Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
GIL VICENTE E O SIMBOLISMO DAS ARMAS DE COIMBRA [Cont.]
A proposta de leitura das armas
A acção serve para Gil Vicente avançar com uma proposta de significado do brasão de Coimbra sendo a recriação deste, verdadeiro tableau vivant, encenada no final da peça e indicada em didascália, ficando expressa da seguinte forma: "Entra Colimena e suas damas com seus irmãos com grande aparato de música, e a serpe e leão acompanhando a dita princesa." Será então que o narrador, descrito como o “Peregrino do Argumento", se dirige a Colimena para lhe dar a deixa que permitirá a esta justificar o brasão de Coimbra, dizendo-lhe: "Venha a mui alta princesa serena / e diga contando sua anteguidade." Colimena dirá que é com base na sua história que tomou armas que depois foram as da cidade de Coimbra: "Eu assentei aqui esta cidade / e eu sou Coimbra e vem de Colimena. / Tomei por devisa aqueste leão/ e aquesta serpe por que fui livrada / o cales do meo é cousa errada / porque há de ser torre com ua prisão." Relativamente ao brasão são pois avançadas explicações para a mulher saínte, para o cálice/fonte/torre, bem como para o leão e para a serpente, através de três personagens e um adereço.
A princesa Colimena
A explicação vicentina para a figura central das armas de Coimbra (fig. 6) deriva da história da personagem Colimena. É princesa por ser filha do rei Ceridón de Córdova e Andaluzia que surge em cena disfarçado de Ermitão. Foi feita cativa pelo gigante Monderigon e encerrada numa torre, em conjunto com seu irmão Melidónio, quatro donzelas e seus quatro irmãos passando graves tormentos na prisão. É descrita pelo pai como "doce serena". No cativeiro é obrigada a cantar continuamente pelo gigante e infeliz chora. Celipôncio que ao caçar se acerca do castelo onde está aprisionada vê pela primeira vez Colimena: "Ella sale a una ventana / yo mírola de un penar" e de imediato se apaixona por ela, o que narra a sua irmã: "Sábete que amor me mata", ficando determinado em matar Monderigón que a tem cativa, o que é feito por intermédio de uma Serpe e de um Leão que o haviam atacado, mas que conquistou através da lisonja, de tal forma que se gaba que estes "(...) tomáronme amor tal / que no me pueden dexar." permitindo-se, pois, domar por Celipôncio. Serão estes dois animais que, convocados com o chamamento da sua buzina de caça, matarão Mondérigon salvando Colimena da tirania deste. Quer a Serpe, quer o Leão, são personagens sem fala que apenas surgem em duas cenas, sempre juntos, presumindo-se que seriam interpretados por actores/figurantes disfarçados de animais.
Figura 6 — Princesa saínte, detalhe das armas da cidade de Coimbra que figuram numa pedra-de-armas existente na fachada da Câmara Municipal de Coimbra, Coimbra. Publicada por Mário Nunes (Nunes, 2003, p. 87)
A torre que é um cálice ou uma fonte
No final da peça o autor, Gil Vicente, permite-se fazer uma alteração às armas da cidade ao substituir o Cálice que consta das mesmas por uma Torre. O texto vicentino não tem qualquer indicação se o que deverá surgir em palco será a heráldica que estavam em vigor, ou seja, as armas que constavam do foral atribuído poucos anos antes pelo rei D. Manuel I à cidade em 4 de Agosto de 1516, com uma mulher saínte de um cálice ou antes um brasão reformulado de acordo com a fala de Colimena, com esta saínte da Torre onde estivera aprisionada: "o cales do meo é cousa errada/ porque há de ser torre com ua prisão."
Figura 7 — Cálice ou fonte, detalhe da iluminura das armas de Coimbra do Foral de Coimbra (1516)
Não se encontrou qualquer fundamento para esta alteração que não a fantasiosa justificação da história criada por Gil Vicente. Através da esfragística é possível comprovar que, mesmo em período anterior à definição da composição das armas a que Gil Vicente se refere e que é muito aproximada da actual, sempre foi representado um recipiente e não uma torre. Registe-se ainda que a afirmação que a mulher saínte o deveria ser de uma torre e não de um cálice viria também a ser aventada por frei Bernardo de Brito. De igual forma não ficou, neste particular, qualquer registo relativo à encenação do texto vicentino realizada perante D. João III e à referida recriação viva das armas da cidade, não sendo dada qualquer indicação da forma como este objeto foi cenografado. Pensa-se que este móvel heráldico, a torre, na encenação fosse um mero adereço cénico, não se crendo que fosse possível ser "vestida" por um ator, concordando-se com a proposta de reconstituição de Osório Mateus que refere a entrada na sala de "(...) um artefacto móvel que representa uma torre com uma janela (uma prisão)."
Alexandre, P.M. Uma patranha heráldico-genealógica de Gil Vicente: «A comedia sobre a devisa da cidade de coimbra» e o brasão-de-armas de Coimbra. In: Alicerces. Revista de Investigação, Ciência Tecnologia e Arte. Ano VI, n.º 6. 2016, julho. Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa. Pg. 65-88. Acedido em https://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/8644/1/revista_alicerces6_2016_pv.pdf.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.