Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Iniciamos hoje a divulgação de dois textos inéditos, que dividimos por quatro entradas, da autoria de Regina Anacleto e que têm como objetivo a divulgação sumária da vida de Mestre Albertino Marques e o estudo de uma peça que ele cinzelou para a Capela do Seminário Maior de Coimbra.
Albertino Marques que nasceu em Coimbra, na freguesia de Santa Cruz, a 27 de abril de 1890, é um dos artistas que, na primeira metade do século XX, trabalhavam o ferro forjado na cidade do Mondego.
Albertino Marques (Coimbra, 1890-Coimbra, 1966)
O artífice frequentou a Escola Industrial Brotero e quando, em 1907, apenas com 14 anos, terminou o curso iniciou o seu percurso como obreiro do ferro com o serralheiro António Maria da Conceição (Rato) e, posteriormente, em 1918, na oficina de Francisco Nogueira Seco, localizada no Quintal do Prior.
Após a morte deste artista sucedeu-lhe na sociedade, de parceria com os descendentes do industrial e com Daniel Rodrigues. A sociedade girava sob o nome de “Seco, Graça & Marques”. Contudo, Daniel, em 1919, separou-se e inaugurou a sua serralharia no Terreiro da Erva, n.º 36, local onde permaneceu até ao fim da vida e Albertino, a partir de 1929, instalou a sua oficina na Rua João Machado.
Albertino Marques, que jamais deixou de estudar, com o desejo de melhorar a sua formação, passou a frequentar a Escola Livre das Artes do Desenho e a ter como mentor mestre João Machado.
A sua capacidade de saber fazer falar o ferro tosco, tornando-o delicado, introduziu o seu nome entre os mais conhecidos artistas que, em Portugal, se dedicaram à arte de forjar.
A serralharia artística constituiu o objetivo primacial de toda a vida de Albertino Marques, mas, nomeadamente por questões de ordem económica, tornou-se-lhe impossível colocar à margem outros trabalhos mais vulgares.
Lanterna do Parque de Santa Cruz
Ativista das antigas organizações operárias, cedo compreendeu a importância da publicidade na difusão da arte do ferro, facto que, de algum modo, lhe permitiu espalhar as peças saídas da sua oficina por todo o país; os artefactos passavam por tocheiros, em estilo gótico, renascentista ou ‘modernizado’, por lâmpadas cinzeladas ou por portas e grades para jazigos e campas.
Publicidade
No meio artístico conimbricense, sobretudo no ligado ao ferro forjado, a partir de 1933, instalou-se uma grave crise que se foi prolongando até meados da centúria, agravada por vicissitudes várias, a passarem pela falta da encomenda de trabalhos importantes que ajudassem os artistas a preservar a sua arte e pelo panorama económico da sociedade, que dificilmente permitia às pessoas dispor de numerário passível de possibilitar a compra de obras já que estas não se assumiam como bens necessários à sobrevivência.
Albertino Marques, antes de, em 1955, por razões de saúde, ter encerrado, definitivamente, a sua oficina, realizou várias obras em serralharia artística para instituições religiosas.
Posteriormente, passa a entreter as horas de ócio escrevendo sobre coisas de Coimbra e da sua arte. Nesses escritos, publicados no jornal «O Despertar», revela o gosto e o conhecimento das várias formas de arte, bem como o seu interesse por tudo o que diz respeito à sua cidade natal.
Caricatura de Albertino Marques
A 27 de abril de 1966, com 76 anos de idade, depois de ter dedicado 62 à arte do ferro forjado, morre em Coimbra na sua residência, sita na Rua João Machado, o artista Albertino Marques.
Anacleto, R. Albertino Marques (Coimbra, 1890-Coimbra, 1966). Breves notas soltas. 2024. Texto inédito.
Os artistas conimbricenses do ferro iam batendo as mais diversas peças, trabalhando quase sempre isoladamente, mas expondo-as coletiva ou individualmente, tanto em mostras locais, como nacionais; contudo, quando elaboravam algum artefacto mais requintado, não se eximiam de o apresentar no Museu Machado de Castro, na Faculdade de Letras, ou na montra de algum estabelecimento comercial da Calçada.
Uma, talvez a primeira grande apresentação pública dos seus trabalhos fora da cidade, aconteceu em 1905, na exposição que o Grémio Artístico ou a Sociedade Nacional de Belas-Artes (as fontes divergem) anualmente realizava em Lisboa. Estiveram aí presentes trabalhos de Daniel Rodrigues, de Lourenço Chaves de Almeida, de Manuel Pedro de Jesus, de António Craveiro e de António Maria da Conceição.
António Craveiro. Porta de jazigo
Pode ficar-se com uma ideia desta mostra através da leitura do artigo que Quim Martins publicou, em 1906, na “Illustração Portugueza”.
A Resistencia, por seu turno, informa que Chaves de Almeida expôs as ferragens (tenaz, suporte e pá) que se destinavam a fazer conjunto com um fogão que João Machado esculpira para a casa de José Relvas, em Alpiarça. “As peças foram batidas em estilo renascença e o ferro está torcido como o dos pequenos balaústres que essa arte requintada deixou espalhada por palácios e jardins de Coimbra. A obra foi feita segundo um croquis de António Augusto Gonçalves, como os ele sabe fazer, apontamento ligeiro destinado apenas a sugerir, a excitar a actividade criadora dos seus discípulos. Os dois monstros que o enfeitam estão poderosamente martelados e esculpidos em ferro. Toda a obra revela excepcionais aptidões para a arte de trabalhar o ferro que, depois do período atormentado do ferro fundido, hoje renasce por toda a parte”.
Chaves de Almeida. Ferros para uma chaminé da Casa dos Patudos
Mas, a primeira obra coletiva de vulto surgiu quando foi necessário dar resposta aos trabalhos de ferro, destinados ao edifício da Faculdade de Letras, que havia sido projetado, em 1913, pelo arquiteto António Augusto da Silva Pinto.
Faculdade de Letras projetada pelo arquiteto António Augusto da Silva Pinto
Um pouco estranhamente, ou talvez não (a falta de dinheiro pode ser uma das explicações viáveis), só em 1927 vieram a ser assentes, na fachada principal do edifício, os grandes portões de ferro forjado, obra dos artistas Manuel Pedro de Jesus, António Maria da Conceição (Rato), Daniel Rodrigues, Albertino Marques. A direção do trabalho e o desenho dos portões é da responsabilidade de Silva Pinto.
Portão da antiga Faculdade de Letras sem a bandeira
Aliás, a Faculdade de Letras, pode bem dizer-se, manteve uma avença com o ferro forjado, porque, dois anos antes, em 1925, Albertino Marques tinha em mãos uma grade que se destinava àquela casa e em 1928 e 1929 executou quatro artísticos candelabros para serem colocados na escadaria, bem como dois monumentais tocheiros, pesando, cada um 70 quilos e medindo 1,80 metros, para o vestíbulo. Além disso, no mesmo estilo dos candelabros, também com desenho e sob a orientação de Silva Pinto, bateu dois portões de ferro forjado para a entrada do museu da Faculdade. Numa linha mais prosaica e utilitária, foi entregue a mestre Albertino a feitura de 39 metros de estantes de ferro.
Portão da antiga Faculdade de Letras. Pormenor
Mas as encomendas da Faculdade de Letras não se ficaram por aqui, pois em 1930, nas oficinas de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques estavam a executar-se umas artísticas ferragens para a porta do salão nobre do edifício e seis anos depois aquele imóvel ia ser rodeado com uma grade de ferro, cuja execução fora confiada a Albertino Marques, a Daniel Rodrigues e a Jesus Cardoso.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021. Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-290.
A serralharia artística de Coimbra renasceu com António Augusto Gonçalves e com o Dr. Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, na intimidade Mestre Gonçalves e Mestre Quim Martins, como lhe chamava a plêiade de artistas do ferro que foram seus discípulos: António Maria da Conceição (Rato), Albertino Marques, António Craveiro, Daniel Rodrigues, Lourenço Chaves de Almeida, Manuel Pedro de Jesus, José Domingues Baptista e Filhos, José Pompeu Aroso, e tantos outros. Das mãos dos ‘ferreiros’ saíram obras notáveis, capazes de marcar o ressurgimento daquela arte rude e maravilhosa que, em Coimbra, a partir de meados do século XIX, tanto tinha decaído, limitando-se, a bem dizer, ao fabrico de camas e de lavatórios, como se verificou na exposição, realizada em 1869, no salão da Associação dos Artistas.
Joaquim Martins Teixeira de Carvalho
Nesse renascimento, para além dos citados Gonçalves e Quim Martins, podem ainda referir-se os nomes de Manuel Pedro de Jesus e de João Augusto Machado, este também a tentar o ferro e o primeiro que, a partir de certo momento, lhe dedicou todo o seu saber e criatividade; por isso, os podemos apelidar de precursores da serralharia artística aeminiense.
A Câmara Municipal, logo em 1903, entendendo que devia encorajar a nova indústria, abriu concurso para a construção de um coreto destinado a ser colocado no novo Passeio Público que se iniciava no Largo das Ameias. Manuel José da Costa Soares, o artista que emprestara os utensílios a João Machado e o ensinara a bater o ferro, concorreu, a par com algumas firmas industriais sediadas no Porto.
Coreto no Passeio Público
Costa Soares era dono de uma alquilaria, sita à Rua da Sofia, na inacabada igreja de S. Domingos, onde, ao fundo, um pouco afastado da entrada, montara a forja. Mas os seus trabalhos de ferro já eram conhecidos, porque foi ele que arrematou a parte metálica do então Teatro-Circo e também é da sua autoria a cúpula metálica da Penitenciária, feita em 1887.
A comissão nomeada para apreciar as propostas que haviam sido apresentadas acabou por dar o seu aval à do referido industrial, porque, para além do mais, o seu projeto não era uma obra de catálogo, de fabrico em série, mas tratava-se de uma construção inédita. Contudo, foi “o modesto artista sr. João Gaspar, que na officina do sr. Manoel José da Costa Soares forjou as peças do corêto que a camara municipal mandou construir na Avenida Emygdio Navarro”.
Coreto. Manuel José da Costa Soares com desenho de Silva Pinto
A estrutura, posteriormente transferida para o Parque Dr. Manuel Braga, foi adjudicada a 18 de fevereiro do ano seguinte, e sabe-se, apenas através do que se encontra escrito em jornais publicados na cidade, que o arquiteto Silva Pinto, “um dos mais calorosos apóstolos do novo culto”, executara o seu desenho e que a edilidade tinha todo o interesse em entregar a obra a um artista da cidade, porque podia, deste modo, implementar a indústria nascente.
O coreto depois de transferido para a Parque Dr. Manuel Braga
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021. Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-290.
Há já algum tempo utilizei o pequeno autocarro que liga o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha à Universidade, passando pela Mata do Botânico, a fim de desfrutar a beleza que tal deslocação (devia) proporciona(r), mas, na passada quarta feira (29 de agosto) percorri a pé parte da Mata, partindo do belíssimo portão que se encontra na Rua da Alegria até ao Reservatório, adossado ao que resta da muralha que ainda se pode visualizar num pequeno troço da Couraça de Lisboa.
Tive então ocasião de analisar mais pormenorizadamente todo o percurso e, se vi coisas de que gostei, outras houve que me causaram tristeza e me desgostaram.
Começando pelas primeiras.
- Portão da Rua da Alegria
Antiga Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
Portão da Rua da Alegria, antes do recente restauro
Portão da Rua da Alegria. Pormenor
A peça pertenceu a uma das entradas da primitiva Faculdade de Letras que se erguia no local onde atualmente se encontra a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Projetou o edifício, em 1912, o arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto. O desenho dos portões, colocados apenas em agosto de 1927, também lhe pertence e foram batidos por Manuel Pedro de Jesus, António Maria da Conceição (Rato), Daniel Rodrigues e Albertino Marques, todos eles saídos da plêiade dos serralheiros artísticos de Coimbra. Depois da intervenção na zona da Alta, que acabou por transformar o edifício em causa, um dos portões foi transferido para a Rua da Alegria, enquanto os outros e as bandeiras das aberturas levaram sumiço. Como se comprova estamos perante mais uma muito boa obra de serralharia saída das oficinas coimbrãs a merecer um olhar atento.
- Recuperação do caminho pela Mata
O caminho percorrido pelo miniautocarro atravessa parte da mata e, para além de ser muito belo, está bem conseguido; passa, nomeadamente, junto ao bambuzal, provavelmente o maior da Europa. O número de turistas que utilizam aquele transporte, bem como os que se deslocam a pé e que encontrei tanto a descer como a subir podem fruir da beleza da mata. Realidades que justificam a existência da carreira e a necessidade de a manter a funcionar.
- Reservatório
Embora ainda não esteja completa a recuperação do reservatório de água existente na Mata do Botânico e que serviu para, outrora, abastecer do precioso líquido a parte baixa da cidade, aquilo que já foi feito – como se constata a partir da entrada publicada na passada 3.ª feira – permitiu alertar para a existência de um património de interesse que se encontrava completamente esquecido e cuja reabilitação importa terminar dando-lhe uma conveniente utilização, quiçá de índole cultural. Talvez seja de equacionar, por nos parecer uma boa utilização deste espaço, a instalação de um polo do Museu da Água.
Passo a referir, a partir daqui, os aspetos que me causaram tristeza e me desgostaram.
- Fonte da Mata de S. Bento
Fonte da Mata de S. Bento
Magnificamente enquadrada na Mata o Professor Nelson Correia Borges carateriza-a como sendo uma fonte típica das “cercas monásticas, que, juntamente com sítios de fresco, capelas e tanques de água se assumiam como locais de recreio, de meditação e de oração situadas sempre em contacto com a natureza”.
A imagem fala por si mesma, mostrando que a estrutura se mostra carecida de urgente recuperação antes que os homens, o tempo e a Natureza a façam desaparecer.
- Capela de S. Bento
Capela de S. Bento
Seguindo as placas de orientação chega-se a um local paradisíaco. Um dossel de árvores abriga a capela de S. Bento, onde a reflexão em profunda interação com a Natureza por certo acontecia.
Como os trabalhos de desmatação levados a cabo no local se tornam evidentes, pensamos que, sem grandes custos, se podia ter ido mais longe e limparem-se as paredes exteriores e isto sem prejuízo das obras de maior envergadura de que a capela, por certo, necessita.
- Muralha de Coimbra
Ao prosseguir no caminho de acesso ao Reservatório passámos por um local onde outrora existiu um miradouro e de onde nos foi possível recolher as imagens que seguidamente publicamos.
Muralha. Couraça de Lisboa 1
Muralha. Couraça de Lisboa 2
Muralha. Couraça de Lisboa 3
Muralha. Couraça de Lisboa 4
Ao longo dos séculos a cidade e as suas gentes não quiseram, ou não puderam, evitar o desmantelamento da Muralha de Coimbra.
É verdade que a valorização do pouco que resta já se iniciou, mas urge prosseguir para fielmente, e assente em dados concretos, se escrever a História de cidade e valorizar dignamente o que subsiste dessa estrutura.
É hoje inquestionável que a valorização de uma cidade passa pelo progresso, mas este deve assentar no respeito que os seus habitantes e os seus autarcas mostrarem (e demonstrarem) tanto pelo passado, como pela História da urbe.
Finalmente decidiram-se por construir o prédio destinado á sua agência no Largo Príncipe D. Carlos, atual Portagem, e que em 1912, aquando da inauguração do imóvel fora, por via da implantação da República, renomado de Miguel Bombarda; mas, para tal, tiveram de comprar as casas dos senhores António José Vieira e Paulo Antunes Ramos, ligadas ao Café Montanha, já então a funcionar e negociar com a Câmara Municipal a cedência de algumas parcelas de terreno. Face ao acordo estabelecido entre as partes o Banco de Portugal tinha de pagar à edilidade a quantia de 12$000 réis por cada metro quadrado de terreno público que ocupasse.
Fig. 3 - Largo Príncipe D. Carlos (Portagem) c. 1890
Os diretores da entidade bancária encarregaram de riscar o projeto da agência da cidade do Mondego Arnaldo Redondo Adães Bermudes (Porto, 1863-Sintra,1948) que, em 1902, fora já o responsável pelo edifício da cidade de Bragança.
O arquiteto formou-se na Academia de Belas Artes do Porto e continuou o seu desenvolvimento académico em Paris, onde frequentou diversas escolas e ateliers, com particular destaque para a “École de Beaux Arts”. Regressou a Portugal em 1894 e instalou-se em Lisboa. Ao longo da vida profissional recebeu diversos prémios e distinções, além de ter exercido cargos relevantes no contexto da administração pública.
Fig. 4 - Arquiteto Adães Bermudes
Adães Bermudes, nas obras que projetava, não empregava um só estilo, e possuía a destreza e a habilidade necessárias para utilizar as mais diversas soluções, tendo sempre presente o contexto em que a obra se inseria e o fim a que se destinava.
Procurando apresentar desenhos funcionais e racionalistas recorria com idêntica desenvoltura a modelos relacionados com a arquitetura francesa, com o ecletismo ou com os neomedievalismos. Também não se eximia a aceitar as novas correntes arquitetónicas, quer estivessem relacionadas com o modernismo ou com a Arte Nova, nem marginalizava a introdução de «novos» materiais nas suas construções; estamos a falar do ferro, do vidro e do betão armado.
Adães Bermudes, enquanto arquiteto de seleção do Banco durante cerca de 20 anos, traçou 10 dos 17 projetos das agências então construídas e pode dizer-se que definiu a imagem de marca do Banco.
Fig. 5 - Projeto da Agência do Banco de Portugal em Coimbra
À construção do edifício mondeguino, posta em praça em outubro de 1909 com a base de licitação de 27.416$000 réis, apresentaram-se cinco concorrentes, mas a empreitada, com a obrigatoriedade de ser concluída no prazo de dois anos, acabou por ser arrematada por João Gaspar Marques das Neves pela quantia de 25.616$000 réis.
No dizer da revista “A Architectura Portugueza” o edifício da Agência do Banco de Portugal que se ergueu, a partir de 1908, na «Pérola do Mondego» “é (…) um belo trecho de arquitetura moderna, de linhas elegantes, corretas e harmoniosas, duma grande pureza de estilo”.
Devido ao facto de o edifício se encontrar implantado num terreno que apresenta um apreciável declive, dos três pisos existentes apenas dois se podem visualizar na fachada principal que, pode dizer-se sem grande rigor face à assimetria existente, se encontra dividida em três panos, separados por largas pilastras de cantaria esculpida.
No piso térreo que deita para a Portagem, na parte central, rasga-se uma enorme porta ladeada por aberturas que se multiplicam, também lateralmente, no referido nível e o piso superior apresenta-se rodeado por ventanas e sacadas decoradas com aventais e balaustradas de pedra trabalhada.
A porta (e, provavelmente, dizemos nós, utilizando um critério de similitude, toda a gradaria que veda as aberturas do piso térreo), “delicado trabalho de serralheria artística” saiu da forja de António Maria da Conceição (Rato), homem cuja atividade artística não se encontra bem documentada, mas que, com tantos outros “ferreiros” mais conhecidos contribuiu para o desenvolvimento da tão significativa arte conimbricense do ferro.
Fig. 6 - Portal e ventanas. Gradaria de ferro forjado
Mestre Conceição não se quedava confinado ao mérito artístico, mas assumia-se como cidadão prestante, pois durante mais de trinta anos desempenhou o cargo de comandante dos Bombeiros Voluntários.
Corre, na parte superior do edifício, uma platibanda de cantaria que, a espaços, suporta urnas e se interrompe, aqui e além, por pequenos frontões e por elementos esculturados.
Na zona central, a platibanda é descontinuada por uma pseudoarquitrave onde se pode ler «Agencia do Banco de Portugal».
Uma edícula, onde se destaca um relógio, sobrepujada por um frontão interrompido que contém, ao centro, as armas de Coimbra cingidas por uma coroa mural, termina o conjunto.
Fig. 7 - Agência do Banco de Portugal. Pseudoarquitrave e edícula com relógio
Refira-se a existência de um relógio na zona nobre do edifício, máquina, na época, omnipresente em fábricas, escolas, estações de caminho de ferro e muitas outras estruturas, utilizada até à exaustão depois do take off industrial, na medida em que obriga à passagem do tempo do pouco mais ou menos para o tempo da hora certa.
A agência mondeguina, como era comum, possuía caixas fortes que, devido ao já aludido grande desnivelamento do terreno, para além de se encontrarem instaladas no subsolo, “ocupam um vasto espaço e são construídas com a maior solidez em «béton» couraçado de ferro, com portas à prova de fogo, construídas pela Fábrica Portugal”.
No rés-do-chão, precedia um espaçoso hall ao redor do qual se instalavam as diversas secções da Agência com o pessoal especializado a desempenhar os serviços adequados, um longo vestíbulo e vários gabinetes destinados à receção do público.
Fig. 8 – Hall
Fechava o hall uma cobertura de ferro e vidro que exibia vitrais saídos da oficina de Cláudio Nunes, conhecido vitralista.
As colunas, de ferro fundido, foram executadas na oficina de José Alves Coimbra.
O edifício possuía um conforto que, para a época, se pode considerar fora do comum, passando pelo aquecimento central, instalado pela conhecida casa francesa de Felix Labat que “é das mais perfeitas”, e por uma iluminação que quase nos atrevíamos a apelidar de feérica a cargo da firma lisboeta Herrmann.
Encarregou-se dos serviços de canalização de água e de gaz, bem como do fornecimento dos artigos sanitários necessários Caetano da Cruz Rocha que tinha o seu estabelecimento na Calçada.
ORIENTAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
OBRAS DE CONSULTA
DAMÁSIO, Diogo Filipe Monteiro, Arquitetura do Banco de Portugal. Evolução dos projetos para a sede, filial e agências do Banco de Portugal (1846-1955), Coimbra, 2013. [Policopiado]
http://restosdecoleccao.blogspot.pt/2011/11/banco-de-portugal-em-coimbra.htmll
https://pt.wikipedia.org/wiki/Banco_de_Portugal
https://www.bportugal.pt/page/historia
Relatorio do Conselho de Administração do Banco de Portugal. Gerencia do anno de 1905. Balanço, documentos e parecer do Conselho Fiscal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1906, p. 21.
https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/pdf-boletim/relatorioca1905.pdf.
PUBLICAÇÕES PERIÓDICAS
Architectura Portugueza (A), 4, Ano VI, Lisboa, 1913.04.00.
Gazeta de Coimbra, Coimbra, 1912.10.26; 1912.11.02.
Jornal de Coimbra, Coimbra, 1911.08.05; 1912.01.31; 1912.10.30.
Defeza, Coimbra, 1910.03.25.
Noticias de Coimbra, Coimbra, 1908.01.18; 1909.10.02.
Construcção Moderna (A), 273, Ano IX, n.º 9, Lisboa, 1908.10.10.
Resistencia, Coimbra, 1903.05.03; 1906,07,01; 1907.07.02; 1907.08.25; 1907.09.20; 1907.10.03; 1907.10.06; 1908.11.15.
Conimbricense (O), Coimbra, 1906.07.05.
Tribuno Popular (O), 4893; 5211, 6907, Coimbra, 1903.05.06; 1906.06.30; 1907.06.08
António Augusto Gonçalves entregou-se ao ressurgimento do trabalho em ferro com o mesmo fanatismo que lhe era reconhecido no respeitante às outras artes e “encontrando” em Manuel Pedro de Jesus que, por volta de 1900, já era sócio da Escola Livre, aptidões excecionais para a serralharia decorativa, incentivou-o a trabalhar nesse campo. Quando finalmente, em 1907, na Escola Industrial Brotero, começaram a funcionar as oficinas de marcenaria e talha, de serralharia, de cerâmica e de formação, Manuel Pedro foi nomeado mestre da de serralharia, lugar que, em 1925, voltava a ocupar, sendo-lhe então reconhecida uma enorme competência e a capacidade de saber aliar a um profundo conhecimento prático da sua especialidade, a teoria necessária, para que o ensino resultasse profícuo e consciente.
A indústria contemporânea do ferro forjado renasceu em Coimbra com a nova centúria, viveu na cidade, mas espalhou-se por todo o país. Homens e mulheres de bom gosto e fartos meios económicos faziam as suas encomendas aos serralheiros do burgo, que também não eram esquecidos pelos arquitetos lisboetas e não só. Adães Bermudes encomendou-lhes peças de ferro forjado para ornamentar edifícios saídos do seu lápis; Raul Lino desenhava peças para eles forjarem; Álvaro Machado louvou-os pelo trabalho executado e, em 1928, foram convidados a participar na exposição de Sevilha.
Também na exposição que Raul Lino levou a efeito nas salas do Instituto, onde apresentou, entre projetos, anteprojetos, plantas, esboços, fotografias, etc., trinta e nove peças, foi feita referência a trabalhos “de distinctos artistas de Coimbra”, concretamente a João Machado, na escultura, e a Manuel Pedro de Jesus e a Lourenço Chaves de Almeida, no ferro forjado.
Casa dos Patudos. Candelabro neogótico
... No entanto, para sobreviver, a arte do ferro não podia apenas contar com encomendas vultuosas, teria de se democratizar, como bem dizia o Dr. Quim Martins e, para tal, fazer com que se tornassem necessários os objetos mais simples e de uso corrente, manufaturados naquele metal.
A par com os grandes candelabros, com os leitos pompeianos, com os portões da Faculdade de Letras ou do Palácio da Justiça, teriam de surgir as grades das varandas, os pequenos portões de jardins, as bandeiras das portas, as tabuletas de anúncios, os gradeamentos dos muros, os portais dos jazigos, as pequenas grades de campas, os puxadores das gavetas e as dobradiças das arcas. Realmente, a arte do ferro, democratizou-se, a indústria vingou e, para além das peças que ainda hoje ornamentam tantas casas e causam orgulho aos que as fruem, Coimbra passou a ser a “cidade das grades”.
Ninguém podia imaginar que nas negras e mal apetrechadas serralharias de Coimbra, entre as labaredas rubras das suas forjas e o ruído dos malhos tirando chispas fulgurantes dos vagalhões candentes, existia, latente, à espera de a despertarem, essa força criadora que transforma o ferro duro e de aspeto indomável em peças de requintado gosto artístico.
A serralharia artística de Coimbra renasceu com António Augusto Gonçalves e com o Dr. Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, na intimidade Mestre Gonçalves e Mestre Quim Martins, como lhe chamava a plêiade de artistas que foram seus discípulos: António Maria da Conceição (Rato), Albertino Marques, António Craveiro, Daniel Rodrigues, Lourenço Chaves de Almeida, Manuel Pedro de Jesus, José Domingues Baptista e Filhos, José Pompeu Aroso, e tantos outros.
Daniel Rodrigues. Igreja de S. António porta
Das mãos dos ‘ferreiros’ saíram obras importantes, capazes de marcar o ressurgimento daquela arte rude e maravilhosa que, em Coimbra, a partir de meados do século XIX, tanto tinha decaído, limitando-se, a bem dizer, ao fabrico de camas e de lavatórios, como se verificou na exposição, realizada em 1869.
Nesse renascimento, para além dos dois mestres citados, podem ainda referir-se os nomes de Manuel Pedro de Jesus e de João Augusto Machado, este também a tentar o ferro e o ouro que, a partir de certo momento, lhe dedicou todo o ser saber e criatividade; por isso, foram precursores da serralharia artística de Coimbra.
Anacleto, R. 1999. Ourives Conimbricenses do Ferro na primeira metade do século XX. Conferência nas I Jornadas da Escola do ferro de Coimbra. In publicado Munda, n.º 40, p. 9-13
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.