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João Machado é o mais completo discípulo de António Augusto Gonçalves, quer na sua arte, quer na orientação geral do seu espirito.
E uma alma de artista formada já, um temperamento que começa agora a contar-nos as suas visões artísticas.
Expõe duas obras - a predela em execução, e um estudo em gesso, ambas para o altar de Nossa Senhora da Conceição na igreja da Santa Cruz, que, como as obras de arte capitais do convento, foi delineado em estilo do renascimento.
É seu o desenho como a execução da obra. João Machado conhece a Renascença bem de muito a ter estudado, e nesse estudo tem feito a educação do seu espirito que é, apesar de tudo, apaixonado por todas as tentativas modernas de arte.
A Renascença é na verdade a mãe da escultura contemporânea: Donatello e Miguel Ângelo são os ascendentes diretos de Rodin.
Muito cedo diretor de uma oficina, João Machado tem versado toda a vida problemas de arquitetura; daí o equilíbrio de todas as suas obras, ou sejam o plano de um grande edifício, ou o desenho de uma pequena joia para o capricho de um ourives.
Os maiores artistas do renascimento italiano começaram por ourives; só mais tarde passaram a escultores, revelando sempre o seu trabalho o amor que lhes ficou ao seu primeiro mister.
Com João Machado deu- se o fenómeno inverso: foi do estudo e contemplação demorados das obras da Renascença que lhe nasceu, pela admiração, o amor às artes do metal.
Assim é que hoje são numerosas as obras feitas em ferro forjado por desenhos seus; e mais de um tem feito para obras de ourivesaria.
Assim se criou e completou nele o espirito da Renascença, que domina a maior parte da sua obra decorativa.
Mas, apesar de tão intimamente consubstanciado com a alma dos artistas da Renascença, João Machado é um artista de hoje, como o prova a sua larga obra.
A sua alma moderna vê-se mesmo através dos seus mais perfeitos trabalhos do renascimento.
João Machado – Predela de um retábulo, em estilo Renascença, para a igreja de Santa Cruz de Coimbra
Na predela tudo revela a posse em que está deste estilo: a composição na linha geral e nos detalhes, a disposição das figuras dos doutores, os baixo relevos, a riqueza dos baldaquinos, a variedade dos capitéis, a delicadeza dos medalhões, a beleza com que a Renascença vestia a admiração pelos camafeus antigos, os frisos decorados, o corte das molduras, a sua disposição, as suas penetrações.
O altar de João Machado é bem uma obra da Renascença pelo espirito, pela linha, pela beleza e pela harmonia.
É-o também pela análise subtil dos movimentos fugidios que animam todas as figuras, coisa tão própria da Renascença a que, no apostolado da Sé Velha, dá a unidade, a intensidade dramática que nos domina naquela obra de arte excecional.
Pela riqueza da decoração e pelo seu espirito, a obra da predela é da Renascença francesa e lembra por uma aproximação fácil a do púlpito de Santa Cruz, não faltando quem erradamente iguale João Machado ao artista genial que lavrou aquelas formosas pedras.
Os dois artistas são, porém, dois temperamentos opostos, em duas situações diversas de vida.
O autor do púlpito é um torturado, conhecendo bem toda a miséria da carne, toda a alucinação que persegue os artistas franceses muito para além do período gótico.
O seu trabalho condensa, é um artista reprimindo-se, cortando por exuberâncias.
João Machado é um tranquilo, uma natureza que se expande alegre, nas primeiras horas da sua vida de artista.
As figuras de João Machado aparecem-nos tranquilas, a sorrir, quando evocadas; as do autor do púlpito perseguem-nos.
É que ao artista de hoje falta o meio de então.
Só assim se poderiam gerar obras iguais de sentimento e intenção decorativa.
Para fazer as gárgulas do Jardim da Manga, é necessário ter visto os corpos deformados pela histeria, ter visto o diabo nos corpos dos possessos, na crispação das mãos e dos pés, torcendo o olhar, convulsionando a garganta num grito satânico.
Para se sentir assim a pompa dos brocados raros, a leveza aristocrática das linhas preciosas era necessário ver e admirar todo o esplendor do culto antigo no convento de Santa Cruz.
João Machado não tem tido tempo de se encontrar com Deus ou com o Diabo, que nestes tempos se furtam mais á analise; o seu talento criou-se na adoração do seu lar modesto.
Por isso é vulgar encontrar, em imagens da Virgem que ele faz, as feições queridas da mulher estremecida, e ver o sorriso, a boca fresca dos filhos nos anjos que voam em volta dela.
João Machado é um artista do seu tempo e é hoje pelo amor á sua arte, pelo conhecimento que tem da sua evolução histórica, pela sua técnica delicada, pela sentimentalidade fina da sua alma de artista, o primeiro canteiro do seu país.
Há na exposição uma pequenina obra, que mostra que o seu espirito inquieto, na ânsia de saber, aspira a mais alguma coisa. É o busto da filha, trabalho incompleto, mas em que a frescura da boca, a delicadeza de modelação do colo e da parte superior do peito, revelam uma tendência nova do seu espirito.
Deve segui-la.
Modele do natural pertinazmente, como tem modelado de obras de arte e encontrará pela admiração da carne a revelação do pensamento, como a admiração do mármore o levou á revelação da carne e da vida.
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
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