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Quem não conheceu mendigando pelas ruas, ainda há bem pouco tempo?
Jinó
O Jinó, essa figura esquelética de velho, de cabelo desgrenhado, de olhar mau, vivo e penetrante, que todo se exasperava quando o rapazio lhe gritava, pondo-se a dançar diante dele: Ó Jinó larga a Maria viúva, talvez alusão a quaisquer amoricos passados, ou Ó Jinó larga o velhó, não porque ele tivesse roubado qualquer velhó, mas pela tendência que o povo sempre teve e tem para rimar tudo o que significa ridículo e tem de dizer repetidas vezes?...
D. Sebastião ou Pitónó
E o D. Sebastião, um belo tipo de velhote que andava pelas ruas vendendo reportórios novos, apregoando-os de tal forma que parecia dizer Pitónó, razão da sua segunda alcunha, que acreditava na vinda de el-rei D. Sebastião numa manhã de nevoeiro, e que ia a casa dos sapateiros pedir-lhes uma faca emprestada para se lhes sentar á porta a limpar e aparar as unhas dos pés num estendal imenso de miséria e porcaria?!
Zé Macaco
E o Zé Macaco, o José Macaque da Rattazzi no Portugal à vol d'oiseau, o criado do antigo Hotel Mondego, cuja presença daria um imenso prazer a Darwin, esse imperdoável falador que desandava a discutir com os hóspedes, enquanto os servia, sobre assuntos de política!
Hóspede que lá caísse e que já tivesse sido ministro, o fosse nessa ocasião, ou estivesse em vésperas de o ser, já podia contar com um vigoroso ataque de argumentos irrisórios e disparatados cujo fecho era sempre este: «os senhores afinal prometem…, prometem…, mas, em chegando lá, fazem todos o mesmo. Tão bons são uns como outros!...»
Cobra Ladrão
E o Cobra, que tinha uma cara de mau, versejador de má morte, que diziam ter roubado as pratas da Sé e ia esconder-se atrás dos silvados, à beira do rio, pescando à linha a roupa, dentro em breve reduzida a metal sonante, que as lavadeiras, belas moçoilas frescas e apetitosas, de saia arregaçada até ao joelho, aí estendiam a enxugar?
Este costume de pescar roupa alheia e de andar, de noite, roubando as chaves que encontrava pelas portas para as ir vender a qualquer ferro-velho, mereceu-lhe o epíteto pouco glorioso de ladrão, que o tornava apoplético e o fazia correr à pedra a garotada que o perseguia.
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
De outro comerciante que já morreu, o Ribeirinho, reza a tradição que, tendo falido, se fingiu amalucado em harmonia com certos fins que tinha em vista…
O Ribeirinho – Caricatura de Miguel da Costa
Ora o Ribeirinho, lá pelos modos, tinha as suas aspirações a poeta e, como tal, deu-se ao luxo de publicar um livro intitulado Allegorias as célebres Alllegorias onde conseguiu, não sei porque artes diabólicas, armazenar quantos pontos de admiração havia neste e no outro mundo até essa data. E a academia, sempre disposta a fazer das suas, sabendo isto e sabendo mais e melhor que o Ribeirinho era homem de muitos haveres, mas avarento como poucos, ia buscá-lo a casa em engraçadíssimas marchas aux flambeaux, percorrendo as ruas da cidade com ele ao colo, fazendo-o recitar, de momento a momento, as melhores produções do seu livro que, diga-se a verdade, tanto valiam umas como outras.
O Ribeirinho
Mas ele, saracoteando- se todo, em pose de passar à posteridade, num gesto estudado e ridiculamente impagável, recitava, tornava a recitar, enfiado na sua capa sem mangas e nas suas calças de xadrez, entre a galhofa e o aplauso das turbas que ele generosamente julgava contentar atirando-lhes sempre à queima-roupa, com um – obrigado rapazes. Passado algum tempo o Ribeirinho, que nos últimos meses se dizia um desgraçado, morria deixando em testamento uma fortuna razoável em belos contos de réis!... Ai quem me dera ser um desgraçado assim!
Houve ainda outro, certo dia em Coimbra nunca lhe soube o nome, que mandou anunciar, em todos os jornais da terra, que vendia belos chouriços alentejanos e quis ver, no alto do anúncio, em caracteres de palmo e meio: – A LOJA D’UMA PORTA SÓ. Eis senão quando, logo ao outro dia de manhã, viu postar-se-lhe em frente da porta um grande, um numeroso grupo de estudantes exclamando admirados:
– Olhem A LOJA D’UMA PORTA SÓ!
O homem, não sei porquê, prevendo qualquer cousa de extraordinário, não ficou lá muito bem-disposto com a cena e com aquele ar irónico que via nos rapazes, mas saiu detrás do balcão, avançou até á porta e perguntou, forçando um sorriso:
– Que hão de querer?
– É aqui A LOJA D’UMA PORTA SÓ?
– É sim senhor, porquê?
– Porque não tem senão uma porta!
E logo outro:
– Porque tem unicamente uma porta!
E outro:
– Porque tem uma porta apenas!
E ainda outro:
– Porque tem simplesmente uma porta!
E acrescentando todos ao mesmo tempo:
– Porque tem UMA PORTA SÓ!...
E o certo é que o homem afinou com a brincadeira, foi aos ares, deu ao diabo os estudantes e desatou num berreiro infernal despejando quantos insultos conhecia. – Mariolas! Vadios!...
Como umas coisas fazem lembrar as outras e as palavras são como as cerejas, segundo exclamava uma criada velha que eu tive, agora me recorda que lá ouvi contar, não sei a quem, que houve outrora um barbeiro, atrás da igreja de S. Bartolomeu, que, todos os dias, barafustava endiabrado só porque os estudantes, muito ingenuamente, iam perguntar-lhe como é que os sinos da igreja próxima tocavam a fogo, a batizado, ao Senhor fora e como davam as Trindades.
Mas, como estes, houve e há tantos ainda por aí fora!
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
Iniciamos hoje uma série de 14 entradas - que iremos intercalar com outras sobre diferentes assunstos - através das quais iremos recordar um artigo de Mário Monteiro, ilustrado na sua maioria com fotografias de José Gonçalves; foi publicado no início do século passado, na transição do século XIX para o XX, nesse magnifico fresco da realidade nacional que é a Illustração Portugueza.
Coimbra – uma cidade fechada sobre si mesma ainda que aberta ao contributo de estudantes vindos das mais variadas origens – sempre foi o palco de uma legião de variados tipos humanos. À boa maneira provinciana a tudo e a todos se dava um nome, ou uma alcunha.
Na minha adolescência o Mondego era o basófias, um troleicarro o pantufas, o vendedor de petróleo o petrolino, os carros da PSP os creme nívea, o “Diário de Coimbra” o calino, os habitantes de Alta os salatinas, o autocarro da AAC, sei lá porquê, a Laurinda. Estas entre tantas outras.
Quanto a alcunhas lembro-me de uma mulher da Alta que por ter sido dado como morta, passou uma noite na morgue e daí o ser conhecida pela Maria do Cu Fresco; o proprietário de uma casa de penhores onde o valor da peça não dependia só desta, mas da pancada que se dava e recebia do dono, dava pelo nome de Picalo; o dono de uma tasca situada no Largo da Matemática era o Zé Bruto; um determinado sapateiro dava pelo nome de Carne Assada; o Bentes, jogador da Briosa, era o rato Atómico; o franzino massagista da Académica era conhecido por Mão de Pilinha, em contraposição com o massagista do Benfica, de tamanho grande, conhecido por Mão de Pilão; o excelente fotógrafo da cidade e, sobretudo, da Académica, era o Formidável.
Listagem que por certo pode ser enriquecida com o contributo de todos os leitores.
O artigo que iremos transcrever tem o título Typos de Coimbra e está escrito na forma redonda e hiperbólica da época. Optou-se por atualizar a ortografia, a fim de facilitar a sua leitura e começa assim.
Analisar a miséria das ruas, observar com olhos de ver todo esse constante e crapuloso bric-à-brac onde se atrofiam e se perdem caracteres, mas onde, as mais das vezes, se vão buscar modelos, belas cabeças de estudo vincadas profundamente, dolorosamente, pelos traços indicadores de uma vida agitada e miserável – é, em qualquer parte, um estudo arrojado, quase impossível, cheio de mil obstáculos, e sobretudo, fastidioso, mas, em Coimbra, chega a ser deveras original e interessante.
É que esta deliciosa terra, com a sua Universidade, lá no alto, a coroar-lhe os edifícios, a dar-lhe uns certos ares de sábia ... não sei por que estranho dom, podendo ser encarada sob muitos e variados aspetos, tantos quantos se queiram, – manancial eterno de prosadores e poetas – apresenta-nos uma vida das ruas característica, típica, absolutamente sua.
Tudo isto porque os garotos de Coimbra – e não há nada pior do que eles! – são exímios glorificadores dos grotescos que aparecem dia a dia e, sabendo procurar-lhes todos os pontos vulneráveis, são terríveis no ataque em que, por entre o desespero dos vencidos e o desenfrear das chufas e dichotes dos vencedores, não é raro aparecer uma alcunha que se pega, que se agarra por tal forma que nunca mais sai, criando, ipso facto, um novo tipo apontado e escarnecido em toda a parte.
Alcunha que se ponha em Coimbra é muito pior que cola-tudo, é como alma que caiu no inferno. E pega que nem santo António lhe vale!...
Ainda hoje certos comerciantes pela cidade, ventrudos e lustrosos, pintam para aí as mantas do diabo se lhes forem perguntar à porta dos seus estabelecimentos:
– Tem chá feito?
– Tem cordas para flauta?
– A boneca já fala?
Por isso convém aqui dizer que, ao enumerar alguns dos tipos mais curiosos de Coimbra, eu não pretendi ir procurá-los apenas á miséria das ruas, mas fui buscá-los também às suas casas de negócio, arrancá-los detrás do balcão para os trazer até aos umbrais da porta e mostrá-los à luz do dia, corno objetos raros e dignos de uma observação mais ou menos demorada e minuciosa.
E é assim que, sem mais delongas, dando o braço ao amigo Paixão, peço licença para o apresentar.
O Paixão – Imitado pelo dr. Bento Lima, na récita do 5.º ano de 1898
O Paixão – é um alfaiate que mora na rua de S. João, quase no centro da parte alta da cidade, essa espécie de quartier latin, que é o bairro académico por excelência. Pinta muito regularmente a pera, segundo se conta, e dá uma sorte levada da breca em se lhe dizendo:
– Ó Paixão dá cá o diamante ... – aludindo não sei a que episódio dos seus tempos… de outro tempo.
Vicioso fumador de charuto, que traz sempre ao canto da boca, nessas horas de mau humor há quem veja mordê-lo raivosamente, cuspir repetidas vezes, como é seu costume, num grande ar cómico irresistível, e desandar depois numa catilinária pavorosa capaz de assustar todos os anjos e santos da corte do céu!...
Constou-me até, nem eu sei quando, que os estudantes de certa geração o puseram fora da porta-férrea depois de encerradas as aulas, porque ato a que ele fosse assistir era chumbo certo...
No entanto o amigo Paixão, com todos aqueles seus ares de caricato, não passa de uma bela criatura, de um pobre diabo incapaz de fazer mal a uma mosca.
Mas caiu na asneira de dar sorte e fez muito mal, lá isso fez!
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
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