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A obra que ora divulgamos insere o seguinte texto assinado pelo Padre Doutor António de Jesus Ramos, com o título, Alguns traços para o perfil de Monsenhor Nunes Pereira:
Numa das minhas incursões pela história comparada dos povos encontrei, tempos idos, a figura simpática de um rei polaco, de nome Augusto, que, nos finais do século XVII, deixou nomeada em toda a Europa pela simples razão de estar na origem paternal, pelo menos atribuída, de quatrocentas criaturas.
Longe estava eu de pensar que alguma vez me seria dada a honra de, nestes últimos anos do século XX, traçar o perfil de um outro Augusto, com créditos firmados em Portugal e além-fronteiras, e que assume a paternidade responsável de várias centenas, talvez de milhares de criaturas.
Ninguém se admirará que eu me exprima deste modo e tenho a certeza de que Monsenhor Augusto Nunes Pereira não vai desaprovar este preâmbulo.
Na fachada da casa natal, uma cabeça de mulher outrora saída das suas mãos, serve-lhe agora de modelo para uma fotografia. Op. cit., pg. 33
As voltinhas do Fajão. Fotografia José Maria Pimentel. Op. cit., pg. 40
"Comecei a pisar esta calçada,
Um cinco-réis de gente, um quase nada.
Que bela recordação,
As voltinhas do Fajão" (Nunes Pereira)
Eu digo porquê. Num dos nossos primeiros encontros, era eu ainda jovem estudante, quando lhe referi o nome da minha aldeia, deixou-me algo perplexo, mas não escandalizado, a sua informação: «Conheço muito bem, e até lhe posso dizer que tenho lá dois irmãos».
Pai de Nunes Pereira, Xilogravura. Op. cit., pg. 19
Perante o meu silêncio questionador o santo e paciente sacerdote, sempre amável para o verdor da juventude, explicou-me, logo de seguida que seu pai, além de agricultor, fora, em finais do século XIX o escultor-santeiro mais conhecido em toda a Beira-Serra e que, para a capela do povoado onde nasci, por encomenda dos meus antepassados, esculpira duas imagens que eu venero desde criança, uma representa Nossa Senhora de Nazaré com o seu Menino ao colo e um grupo de anjos aos pés e a outra o santo do meu nome, António, nas suas vestes franciscanas, com um cordão que lhe toma a cintura pronunciada, uma cruz na mão direita e, na esquerda, um livro aberto nudez do Divino Infante. Aquelas duas imagens são, hoje, no meu humilde entendimento artístico, os familiares antepassados das centenas de criaturas que, em desenho à pena, em ferro forjado, em aguarela, em vitral e sobretudo em madeira gravada saíram do talento artístico que o Senhor de todos os dons concedeu em abundância caudalosa a este homem simples e bom que, ainda hoje, se identifica com as suas raízes, que vão mergulhar na honradez que lhe foi transmitida nas canções com que a mãe Ana o embalava no rulo que o pai António fizera em madeira de castanho.
Quem quiser conhecer e entender a multifacetada obra artística de Nunes Pereira tem de se deter demoradamente sobre esta primeira etapa da sua vida. Foi o próprio artista que mo confessou em longa conversa que mantivemos, em Agosto de 1980, respirando a brisa fresca da praia da Figueira: "Moralmente recebi influência direta de meu pai.
Embora eu tivesse só nove anos quando ele morreu, lembro-me muito da convivência com ele, do que me dizia, do modo como educava os filhos”. E dele recebeu também o gosto pela arte e as ferramentas para trabalhar a madeira: as plainas, as goivas, os formões... E não deixou de o influenciar por certo aquela história verdadeira que ouviu na infância a propósito de seu pai: alguns homens da Mata foram à sede de freguesia, a Fajão, para combinarem com o pároco, padre Carlos José Fernandes de Almeida, a bênção da imagem do Senhor dos Milagres, orago da capela local. 0 prior perguntou à delegação: "Quem é que a fez?" Eles responderam: "Foi António Nunes". "Isso não deve estar capaz" - retorquiu o padre Carlos. "Está pois! Ele é um artista." Pouco convencido, o prior despachou-os: "Está bem! Eu lá irei, mas, se não estiver em condições, agarro-lhe por uma perna e atiro-a para o Pego Redondo". Não foi necessário, o sacerdote não só benzeu a imagem como ficou admirado como é que as mãos calejadas de um cavador de enxada tinham esculpido obra tão perfeita.
Retrato de minha Mãe – 1927. Nunes Pereira, op. cit., pg. 19.
Não menos influente na formação do padre e artista foi a figura tutelar de sua mãe. Num dos seus livros de versos, escreveu Nunes Pereira esta dedicatória: "A minha mãe, que eu persisto em relembrar no momento dos vivos".
Na mesma conversa que atrás referi, confidenciava-me o artista:” Minha mãe, considero-a ainda viva pela influência que exerce em mim. Foi uma grande mulher. Tendo enviuvado cedo, ficou com uma casa de lavoura a seu cargo e, mesmo assim conseguiu-me mandar para o Seminário, com dinheiro emprestado.
Ramos, A. J. Alguns traços para o perfil de Monsenhor Nunes Pereira. In: Pimentel, J.M. e Oliveira, M.C. 2001. Monsenhor Nunes Pereira. O percurso de uma vida. Coimbra, Edições Minerva.
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