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(As minhas) Memórias da Rua das Covas (continuação)
Rua das Covas, telhados
Toda a rua era um fervilhar de vida, um ovo de humanas esperanças e ambições.
Recordo o Sr. Edmundo, sapateiro, o Sr. Joaquim, da mercearia, onde eu ia buscar um litro de vinho por oitenta centavos, a numerosa família Damasceno, a senhora que morava no rés-do-chão, quase em frente da porta principal do prédio, sempre sorridente, com alcunha famosa que galgou fronteiras, muitos outros a quem me falece a memória. Por fim, o Sr. António Calmeirão, afamado mandador de Fogueiras, na sua oficina de sapateiro, onde dominava, solene, o seu retrato vestido de lente de Direito.
Calmeirão de borla e capelo
Recordo a comoção que a todos atingiu, quando um vizinho morreu, de doença incurável!
Essa rua era Coimbra, com as suas gentes, os seus estudantes, pois não poucos prescindiam dos seus espaços para os alugar aos senhores doutores, que já eram antes de o ser! Aos conimbricenses de gema, aos salatinas, se mesclavam forasteiros como eu, comungando da mesma cultura, como a Lurdes, de Vila Seca e o seu gato Barbaças, a Carlota, das Lajes, sempre com uma cantiga na boca, a D. Isaura, de Maiorca, ou a D. Adelaide, da Régua, frequentadoras de tudo quanto era cerimónia na Sé Nova.
Aquelas casas singelas, ou mais arranjadinhas, tinham majestade, pareciam amplificar a vitalidade de todos esses moradores, empurrando pelas janelas adentro o pregão de gente que fazia pela vida:
- Sardinha d'areeeia!
- Meeerc'a mim carqueja!
- Há p'r'ai quem tenha peles, farrapos ou ferro velho pra vender??!!
- Areia fiiina!
- Merca hortaliça!
Aos domingos à tarde era a tremoceira, no seu andar remexido: - Ó meninas! Tramoceira! ...
A Lurdes era das pessoas mais reinadias lá do prédio. Mal a tremoceira vinha pela rua acima, bradava ela da janela: - Ó Guilherme! E a tremoceira, julgando ouvir: - Ó mulher! Gritava lá de baixo: - Lá vou freguesa! Passou-se isto por diversas vezes, até a pobre da vendedora se aperceber da brincadeira.
Aos domingos à tarde... era também a ansiosa expectativa de ir à matiné ao Sousa Bastos ou por vezes ao Avenida, acompanhados pelo entretém da pevide suiça.
Rua das Covas, casas austeras
Rua estreitinha, de casas austeras, quinhentistas e seiscentistas, na sua maioria, com janelas de avental, sem brasões nem arrebiques, a atestar o fluir da História, as vidas que se sucedem. Mas havia, claro, a dos números 17-21, a mais notável, com bossagens rusticadas maneiristas, na moldura das portas e janelas. Em tempos albergou uma tipografia e a fachada fora enobrecida com o medalhão ruanesco da Fortuna, levado para o Museu. É pena que não se faça uma reprodução para voltar ao lugar que ocupou durante séculos.
Um pouco mais acima, entroncava o Beco das Condeixeiras, entre altos muros e poucas casas, com buganvílias e parreiras debruçadas, roupa estendida a enxugar, um recanto rural no meio da cidade, mais familiar para mim do que a imensa mole do Museu Machado de Castro, que dominava toda a parte alta da rua.
O Beco das Condeixeiras era o limite do grande quintal, pertencente à casa onde morei, e comunicava com o cimo da Rua do Cabido. Por porta aberta no muro das traseiras também se fazia o mesmo acesso, de forma fácil. Por lá passava eu, para ir à missa a S. Salvador, ou acompanhar a D. Adelaide, quando ia zelar o Senhor dos Passos dessa igreja e às novenas do Menino Jesus, na Sé Nova. Mesmo em frente dessa porta do quintal morava a D. Piedade, melhor, a Menina Piedade, que recordo sempre na elegância do seu negro vestir: sapato de camurça, meia de seda, saia travada, xaile de merino de oito pontas, pelos ombros, a preceito, e lenço seguro na nuca com fitinha de veludo que lhe envolvia e pescoço, o vicente. Parecia uma figura da Renascença!
Na casa onde vivi, o quarenta e três, tudo me parecia enorme: a escadaria, os sombrios corredores, o tecto alto dos quartos. Em todos os recantos havia uma aura de mistério, a que se vinha juntar o ruído cavo dos trabalhos de remoção do entulho nas galerias do criptopórtico romano.
Certo dia, os meus pais decidiram mudar para Montarroio, mas, para mim, a Rua das Covas ficou sempre o meu berço coimbrão. Muitas vezes lá passei, mais tarde, discretamente, a matar saudades, a assistir preocupado à degradação do meu antigo habitat. A alegria que senti quando soube que tinha sido adquirido pelo Museu apenas tornou maior a mágoa de a ver desaparecida.
Como está diferente a Rua das Covas! Quase não há casas no lado dos ímpares!
Será sina de Coimbra ser palco de amores infelizes e vítima do camartelo, seja ele do Município, do Marquês de Pombal, do Estado Novo, ou do Estado Democrático? Poderão refazer-lhe as casas que demoliram, poderão construir-lhe cubos pós-modernistas, mas a Rua das Covas jamais voltará a ser a mesma, fraterna, de vidas em comum, perpassadas de cantigas brejeiras e de dores sentidas, de raivas e esperanças, muito humana, aconchegante, onde não tinha lugar a solidão.
Nelson Correia Borges
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