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Na verdade, sobre a localização original da «Alcáçova», opinara António de Vasconcelos, categoricamente, em 1930, que esta “se erguia no lugar onde hoje são os Gerais da Universidade”. E justificaria: “Nenhuma dúvida pode haver sôbre a identificação dêste local. Aqui fui o núcleo dos edifícios do Paço da Alcáçova, que depois se foram alargando e estendendo em dois braços, um para Este, outro para Sul. São bem visíveis os vestígios das obras que aqui se fizeram em tempos de D. Manuel, D. João III, D. João V, D. José, etc. Dos edifícios existentes durante a primeira dinastia também alguns restos característicos têm sido descobertos, todos naquele núcleo central … apareceram, envolvidas pelas alvenaria, duas colunas românicas do século XII … não longe da tôrre, descobriu-se ali, sob o rebôco, uma janela ogival, que parece ser do século XIII, etc”. E, seis anos mais tarde, também Vergílio Correia, igualmente empenhado na reconstituição do Paço primitivo, escreveria: “Devia ser um recinto fortificado, rodeado de cubelos, incluindo moradias, e uma capela de invocação de S. Miguel … No Museu Machado de Castro existem duas colunas completas, de calcário amarelo local, pelo estilo atribuíveis ao fim do século XII, que pertenceram ao edifício real” … António de Vasconcelos escreveria … “mais velhos que essas colunas só os muros da cerca e a fresta de arco ultrapassado da torre do lado poente da entrada do palácio-fortaleza, pré-românica”.
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Na verdade, ampliando a área original do edifício, a mole compacta dos «Gerais» incorporara certamente, na sua massa construtiva, os cascos de outras construções que, desde o período medieval, se haviam erguido nas imediações, à semelhança de outras casas, legadas à Sé e edificadas «juxta petrariam subtus alcaçeuam regis nouam»; e a elas pertencia o par de colunas pseudo-românicas … Que talvez fossem, de facto, pertença do «paço primitivo», no sentido em que a ampliação seiscentista dos «Gerais» não parece ter dado lugar à aquisição de terrenos … Sabendo-se que nesse setor se situariam, por tradição, os açougues e outras extensões da Universidade, é bem provável que o edifício (ou edifícios) onde as colunas e os trechos de muros inicialmente se incluíam fosse(m) também pertença do Paço.
Pimentel, A.F. 2005. A Morada da Sabedoria. I. O Paço real de Coimbra. Das Origens ao Estabelecimento da Universidade. Coimbra, Almedina, pg. 226, 227, 230
Como seria, porém, internamente, o orgulhoso alcácer? Não é fácil sabê-lo, por enquanto, atento o carácter limitado, em especial justamente no que respeita às áreas a norte da muralha, das intervenções realizadas no «Pátio das Escolas». Mas é certo que este flanco parece revelar a presença de estruturas habitacionais, ao mesmo tempo que a conservação dos rebocos no intradorso do trecho mural exumado sob o gigante da Capela … sugere, também aí, a existência de espaços habitados. Outro tanto sucederia a norte, provavelmente, como indicia a pequena «cloaca» da fachada (mesmo que a natureza da relação topográfica, entre o «ninho das águias» e o plano mais elevado, obrigassem certamente os construtores do alcácer a providenciar sistemas de drenagem)
… Por outro lado, no que respeita ao lanço de entrada, de acesso direto, como indicam os cubelos de flanqueio e porta dupla, seguramente, na tradição califal do séc. X, como impunha a existência de dispositivos internos de defesa, não parecem os «encontros» garantir aí espessura adequada à implantação de dependências … Porém, estrutura “marcadamente militar”, erguida numa cidade «submetida», confiada às ordens de um «qa’id» - como afirma o relator da conquista de Fernando Magno – e não, por certo, de um «governador», muito dificilmente ostentaria, em anos apesar de tudo recuados, a tipologia dita de «governo», palacial, mas essa outra, essencialmente «funcional», assente no pátio único central, em torno ao qual, apoiadas na muralha, se alinhavam as diversas dependências, característica, de facto, dos palácios omíadas, em cujo modelo se inspirava e dos «rubut» dos místicos guerreiros da «djihad» que, em fim de contas, na sua própria essência, fundamentalmente configuraria. Mas talvez, na verdade, se não assemelhasse a qualquer deles. De facto, persiste ainda, em redor do «alcácer de Qulumryya», a enigmática aproximação feita por Vergílio Correia e Nogueira Gonçalves entre o seu aparelho construtivo e o da própria cintura das muralhas urbanas, tradicionalmente atribuídas ao período romano. E talvez também por essa via seja possível precisar melhor o verdadeiro recorte da construção que nos ocupa.
Pimentel, A.F. 2005. A Morada da Sabedoria. I. O Paço real de Coimbra. Das Origens ao Estabelecimento da Universidade. Coimbra, Almedina, pg. 193 e 194
… a similitude do aparelho de construção ostentada pelo alcácer e pelos trechos arcaicos da muralha (num percurso homogéneo, entre a demolida «Porta da Traição» e a de «Almedina»), reconhecida por Vergílio Correia e Nogueira Gonçalves, tanto quanto o facto se confirmar que, do mesmo modo, “também pedras visigóticas foram aproveitadas para o enchimento dos muros” (sabendo-se hoje que onde se vê «visigodo» se deve, porventura, ver «moçárabe») … Tudo leva, assim, a crer que a importância simbólica e estratégica atribuída à recuperação de Coimbra, no quadro de um projeto imperial de «guerra santa» direcionado ao Reino de Leão, incluiria a sua conversão em praça militar, entendida como guarda avançada do Islão, em cujo âmbito se articulariam tanto o seu «repovoamento» como a sua poderosa fortificação; e que esta se levara a cabo por meio da edificação do «alcácer» e da própria cintura de muralhas, sem a qual, em boa verdade, não disporia aquele de verdadeira eficácia militar … desse modo melhor se compreendendo, aliás, a presença (há muito assinalada), no percurso mural, de trechos mais ou menos explicitamente «muçulmanos», como o arco ultrapassado da Porta da Traição, documentado em 1094, os arranques, também de arco ultrapassado, reconhecidos na Porta de Almedina, onde igualmente parecem divisar-se restos de duas torres circulares, estruturas que, pela sua afinidade técnica com a «alcáçova» e a muralha urbana, Nogueira Gonçalves atribuiria, uma vez mais, ao “século IX, ao período a seguir à primeira reconquista" e mesmo, talvez, a Porta do Sol, referenciada em 1087.
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Parece, assim, configurar-se, no extremo norte do «Andalus» ocidental, mais do que um mero «alcácer», uma praça-forte cingida de muralhas: ciclópico anel, cerrando a ferradura e dando ao (duplo) «monte» a aparência «redonda» captada por Idrisi.
Pimentel, A.F. 2005. A Morada da Sabedoria. I. O Paço real de Coimbra. Das Origens ao Estabelecimento da Universidade. Coimbra, Almedina, pg. 197 a 199
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