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Como contributo para o encontro internacional de cafés históricos europeus que vai decorrer em Coimbra na próxima sexta-feira e sábado, concluímos hoje a publicação de uma série de três entradas sobre o Café de Santa Cruz, um café com muita história.
A partir dos finais da primeira década do século XX, a imprensa de Coimbra começa a noticiar a possibilidade de a cidade passar a dispor de um requintado Café-restaurante e apontava para sua instalação no imóvel, nessa altura muito degradado devido às diferentes utilizações e serviços que ali haviam estado instalados após a desamortização, da igreja de S. João de Santa Cruz, situada paredes meias com o templo do mosteiro crúzio, na esquina da Praça de Sansão com a Rua das Figueirinhas.
Num primeiro momento a escolha do local foi aceite de forma pacífica pela opinião pública, porque o empreendimento vinha preencher uma importante lacuna da cidade uma vez que esta não dispunha de qualquer estabelecimento do género capaz de poder oferecer aos habitantes e a um público que a visitava cada vez em maior número, as comodidades e a categoria propostas no projeto em causa. Em suma, estava-se perante um melhoramento local.
Contudo, com o decorrer do tempo, e com os “empatas” a levantarem constantes e variados obstáculos, a polémica rebentou, estendeu-se largamente, envolveu as entidades responsáveis sediadas na urbe, com destaque para o Conselho de Arte e Arqueologia da 2.ª Circunscrição, presidido pelo engenheiro Abel Urbano e de que faziam parte, entre outros, António Augusto Gonçalves (considerado, justamente, a figura predominante), arquiteto Augusto da Silva Pinto, engenheiro Sousa Pinto e João Machado. Esta entidade, ao longo do processo navegava nas águas de uma certa ambiguidade, porque ora reprovava, ora consentia e também porque o presidente, Abel Urbano, engenheiro militar e funcionário da Câmara Municipal de Coimbra (exerceu a vice-presidência da edilidade em 1918-1919 e a presidência nos anos de 1929-1930) era o principal opositor do projeto.
Chávena com o logotipo do Café Santa Cruz
Nos discursos proferidos aquando da inauguração do Café-restaurante, acontecida a 7 de maio de 1923, este foi considerado “um grande melhoramento” e um local onde acorreria “a melhor sociedade citadina” que, por certo, ali viria “a dar-se rendez-vous”.
Os donos de um estabelecimento similar existente em Lisboa seriam os promotores do café conimbricense, mas, na realidade, os proprietários do Café de Santa Cruz eram Adriano Lucas, Mário Pais e Adriano Cunha que, como desejavam “que o estabelecimento fosse de primeira ordem” não “se têm poupado e esforços nesse sentido, nem mesmo a despesas avultadas”.
Como já se disse, o projeto da fachada apresentado por Jaime Inácio dos Santos, que apresentava um traçado a inserir-se no gosto neomanuelino, já dera entrada nos respetivos serviços camarários para aprovação no segundo trimestre de 1921, tendo, na altura, sido alvo dos mais rasgados elogios. No entanto, para o final do ano a fachada teve de sofrer algumas pequenas alterações, a nível da decoração, a fim de ser “desmanuelizada”.
As entidades responsáveis entendiam que o neomanuelino não podia, nem devia, ser utilizado ao lado do templo crúzio. Havia que edificar uma fachada que se distanciasse do monumento, mas que, simultaneamente, não colidisse com ele.
A contenda agudizava-se, porque para além de ser posta em causa a utilização de um espaço que fora sagrado para nele funcionar um Café-restaurante (as outras utilizações do desativado templo jamais haviam levantado qualquer protesto) ainda existia a convicção de que o templo integrara o “mosteiro das Donas” e, por isso, os opositores conseguiram que o local tivesse sido declarado Monumento Nacional através do decreto n.º 7783, de 2 de outubro de 1921, ocasionando o embargo da obra em novembro seguinte. Na realidade, o mosteiro feminino havia séculos que fora transferido para outro local e, além disso, situava-se no lado oposto. A igreja de S. João de Santa Cruz sempre foi a sede da paróquia do mesmo nome, até porque o templo crúzio fazia parte integrante do mosteiro agostinho.
A escolha do local para instalar o Café-restaurante, consensual num primeiro momento acabou por se transformar numa intensa e demorada polémica, com incisivas acusações entre aqueles que se apresentavam a favor e aqueles que se declaravam manifesta e irredutivelmente contra, sendo a imprensa escrita publicada em Coimbra o principal veículo desta acesa discussão.
Candeeiros de iluminação exterior (Foto Maluisbe)
De um lado situavam-se alguns jornais, como A Noticia, O Despertar e a Gazeta de Coimbra, mais liberais e de cariz marcadamente republicano, que viam neste empreendimento um verdadeiro melhoramento e um importante veículo de progresso para a cidade, em nada chocando a sua localização com o importante e imponente monumento vizinho e muito menos com o afastado passado religioso do templo outrora ali existente.
Por outro lado, encontravam-se os jornais católico-monárquicos, como a Restauração ou A Academia, mais conservadores, que consideravam a instalação do café naquele espaço, para além, de um atentado ao património artístico do nosso país, uma afronta e falta de respeito à Fé católica e também à memória dos nossos primeiros reis, Dom Afonso Henriques e seu filho Dom Sancho I, a dormirem ali o sono eterno.
Interior do Café de Santa Cruz
A partir daqui ambas as partes, para defenderem a sua posição, vão fazer uso dos mais diversos argumentos e também de constantes acusações mútuas.
A título de mera curiosidade diga-se que o periódico “Restauração”, ironicamente, propunha que, no caso de a Câmara Municipal aprovar o projeto, “sem perda de tempo se contru[isse] em frente do café chic, um mictório renascença”…
Nota 1 – Embora alguns dos periódicos apoiantes do novo estabelecimento comercial, depois da inauguração, afirmassem que “entre a frequência do novo café se nota [a presença] do elemento académico e isso também era de esperar, porque a academia coimbrã sabe bem cumprir o seu dever, a verdade é que outros afirmavam que “os estudantes compenetraram-se do seu dever de não frequentar aquela vergonha, ofensiva da arte e da religião do nosso povo. Fogem-lhe envergonhados do atentado afrontoso (…) e não será a Academia que sancionará o sacrilégio do «café passarão»”. Com efeito, os estudantes, na generalidade, não frequentavam muito aquele espaço. Se a memória me não atraiçoa, apenas os monárquicos ali se reuniam.
A minha sogra que hoje estaria a chegar aos 120 anos chamava a este café, “o café dos passarões”. Podemos pensar que o epíteto lhe advinha dos candeeiros exteriores que decoram a sua fachada ou do tipo de frequentadores do café e também podemos deduzir que o café seria assim conhecido pela imprensa e pela população.
Nota 2 – A polémica aqui aflorada e bem documentada no trabalho referido faz-me lembrar uma das características das gentes de Coimbra – será só das gentes de Coimbra? – que resulta, segundo pensamos, da incapacidade, tanta vez presente na nossa sociedade, de avaliar um projeto não pelo seu valor intrínseco, mas pelo posicionamento social e político de quem o sugere; da dificuldade em nos fixarmos no essencial em detrimento do acessório e do circunstancial; da incapacidade de procurar encontrar aquilo em que se torna possível conjugar interesses, em detrimento da constante busca das divergências e do permanente extremar maniqueísta de posições. Incapacidades e divergências bem presentes ao longo de toda a nossa história e de que a existência de portugueses nos dois lados da batalha de Aljubarrota, para além de recuado no tempo, é bem exemplificativo.
Nota 3 – Nas três entradas publicadas sobre este tema seguiu-se, em parte, o texto abaixo referido. No entanto, é de sublinhar que o mesmo foi enriquecido por diversas sugestões que nos foram feitas.
Alemão, G.C. 2004. Uma polémica acesa – o nascimento do Café de Santa Cruz. Trabalho apresentado no Seminário da Licenciatura em História da Arte, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (policopiado)
Academia (A), 12, Coimbra, 1923.05.20.
Despertar (O), 460; 469; 631 e 743, Coimbra, 1921.09.03; 1921.10.05; 1923.05.16 e 1924.06.21.
Gazeta de Coimbra, 1204; 1235; 1384; 1390 e 1445, Coimbra, 1921.09.13; 1921.11.26; 1922.11.30; 1922.12.14 e 1923.05.08.
Noticia (A), 79; 97; 98; 101 e 168, Coimbra, 1921.10.05; 1921.12.10; 1921.12.14; 1921.12.24 e 1923.05.24.
Restauração, 4; 23; 27; 30 e 34, Coimbra, 1921.07.07; 1921.11.22; 1921.12.24; 1922.01.19 e 1922.02.18.
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