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A' Cerca de Coimbra



Terça-feira, 30.08.22

Coimbra: Rainha Santa, o outro “milagre das rosas”

Até o Milagre das Rosas, porventura a única lenda da Rainha Santa que alcançou difusão nacional, não consta da biografia anónima de D. Isabel, redigida no séc. XIV, ocorrendo apenas num retábulo de pintura, quatrocentista, do Museu Nacional d’Art de Catalunya e muito brevemente, na Crónica da Ordem dos Frades Menores de Frei Marcos de Lisboa, naquilo que constitui um dos mais remotos registos hagiográficos impressos do episódio.

O que a maioria daqueles que se referem ao miraculoso evento desconhece é que são dois (e não apenas um!) os Milagres das Rosas creditados a Santa Isabel:

- o primeiro, mais divulgado, ao qual se reporta a generalidade das alusões literárias, artísticas, etc., consistiu na transformação de dinheiro em rosas e di-lo a tradição realizado em Coimbra, enquanto a Rainha acompanhava as obras que decorriam no convento de Santa Clara-a-Velha;

- o segundo terá ocorrido em Alenquer, durante as obras de edificação da igreja do Espírito Santo, sendo descrito como a transformação de rosas em moedas de ouro. Fernando Correia de Lacerda narra o episódio que teve Alenquer por cenário, nos seguintes termos:

“Detiveram-se os Reis alguns dias na Vila de Leiria, e passaram à de Alenquer, e como Deus fala aos seus servos em sonhos, uma noite em que o sono não fugia dos olhos da Santa Rainha, sendo que muitas vezes o faziam fugir as vigílias, sonhou, que seria obra muito agradável ao Senhor fazer naquela Vila uma igreja dedicada ao Espírito Santo, na qual se celebrasse o Sacrossanto Sacrifício da Missa, e ainda que o tempo a que acordou do sono não era de todo dia claro, como era costumada a louvar a Deus, como Estrela Matutina, se vestiu e foi ouvir Missa; tanto que a ouviu se foi ao rossio da Vila, que o Rio umas vezes inunda, outras prateia, e mandando chamar os juízes daquele Povo, lhes ordenou, que mandassem quatro pedreiros, e seis trabalhadores, porque queria que se abrissem uns alicerces naquele sítio, tanto que os juízes foram fazer a diligência, se pôs a Santa Rainha em oração no mesmo lugar, porque como aquelas ações eram inspiradas por Deus, não reparava em que fossem vistas no mundo, e vindo os Oficiais, e trabalhadores, se levantou, e foi para onde determinava abrir os alicerces e chegando ao sítio destinado, os achou abertos, e desenhados, vendo a Santa Rainha tão impensado sucesso, não sem consideração de que era superior prodígio, perguntou aos juízes, se os tinham mandado abrir naquela forma, ou deles tinham alguma notícia, e os juízes lhe responderam, que nem eles nem outra pessoa alguma havia dado princípio a aquela obra, antes passando por aquele sítio no princípio da noite antecedente, não tinha aquela parte diferença alguma do outro campo, ouvindo a Santa Rainha este desengano, reconheceu o favor, e pondo-se outra vez em oração, deu, com muitas lágrimas de ternura, graças a Deus da maravilha... Ainda que parecia, que não necessitava de mais firmeza a fábrica, a que Deus tinha feito a milagrosa planta, como os alicerces da igreja estavam só delineados à flor da terra, mandou a Santa Rainha, que na forma da delineação, se pusessem de maior altura, e depois de assistir na obra por algum espaço do dia, despedindo-se dos oficiais, lhes disse, que trabalhassem com cuidado, porque lhes havia de pagar o jornal com vantagens, chegando ao Paço deu conta a El-Rei do sucesso, de que ele recebeu grande gosto [...].

Tanto que a Santa Rainha acabou de jantar como aquela obra era santa, veio assistir a ela a tarde toda, e passando por aquele sítio, ao declinar do dia, uma moça com um molho de rosas nas mãos, disse a Santa Rainha a uma Dama sua, que lhas pedisse da sua parte, obedeceu a Dama ao preceito, a moça ao rogo, e passando as rosas da segunda mão às da Santa Rainha, ficaram elas da melhor sorte, e com o melhor preço [...].

Chegado o tempo da Santa Rainha se voltar para o Paço, deu a cada um dos oficiais, e trabalhadores sua rosa, dizendo-lhes que com elas lhes pagava o dia, e rindo-se eles, cuidando que era graça, as aceitaram com grande cortesia, admirando tanta urbanidade em majestade tão venerada, e para continuar o trabalho, guardou cada um a sua em lugar distinto, posto o Sol, depois de se ausentar a Santa Rainha, tomando cada qual os vestidos, para se recolherem a suas casas, e querendo levar as flores, para testemunhas de que a Santa Rainha lhes fizera aquelas mercês, quando as buscaram, acharam dobras, e duvidando que fossem verdadeiras tão lucrosas transformações; para se tirarem de dúvidas determinaram ir buscar a Santa Rainha, a qual acharam ainda pela rua, e lhe disseram, que sua Alteza lhes mandara pôr dobras em lugar de rosas, que eles não tinham merecido tão liberal paga, e estavam certos da satisfação ouvindo a Santa Rainha o sucesso daquela mudança, conheceu que era prodígio do Céu, porque com outros semelhantes, tinha a divina grandeza, honrado a sua humildade, e pondo os olhos na terra e coração no Céu, deu muitas graças ao Senhor [...].

Quando os oficiais deram conta à Santa Rainha, do sucesso que os tinha em dúvida, lhe não deu ela alguma resposta, e chamando um deles à parte, lhe perguntou outra vez pelo acontecimento, e ele lhe tornou a referir a verdade, e tanto que se certificou do milagre, os chamou a todos, e lhes impôs o segredo, dizendo-lhes que se aproveitassem do dinheiro [...]”.

Imperios_do_Divino, pg. 17.png

Alenquer: o convento de São Francisco no topo da “eminência para a parte Sule a igreja do Espírito Santo junto ao rio.  Op. cit. Pg.17

 

Imperios_do_Divino, pg. 29.png

“Santa Isabel e o Milagre das Rosas em Alenquer” (c. 1670-1680), óleo sobre tela (80 x 120 mm) do pintor Bento Coelho (matriz de Salvaterra de Magos). Op. cit. Pg.29

Imperios_do_Divino, pg. 30.png

“Milagre das Rosas de Alenquer” (1692) António Gomes e Domingos Nunes. Painel do terceiro retábulo lateral do lado da Epístola da igreja de Santa Clara-a-Nova. Op. cit. Pg. 30

Imperios_do_Divino, pg. 31.png

“Milagre das Rosas de Alenquer” (óleo sobre tela) Painel central do retábulo do coro alto da igreja de Santa Clara-a-Nova. Op. cit. Pg.31

Nota: Segudo alguns autores, a figura constante do retábulo de pintura, quatrocentista, do Museu Nacional d’Art de Catalunya, é identificada como sendo a Rainha Santa Isabel da Hungria, tia da Rainha Santa Isabel de Portugal e não com esta.

Gandra, M.J. O império do divino da Amazónia. 2017. Rio de Janeiro, Instituto Mukharajj Brasilan, pg. 17-31

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por Rodrigues Costa às 10:12



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