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Conclusão do texto de Manuel Campos Coroa sobre Jorge Gomes.
Jorge Gomes começou por ensinar jovens a tocar guitarra na sua casa, mas logo em 1971 foi convidado para integrar um projeto pedagógico de forma mais intensa e estruturada, no edifício das antigas piscinas municipais da cidade, em consequência de mais uma notável iniciativa do Dr. Fernando Mendes Silva, que criou a escola onde o mestre ensinou várias dezenas de alunos de ambos os sexos. Esta iniciativa passou também pela ACM, num esforço alargado de revitalização da música popular de Coimbra.
Em 1978, na sequência do 1º seminário do fado, a Camara Municipal de Coimbra criou a chamada Escola do Chiado, pela mão do Dr. António Rodrigues Costa e coordenação pedagógica de Jorge Gomes, onde também lecionou Fernando Monteiro.
Jorge Gomes e alguns dos primeiros alunos da Escola de Fado do Chiado. Igreja de Santa Cruz, capela de S. Teotónio. 1979
Tozé Moreira, um dos primeiros alunos da Escola de Fado do Chiado. 1979
Jorge Gomes com alunos da Escola de Fado do Chiado. II Seminário do Fado, serenata na Sé Velha. 1979
Esta escola, que funcionou no edifício camarário da rua Ferreira Borges, começou a “produzir” com regularidade uma grande quantidade de jovens guitarristas, violistas e cantores, com muita qualidade, num tempo em que era necessária uma dose reforçada de coragem, pela necessidade de combater uma ideia (errada), que começou a ser estabelecida na cidade, de certo modo, logo no período da crise académica de 1969, mas com um impacto muito maior durante o período revolucionário (PREC), em que tudo o que se relacionasse com guitarras e canto tradicional era considerado reacionário. Os elementos dos grupos que ousavam fazer serenatas de rua, eram frequentemente vítimas de agressão física, ou insultados porque os consideravam saudosistas do Estado Novo.
Os jovens desse período, honra lhes seja feita, nunca tiveram medo e não pararam as atividades. A escola camarária continuaria a funcionar, mudando de instalações para a ladeira do Carmo e mais tarde para o Centro Norton de Matos, sempre coordenada por Jorge Gomes, até que foi abruptamente encerrada, sem que se desse qualquer explicação aos alunos já inscritos, ou mesmo aos monitores. As razões deste encerramento, embora conhecidas, nunca foram frontalmente assumidas pelos responsáveis políticos da época.
No início da década de 80, mestre Jorge Gomes estende a sua atividade, ao sindicato dos Bancários, à escola de música do Colégio de São Teotónio, e também à AAC, mais concretamente à TAUC e à Secção de Fado, onde inicialmente esteve também Fernando Monteiro.
Esta fase, foi a mais produtiva do percurso de Jorge Gomes no ensino da guitarra, da viola e do canto. Preparou ali instrumentistas às centenas e consequentemente, uma quantidade enorme de grupos de canção de Coimbra, com alto nível artístico, que projetaram de uma forma notável todo o esplendor do património musical da academia e da cidade, através de incontáveis espetáculos “Urbi et Orbi”.
Mestre Jorge Gomes é um homem de fortes convicções e personalidade, que se manteve fiel à forma de ensino tradicional da guitarra, com comprovadíssima e incontestável eficácia.
Dono de uma generosidade notável, ensinou tudo o que sabia a todos os alunos que julgou merecedores. Nada lhe dá mais satisfação do que saber que os seus alunos brilham pelo seu mérito, e quanto mais novos forem melhor. Por isso reagiu sempre às tentativas (mais ou menos explícitas) de desvalorização do mérito que pertence aos alunos e decorre da sua própria dedicação, talento e inteligência.
Dedicou a maior parte da sua vida ao ensino da guitarra de Coimbra, motivado unicamente pelo serviço à causa, sem nunca se servir dela em benefício próprio. Foi muitas vezes incompreendido e criticado por quem acha a sua metodologia desadequada face ao ensino formal da música.
Uma personalidade que fez muitos e bons amigos, mas criou, por outro lado, fortes anticorpos e também alguns inimigos, mas nunca deixou de ser fiel a si próprio, Jorge Gomes soube manter uma total Independência face aos poderes instituídos e por isso, nunca foi passível de instrumentalizar.
A intolerância que sempre teve, à introdução de ornamentação instrumental excessiva nos acompanhamentos e de alguns trejeitos no canto, mais próprios de outras regiões do País, levou a que alguns sectores menos cultos da atividade, o acusassem de fundamentalismo e até de ser um anacrónico travão da “evolução” para a modernidade.
É fundamental compreender que a intenção e a força interpretativa da palavra cantada, a emoção da poesia, reforçada com a adequação e a qualidade nos acompanhamentos, é o que tem que passar para quem ouve. Por isso, tudo o que contribua para “distrair” o ouvinte do essencial, é, na estética da canção de Coimbra, totalmente dispensável.
Tocar guitarra e cantar Coimbra, não pode transformar-se em mero exibicionismo circense ou em feiras de vaidade.
Quando o ouvinte consegue abstrair-se das figuras que cantam ou tocam e se centra emocionalmente na mensagem, mais perto estaremos da perfeição.
A evolução da música de matriz coimbrã, acontecerá de forma independente das vontades, das ambições pessoais, das modas ou de simples circunstâncias conjunturais. Apenas o tempo, na sua sabedoria, separará o “Trigo do Joio“ e ditará o que sobrevive no futuro.
Ao que julgo saber, nenhum dos grandes protagonistas da história da canção de Coimbra, trabalhou com a intenção de procurar o estrelato, ou teve sequer consciência durante o processo criativo, da importância que o futuro lhes concedeu.
Mestre Jorge Gomes foi, durante muitas décadas um verdadeiro guardião do património musical popular de Coimbra, muito particularmente da sua guitarra, garantindo através da transmissão oral direta e do ensino tradicional, a sobrevivência de um tesouro cultural inestimável, de uma forma absolutamente excecional.
Os resultados falam por si. Não conheço outra escola que se lhe compare, seja na qualidade ou na quantidade dos intérpretes que produziu.
Encerrou definitivamente a sua atividade de ensino na Secção de Fado da AAC, em março de 2020, por ocasião do confinamento determinado pela pandemia de Covid-19.
Infelizmente, mais do que o fator idade, foi em grande medida o ambiente de facilitismo instalado na cidade e na academia, com uma crescente falta de ética, grande desrespeito pelas exigências técnicas e estéticas, que foram decisivas para que o Mestre não voltasse.
O fenómeno de crescente mercantilização da música de Coimbra, que caminha a passos largos para uma certa “globalização” descaracterizadora, pouco exigente no gosto e no rigor, protagonizada pelos que se servem da arte para obtenção de lucros e/ou notoriedade pessoal a todo o custo, é manifestamente incompatível com os valores morais e éticos, de homens com a verticalidade do Mestre Jorge Gomes.
Na cultura, como na biologia, é imperativo defender a diferença, as especificidades regionais e locais, porque a beleza da arte também reside na diversidade e a Humanidade precisa do belo.
Serão as forças vivas da cidade, capazes de garantir a sobrevivência deste legado cultural, com a indispensável independência face a interesses conjunturais de qualquer natureza? Seremos capazes de defender e preservar este tesouro cultural?
Ficam as perguntas.
Coimbra, 28 de janeiro de 2024
Manuel Campos Coroa
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