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Guardei para as vésperas deste Natal, dois textos que Borges Figueiredo publicou, nos finais do século XIX, no seu livro Coimbra Antiga e Moderna.
São belo poema de amor a Coimbra escrito por um Coimbrinha como o são – por nascimento ou adoção – aqueles que vão tendo a paciência de ler os escritos que vou respigando das minhas leituras.
É esta a minha prenda de Natal esse e todos esses e os demais Coimbrinhas.
Feliz Natal
Rodrigues Costa
Uma vez na «gare», no meio de grande multidão de pessoas apressadas, que se cruzavam em todas as direcções, acottovelando-se, empurrando-se, batendo com as malas nas pernas dos que encontravam, senti eu uma pequena mão, lenta, que me produziu, ao contacto com a minha, a mesma impressão que me produziria o corpo d’uma cobra, animal que me repugna tanto como repugnava a Virgílio.
Ao mesmo passo que a mão alheia buscava tirar da minha a pequena mala que segurava, uma voz branda e insinuante, evidentemente de pessoa de humilde condição, mas que tinha a graciosa entoação e a correção da pronuncia que só possue o filho de Coimbra, uma voz me dizia:
- «Senhor doutor!» quer que lhe leve a mala? «Senhor doutor!»
Apezar de eu não ter a honra de ser «senhor doutor» (nem mesmo senhor bacharel, embora isto não venha para o caso). Fiquei logo tão convencido de que o rapaz falava commigo, como se elle me houvesse chamado pelo meu nome. E a razão d’isto é extremamente simples: todos em chegando a Coimbra são doutores, ou porque julgam sel-o ou porque lh’o chamam. O moço de fretes, o gaiato, a aguadeira, a servente d’estudantes, seja qual fôr a pessoa «limpa» a quem dirijam a palavra, distinguem-na com o título de «senhor doutor».
Conta-se, valha a verdade, que uma das vezes em que foi a Coimbra o rei D. Pedro V, indo vêr o jardim, succedeu que uma boa velha conseguiu estender a mão, por entre os cortezãos que acompanhavam o soberano, e pedira uma «esmolinha pelo amor de Seus». Os cortezãos, que passam todo o dia a pedir, senão com a bocca ao menos com os olhos, «esmolas» a seu amo, acharam um procedimento inaudito que a pobre mendiga lhe pedisse uma «esmolinha», e fizeram movimento de afastal-a. D. Pedro V, porém, deteve-os com um gesto e, tirando uns «ouros» (os reis não dão «cobres»; ou dão ouro ou não dão nada), depôl-os elle mesmo na mão tremula da velha, que lhe disse, com as lagrimas nos olhos e na voz:
- Muito obrigada, «senhor doutor».
Figueiredo, A. C. B. 1996. Coimbra Antiga e Moderna. Edição Fac-similada. Coimbra, Livraria Almedina, pg. 2-3
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