinho Brojo. António de Portugal, João Bagão, Luís Goes, Fernando Rolim, embora próximos, se revelaram somente no ciclo ou ciclos imediatos.
…A guitarra de Coimbra, como instrumento criador de arte, veículo de comunicação de arte, impulsionador de transportes emocionais auditivos, emancipou-se … criando nas paragens do Mondego, um estilo «sui generis», de «variações», composições parcelares curtas, mas que, num lógico encadeamento, estruturando uma característica composição a que o autor, consoante o estilo imprimido (alegre, triste, rápido ou aligeirado), atribuirá um título condizente.
Foram afamados executantes, a partir do já lendário Hilário, (que não se limitou a cantar) Alexandre de Rezende, mais compositor e cantor do que executante, Paulo de Sá, Francisco Menano, Sampaio Mansilha, Manuel Alegre, Borges de Sousa, João Duarte de Oliveira, suponho que também João de Deus Ramos … sendo de justiça não omitir, posto que não académicos, os nomes de Antero da Veiga, Gonçalo Paredes – o patriarca de uma geração inultrapassável -, seu irmão Manuel Paredes, Flávio Rodrigues.
Sousa, A. 1981. O Canto e a Guitarra na Década de Oiro da Academia de Coimbra (1920-1930). Coimbra, Comissão Municipal de Turismo, pg. 13 a 19
Fado de Coimbra?
Mas a toada coimbrã, apregoada sob essa designação e como tal já universalmente reconhecida, deverá, efetivamente, enquadrar-se na veia paradigmática do «Fado» propriamente dito?
… Debrucei-me um pouco sobre … «fado lisboeta» para poder estabelecer uma linha de diferenciação com o «chamado fado coimbrão», ficando em melhores condições para justificar o cuidado que tive – e quero ter – em não utilizar a designação «Fado de Coimbra», antepondo ao título, cautelosa e restritivamente, o classificativo de «o chamado» - o «Chamado Fado de Coimbra».
E não é agora que se me antepõe a reticência. Num apontamento marginal de um livrito meu (quando a propósito da «revelada tendência de Luís Goes para a trova, balada ou canção, afirmei não hesitar tê-lo como um percursor das novas toadas, seu contemporâneo «Bettencourt»), já então escrevi: “E se não inculco este género de antípoda do «chamado» fado de Coimbra, é porque «verdadeiramente em Coimbra não houve fado», mas tão somente «canção», por vezes de reconhecida sentimentalidade, é certo, mas nunca enformada em temas trágicos ou fatalistas, tão específicos daquela efetivamente depressiva composição, em que Lisboa se louva e a minha sensibilidade também não enjeita”.
… Ao contrário do que sucede com a lisboeta, os compositores de Coimbra constroem as suas composições «abstratamente» (música por música), isto é, valem-se de uma fonte instintivamente criadora, dum espontâneo fogo interior, «sem disporem ainda de um tema literário a musicar», seja a tradicional quadra, seja outro poema,( «exceção para o soneto, em que se revelou mestre D. José Pais de Almeida e Silva, infelizmente sem continuadores; exceção ainda para as conhecidas «Carta da Aldeia» e «Carta de Longe», realçadas na voz de oiro de António Menano).
Não é curial, nem didática, a invocação do próprio testemunho. Releve-se-me, pois, a citação: Duas canções que vejo gravadas em discos por Almeida d’Eça, António Bernardino, Armando Goes e Luís Goes, compu-las quando ainda não tinha premeditado a letra, pelo que julgo da mesma forma terem procedido outros compositores.
Enfim: libertos desse condicionalismo, tantas vezes prejudicial à espontaneidade criacional – e na espontaneidade é que se revelam a garra, o talento e o génio – as composições resultam necessariamente «mais leves, menos arrastadas, consequentemente mais acessíveis e perduráveis».
… Estamos, assim, nitidamente, face aos primeiros pontos de divergência … na congénere coimbrã, toda cançonetista, airosa e leve, a que bem assenta a designação de «canção», a «Canção de Coimbra», ou mesmo, (por condescendência a uma tradicional nomenclatura, arreigada no tempo), «Fado Canção de Coimbra».
… E isto se diga em defesa da pureza daquilo que eu considero o «Chamado Fado de Coimbra»
Sousa, A. 1981. O Canto e a Guitarra na Década de Oiro da Academia de Coimbra (1920-1930). Coimbra, Comissão Municipal de Turismo, pg. 5, 8 a 13
No «Caderno de Muzica» acima referido há modinhas com as duas versões: acompanhamento de piano e acompanhamento de viola. Uma delas, intitulada «Adeus – Modinha para o canto e violão» … pode considerar-se como o elo de ligação entre a modinha e o fado-serenata. De modinha ainda tem alguns grupetos em vocalizos.
Mas, de resto, o gosto melódico, bem como a sequência das modulações aproximam-na do que há-de ser o fado-serenata.
A partir daqui, outros elementos foram condimentar o género de que tratamos até ele se fixar no princípio do séc. XX, naquilo que foi assumido pelos estudantes da Universidade de Coimbra como canção própria, como símbolo do seu romantismo.
Comparando os primeiros exemplares com os mais evoluídos, dos anos 20, verificamos uma nítida influência da música erudita cantada pelo Orfeão Académico.
… Por outro lado, ao analisarmos os fados do Hilário, nele encontramos ainda o ritmo que caracterizou o fado lisboeta (com síncopa no segundo tempo do compasso binário). É este, também, o ritmo do fado-serenata de Manuel Luís Ferreira Tavares, impresso em 1901, como o fado composto por Alfredo de Sá para o «Enterro do Grau» de 1904, e do que Luís Pinto d’Albuquerque apresentara na récita de 1904.
Mais tarde, com Paulo de Sá, Carlos Figueiredo e António Menano, é abandonado o compasso binário, em favor do quaternário. Então aquele ritmo sincopado ainda se mantém nos dois últimos tempos do compasso, mas, dum modo tão disfarçado que só com muita atenção se pode detetar.
E este é, a nosso ver, o único elemento que o chamado fado-de-Coimbra recebeu do fado que é mesmo fado – o de Lisboa.
Mas quando aportei a esta cidade para nela estudar … vi o fado doutra maneira: ele era «nosso», mesmo quando o não cantávamos; aprendia-se ouvindo e não lendo; este não tinha autor – só tinha cantor.
Numa palavra: fora assumido por um determinado grupo humano. Daí o seu valor como testemunho duma época, dum modo de viver e sentir.
Faria, F. 1980. Fado de Coimbra ou Serenata Coimbrã? Coimbra, Comissão Municipal de Turismo, pg. 13 e 14
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