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O livro traz fotografias de agora, mas também postais-ilustrados e fotos simples ou coloridas a aguarela de inícios do século passado (por exemplo, pp. 44, 114) que demonstram quanto este Jardim se tornou um espaço público da cidade. Depois de ser privativo de monges e clérigos, lá foram vistos e fotografados estudantes de batina negra e tricanas aguadeiras, de bilha à cabeça, pois as águas do parque eram boas e abundantes.
A água é o elemento por excelência em Santa Cruz, nos seus diferentes planos topográficos e significados teológicos ou outros. “A festa da água que acontecia dentro dos seus jardins — afirma Marco Daniel Duarte — era entendida pelos religiosos crúzios como uma página de Teologia” (p. 54; itálico meu).
Cascata do jarim de Santa Cruz fixada numa fotografia da década de 20 do século XX por Adriano Tinoco. Op.cit., pg. 46
A Cascata, que tem adiante um repuxo, foi construída à maneira dos retábulos de capela-mor, com duas parelhas de Evangelistas (São Marcos e São Mateus, São Lucas e São João) organizadas em torno de dois medalhões de azulejo cobalto e branco onde pinturas representam passagens bíblicas consagradas à importância da água como liberalidade divina, e ao centro, num plano mais elevado, coroando o “retábulo”, surge Nossa Senhora da Conceição numa eclipse vazada.
Na elipse vazada da grande Cascata, a escultura da Virgem Maria, ali figurada como Nossa Senhora da Conceição. Foto Rui Gonçalves Moreno. Op. cit., pg. 53
Rochas secreções calcárias típicas de gruta ou nascente de água, cuja fictícia entrada uma grande mancha verde de avencas oculta. Pelos lados, em diagonal, sobem degraus de duas curtas escadarias, apoiando a verticalidade do conjunto, entre arvoredo de grande porte.
Patamar de descanso concebido em volta de uma fonte. Op.cit., pg, 59
A ascensão íngreme rumo à fonte de água pura tem conhecido significado religioso e divino, e a crescente intensificação do elemento líquido nos patamares superiores do jardim de Santa Cruz atingirá no topo da colina “uma omnipresença absoluta”. Patamares de descanso, lance de degraus e balaustradas formam uma sucessão de planos dinâmicos, ilustrados por painéis azulejares com cenas piscatórias e venatórias em que a água é o motivo recorrente, além de outros, com enormes fontenários setecentistas — um trabalho de pincel em oficinais da região Centro, que todavia não se distinguiu pela qualidade, no parecer autorizadíssimo de José Meco. Sombra, verde de folha, azul e branco cerâmicos e o líquido primordial espelhado em fontes e pequenos tanques criam ambientes aprazíveis, pontuados por pirâmides-pináculo que reforçam o caminho para o alto, físico e espiritual.
Fonte do Lago que toma o lugar onde, segundo as fontes mais antigas, existiria uma ilha com laranjeira. Foto Rui Gonçalves Moreno. Op. cit., pg. 85.
“Uma outra cena”, na opinião de Louis-François de Tollenare, o viajante francês já citado, é o grande largo circular rodeado de altas paredes de cedro, que fica num nível intermédio, porém marginal da ascensão vertical. Uma “ambiência rústica” (p. 91) em contraponto ao resto do parque, porém nobre pelas suas árvores seculares, que H. F. Link elogiou no seu livro de viagem a Portugal, em especial os loureiros de extrema velhice e altura prodigiosa da Alameda de Santo Agostinho — cenário perfeitamente romântico, aliás, muito próprio da época, para túmulo dum jovem militar inglês afogado no Mondego e dum outro homem que viveu à margem das convenções. Uma vocação tardia dos crúzios coimbrões, que o M. D. Duarte apenas sugere, mas admite poder “levar a importantes conclusões acerca do papel dos crúzios na sociedade conimbricense do século XIX, […] para com os que habitavam fora do mundo católico” (p. 96).
Fonte da Nogueira, pormenor do estado de conservação do Tritão em 1993. Op.cit., pg. 69.
No entanto, o principal caminho não é esse. “A meta do escadório é uma fonte” (p. 67), a Fonte da Nogueira, ou da Sereia (na verdade, do Tritão…, alegoria da criação do mundo), numa das extremidades da cerca do Parque — uma das mais importantes de Coimbra, exclusiva do Mosteiro, como reconhecido num alvará régio de 1588, e objeto de secular contenda por parte do Município. Pela sua simbologia teológica como pela sua importância conventual, esta fonte no patamar mais elevado do escadório, de menor dimensão que a do piso inferior, mais intimista também, recebeu um programa decorativo que começa no desdobrar de frases sapienciais do Antigo Testamento em legendas de cenas azulejares alusivas, umas e outras atualmente muito maltratadas pela erosão natural e pela barbárie humana — como sucede com os rostos picados no painel da comunidade monástica reunida em torno duma fonte de que recebem água (p. 75) ou a brutal decapitação do Tritão fontenário (p. 71).
Representação da comunidade monástica dos Cónegos Regrantes de S. Agostinho em redor da fonte da qual recebem a água. Op. cit. Pg. 75
Muitos desses painéis representam diferentes gerações de crentes junto de fontes de água, mas num deles observa-se “um elevado chafariz que termina num coração de Maria donde saem jatos de água; em volta crúzios sentados, tendo corações nas mãos, e dois deles recebem nos seus a água” da sabedoria, como relataram os historiadores da arte Vergílio Correia e Nogueira Gonçalves. Sendo qualquer fonte de grande caudal um símbolo de Cristo, o autor acredita que a Fonte da Nogueira constitui verdadeiramente “o coração de todo o Parque” de Santa Cruz e “um dos mais importantes lugares consagrados à veneração do mistério da Encarnação do Verbo” (p. 79).
Rosa, V. Santa Cruz de Coimbra: uma floresta iluminada. In: Observador, edição de 4 de abril de 2018.
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