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llustração Portugueza”, 5, Primeiro semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 147
A tricana de Coimbra é uma desterrada dos ócios aristocráticos de salão para a subalternidade vexatória e injusta da vida plebeia. Em cada qual somos forçados a ver uma princesa encantada por artifícios de fada má e constrangida a correr a sua sina enquanto um conde não vem de terras longes pronunciar a palavra misteriosa que lhe quebre o encantamento…
Op. cit., p. 147, pormenor 1
E não é rara, em verdade, a aparição desse conde na pessoa de um bacharel enamorado que as arranca das penas e trabalhos do ferro de engomar para o tranquilo remanso da sua casa de lavoura na província, onde elas ao depois vêm a tornar-se senhoras, e gordas.
Op. cit., p. 147, pormenor 2
Filha, quase sempre, de estudante e engomadeira, descendente, muitas vezes, das mais nobres casas deste reino - algumas delas sendo mesmo conhecidas e tratadas, com geral consenso, pelos seus apelidos fidalgos - a tricana tem mui pouco do povo em que arbitrariamente se encontra classificada, e herdou da degenerescência das classes altas, além da agudeza do espirito, a mórbida palidez das carnes, certa perversão das tendências e desejos, o apetite dos prazeres pouco banais, o romanticismo postiço das paixões e a queda para os ócios deleitosos, que afinam a sensualidade e dão ensejo às aladas fugas da fantasia... Tudo isto, sem fazer da tricana, positivamente, o que se chama uma boa dona de casa, a torna apta, por excelência, para o desempenho da sua missão social, que é a de tornar ligeira o alegre, quão possível, a preparação científica de quase toda a mocidade portuguesa.
Op. cit., p. 147, pormenor 3
Esta austeridade aristocrática a todo o instante se comprova, mesmo nos costumes instintivos da tricana.
Quem não sabe dos chás galantes da Assunçãozinha dos bandós, célebre pelo seu pálido perfil de santa bizantina, e só rival na graça, ao tempo, da flexuosa Isabel - a tricana que eu conheci antes de todas em Coimbra, e com quem joguei idiotamente a bisca nos meus primeiros dias de caloiro?...
A Assunção reunia então em sua casa tudo o que a Academia contava de melhor, nas letras, na boémia e na estirpe. Certamente, era indispensável que os convivas - o D. Thomaz de Noronha, hoje na Índia, o poeta Lopes Vieira, o estúrdio Pad-Zé, agora transmutado em dr. Alberto Costa, Emérico d'Alpoim, D. Sebastião da Grama e outros mais - tivessem o cuidado de levar no bolso, para o festim, uma garrafa de Madeira, um pacote de chá e alguns bolos. Tornava-se mesmo necessário que um deles se prestasse a acender o fogareiro, pôr a água ao lume e agitar o abano, até que se aprontasse a infusão; mas, feito isto, a Assunção dos bandós presidia á festa com a gentileza o «donaire» que uma grande dama não excede, no «five o-clock» mais distinto o precioso…
Op. cit., p. 147, pormenor 4
Esta parte anedótica da vida coimbrã afigura-se-me extremamente curiosa, e sobretudo muito elucidativa no que respeita á psicologia desse estranho entesinho que é a tricana, vivendo na sombra da Universidade, em êxtase, como a sonhadora do Zola no sopé da Catedral, ou amando o estudante com o amor meio carnal e meio místico, que a beata oferece aos santos o aos padres. Que pode haver mais interessante, sob este aspeto, do que a lenda da Rosa Espanhola, que por amor se foi a um convento, o que há poucos anos chamou lágrimas aos olhos de todas as donzelas da província, com a patética elegia, cantada em verso coxo, dos seus amores inditosos?
Soares, A. As Tricanas de Coimbra. In: Illustração Portugueza, n.º 5. Primeiro semestre. 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 146-149.
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