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José de Matos Sobral Cid (1877-1941)
In: http://memoria.ul.pt/index.php/Ficheiro:Cid-Jose_Matos_Sobral.jpg
«O primeiro problema higiénico fundamental, que se levanta em Coimbra, é o que deriva da implantação geográfica da cidade na margem direita do Mondego, no ponto preciso em que à bacia alta torrencial do rio se sucede o cone de dejeção sedimentar do estuário inferior. Traduz‐se na vida histórica da Coimbra ribeirinha por um esforço constante de adaptação mecânica da população a um solo acessível ás inundações do rio, ameaçado de ser subvertido pela elevação progressiva do álveo e dos campos marginais. Exprime-se nas condições atuais da cidade baixa, na sua configuração topográfica em goteira de fundo inferior ao nível das aguas do Mondego, na natureza do seu solo artificial formado de entulhos e terras removidas e na humectação constante do seu substrato telúrico. Reflete‐se na patologia da cidade pelo paludismo, que durante muito tempo foi uma característica da nosografia coimbrã e que ainda hoje o é na nosografia dos campos de Coimbra». (José Sobral Cid, Coimbra. Demografia e Higiene. 2º volume Coimbra: Imprensa da Universidade, 1902).
No início do século XIX, Coimbra implantada na margem do rio Mondego era uma cidade de reduzida dimensão, dividia entre a colina da Alta onde se localizavam a Universidade e os Colégios, e a Baixa implantada no vale do rio, concentrando as atividades comerciais e manufatureiras. Na margem esquerda do Mondego em torno do Mosteiro de Santa Clara a Velha e do Convento de S. Francisco e na encosta junto ao novo Mosteiro de Santa Clara implantavam‐se alguns edifícios, mas sem grande expressão no conjunto da cidade.
A implantação estratégica na colina de transição entre o Alto e o Baixo Mondego favoreceu o desenvolvimento da cidade como entreposto mercantil, no ponto de intersecção dos percursos entre a serra e o mar e entre o norte e o sul do país, a cidade floresceu no ponto de intersecção da antiga estrada romana Olisipo‐Bracara Augusta com o rio.
Planta de Coimbra e seus Contornos sobre o Rio Mondego, final do século XVIII
Se por um lado o rio era, com as suas barcas serranas, a principal via de circulação e transporte dos produtos hortícolas e das manufaturas vindos da Beira, por outro, obrigava a um esforço constante das populações da Baixa para evitar as inundações frequentes e a elevação progressiva do álveo. [nota de rodapé: Segundo Adolpho Loureiro em 600 anos teria sido de 4,96m, ou seja, cerca de 8mm por ano]. Com efeito, desde o século XVI que se procurava regularizar as margens do Mondego e elevar as mesmas, mas todas as intervenções se revelavam ineficazes.
A antiga Ponte de Pedra, profundamente remodelada por D. Manuel I em 1513, foi sendo paulatinamente assoreada e no início do século XIX era recorrentemente galgada pela subida da cota das águas. O seu tabuleiro, construído a cerca de 21,46 metros acima do zero hidrográfico da Figueira da Foz, estaria em 1872 apenas a cerca de 4,41 metros acima do nível da cota de estiagem, o que deixaria apenas cerca de 2,65 metros de passagem entre o arco mais alto e o nível médio das águas, tornando‐se um óbvio obstáculo à passagem das águas. Acresce que na estação invernosa para cheias normais o nível das águas subiria entre dois a três metros, podendo atingir, em cheias excecionais, seis metros como sucedeu em 1872.
Ponte em toda a sua extensão e altura, com as sondas de água que levava o Rio em o Mez de Dezembro de mil sete centos e oitenta e hum
Para além dos inconvenientes para a cidade, esta situação afetava a circulação da principal estrada nacional, a estrada Lisboa-Porto, tornando urgente a construção de uma nova ponte. Efetivamente, já em 1871, enquanto se estudava o melhoramento desta estrada e o encanamento do rio Mondego, Manuel Caetano de Sousa tinha efetuado o levantamento da ponte, o que nos leva a crer que na altura se planeasse a sua reforma ou mesmo substituição. Anos mais tarde em 1848 por ocasião de uma grande cheia foi feito um segundo levantamento, mas a ponte só foi substituída em 1875.
Ponte de Coimbra levantada a 3 de Septembro de 1848 na occazião do maior abatimento das Agôas
Para além dos inconvenientes da falta de atravessamento, as cheias que recorrentemente invadiam a zona ribeirinha criavam péssimas condições sanitárias, conduzindo frequentemente a epidemias de cólera, febre tifoide e malária. Esta situação precária era agravada pela elevada concentração de população atraída à zona baixa pela facilidade de acesso e circulação. Efetivamente, apesar de sujeita à fúria das aguas e de estar implantada sobre camadas sucessivas de entulhos arrastados pelo rio, era na Baixa que se localizavam as principais atividades comerciais e artesanais da cidade.
Calmeiro, M.I.B.R. 2014. Urbanismo antes dos Planos: Coimbra 1834-1924. Vol. I. Tese de doutoramento em Arquitetura, apresentada à Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, pg. 160-164.
No final do século XVI, o arrabalde apresentava uma estrutura bastante consolidada e o seu poder económico superava já o da Alta, tornando-se num centro vital para a sobrevivência da cidade. Em relação à morfologia, foi a altura em que se finalizou a ligação entre os adros de Santa Justa, o largo de Sansão e a Praça do Comércio, formando-se um aglomerado contínuo. “A cidade afirmou urbanisticamente a sua determinação em se instalar na zona mais baixa e plana.” O território distinguia dois conjuntos urbanos que vieram evidenciar a polaridade entre a Alta e a Baixa. Os dois polos tinham funções diferentes no panorama citadino e não entraram por isso em colapso, uma vez que se completavam nas necessidades funcionais da urbe. Na cidade Alta, intramuros, vivia o clero, os cónegos da Sé e outros beneficiários eclesiásticos, a nobreza local, os seus servidores e algum povo. Na cidade Baixa, habitavam o povo miúdo, os comerciantes, os artesãos e alguns mesteres. Já no século XV, a praça do arrabalde tinha sido denominada pelo infante D. Pedro como a P r a ç a d a C id a d e, expressão que denota claramente a importância crescente da cidade Baixa no contexto urbano. O sistema já consolidado do arrabalde é composto sequencialmente pelo Largo da Portagem, Rua dos Francos, a Praça do Comércio e a Praça 8 de Maio. Todos estes elementos formalizam a estrutura principal da Baixinha e referenciam-na como espaço singular da urbe. O modelo de rua e praça, de cheios e vazios representa, assim a imagem da cidade medieval com estruturas agregadoras de lugar da vida comum e das atividades relacionais da sociedade. A condição central da praça funciona como “sala de estar” urbana de encontro e troca, pois faz confluir todos os percursos estreitos para um lugar amplo e espaçoso de desdensificação da malha construída e concentra programaticamente funções importantes no contexto urbano
... Era à volta da praça principal do arrabalde que se concentravam os principais serviços comerciais. Atualmente, com uma forma alongada, esta praça resultou da união das igrejas de S. Bartolomeu (o adro de trás) e de S. Tiago (o adro cemiterial fronteiro), da consolidação, em contínuo dos respetivos núcleos e da reconformação da estrutura viária Norte/Sul. Localizada próximo da porta principal da cidade e em zona ribeirinha, a praça serviu as necessidades mercantis e agregadoras da dinâmica urbana da cidade medieval. Por ser uma área plana de fácil acesso e ponto de transição do rio para a cidade intramuros, rapidamente ganhou um estatuto central e identificador para a comunidade urbana. Logo se tornou a Praça da cidade e o valor da sua propriedade superava o das restantes zonas. São características evidenciadas pela altura dos edifícios que, era térrea na cidade em geral e atingia os três pisos neste local. Inicialmente foi intitulada Praça de S. Bartolomeu como referência à igreja que a conformava. Mais tarde, passou a ser referido o seu papel de Praça do Comércio. A transferência de poder e de funções da cidade Alta para a Baixa, mais especificamente para a Praça do Comércio, veio acentuar e potenciar a sua condição central no seio do restante tecido. O reconhecimento deste espaço como praça surgiu no século XV, quando foi transferido para o local o mercado que inicialmente se realizava na parte alta. Com melhores características espaciais e de acessibilidade para o efeito, a praça foi progressivamente palco de feiras, mercados e açougues da cidade. A ação de D. Manuel, no século XVI, instaurou um processo de reestruturação e consolidação na cidade de Coimbra. Os empreendimentos de renovação e requalificação urbana levaram a cabo o melhoramento dos pavimentos das ruas e a redefinição programática da praça, com a localização do pelourinho, da Casa da Câmara, do Hospital Real e da Misericórdia, na primeira ação global de modernização. Neste mesmo século, o Mosteiro de Santa Cruz promoveu uma intervenção urbanística de grande importância, pela reconformação do seu espaço fronteiro, potenciando o desenvolvimento da interação social de mais um espaço urbano. Foram instaladas fontes de abastecimento público de água e era o espaço preferencial para as atividades lúdicas. A denominação de Largo de Sansão viria a mudar no século XIX, adaptando-se a designação de Praça 8 de Maio. A Rua Visconde da Luz, que estabelecia a sua ligação com os restantes espaços do sistema, ganhou gradual importância na vida urbana, instalando-se aí ourives e latoeiros. O sistema de largos, ruas e praças estava assim conformado e interligado no novo zoneamento urbano.
Ferreira, C. 2007. Coimbra aos Pedaços. Uma abordagem ao espaço urbano da cidade. Prova Final de Licenciatura em Arquitectura pelo Departamento da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, orientada pelo Professor Arquitecto Adelino Gonçalves, p. 32-34
As posturas do município não obrigavam os ofícios mecânicos a arruamentos. Mas disciplinavam, em nome do bem público, a localização de certas atividades. … Sendo o produtor ao mesmo tempo vendedor, os mesteres não deixariam de disputar os sítios mais favoráveis ao desenvolvimento económico … Livreiros e impressores, alfaiates, sapateiros, taberneiros e recoveiros, contam-se entre a população da Alta que contribuiu para as fintas das sisas. Os livreiros deviam ter subido a colina depois de 1567. Com efeito, no livro das sisas deste ano, é possível identificar seis. Mas cinco pertencem à freguesia de Santiago. Dos catorze livreiros conhecidos em 1613, moravam 9 em S. Cristóvão e apenas três em Santiago.
… Pelas freguesias da Baixa distribuía-se a maior parte do artesanato e da riqueza que lhe podia estar associada. Mais de três quartos dos ofícios mecânicos identificados em 1567 situavam-se nesta zona. Em 1617 pertenciam-lhe pelo menos 74%. A freguesia de Santa Cruz detinha o maior número de unidades artesanais. Seguiam-se-lhe Santiago, S. Bartolomeu (mesmo excluindo Santa Clara) e Santa Justa.
Os sapateiros e oleiros predominavam em Santa Cruz, os alfaiates e ourives em Santiago. Os cordoeiros sobressaíam em Santa Justa. Em S. Bartolomeu salientavam-se os sombreireiros, sapateiros e barqueiros.
Dentro das paróquias havia locais onde eram (ou foram) exercidos, predominantemente, certos ofícios, como deixam transparecer os topónimos Terreiro das Tanoarias, Terreiro das Olarias e ruas das Solas, dos Sombreireiros, dos Sapateiros, dos Toalheiros … A «nobreza» da Rua de Coruche ou da Calçada, por exemplo, não deixará de andar associada, certamente, aos mercadores, merceeiros ou ourives.
… Nos dias de trabalho as oficinas abriam cedo e fechavam tarde: laboravam, por certo, de manhã cedo até ao cair da noite, de sol a sol. Às sete horas, no tempo da Quaresma, as lojas já estavam abertas. E a esta hora deviam os tabeliães das notas estar na casa da Praça para atender o público. Era a hora normal de iniciar o trabalho ou o estudo … As aulas em Coimbra, pelo menos nos Estudo Menores, começavam às oito horas no Inverno e às sete no Verão.
Oliveira, A. 1971. A Vida Económica e Social de Coimbra de 1537 a 1640. Primeira Parte. Volume I. Coimbra, Universidade de Coimbra, pg. 362 a 364
"De todos os cilícios, um, apenas,
Me foi grato sofrer:
Cinquenta anos de desassossego
A ver correr,
Serenas,
As águas do Mondego"
Miguel Torga
"Oito horas de sonambulismo nos campos do Mondego, cobertos de quietude e de toalhas de água, onde a alma se embebeda de silêncio e os choupos se narcisam.” ...
"Esta paisagem coimbrã tem o diabo dentro dela. No Alentejo caminho; em Trás-os-Montes, trepo; aqui, levito”, confessa Miguel Torga noutra passagem dos seus “Diários”.
Conheci Miguel Torga há cinquenta anos e, precisamente, em Coimbra. Recordo-me de o ver passar, como uma águia do Marão, pelas ruas da Baixa da cidade e de o ver, magnânimo e trágico, sentado no café, junto dos seus amigos de tertúlia: Paulo Quintela, Afonso Duarte, António de Sousa e outros mais.
… ao passar no Largo da Portagem, o via estático e sonhador, com o olhar distante, na janela do seu consultório. Realizaria, dentro de si aquilo que num dos seus romances o levou a escrever:
"À direita, a fachada lívida do Banco de Portugal, com o relógio no topo a marcar as horas sonolentas; à esquerda, a velha ponte de ferro a transpor a fita branca do areal por onde o Mondego serpeava minguado e preguiçoso; em frente, a verde perspetiva do horizonte rural, pasto bucólico de imaginação…”
Porque desde sempre a amou, Coimbra – e a sua tão lírica e bucólica região – tem sido para Miguel Torga quase uma paixão; ama-a porque a descobriu em todos os seus aspetos, porque a tem vivido e sentido. Coimbra – poderíamos dizer – é para Miguel Torga, em muitos aspetos, o brasão de Portugal e das gentes portuguesas. No seu impressionante livro “Portugal” – obra fundamental para o 'entendimento' do nosso País – Torga testemunha …
“Coimbra é uma linda cidade, cheia de significação nacional. Bem talhada, vistosa, favoravelmente colocada entre Lisboa e o Porto … Mais do que razões sociais, foram razões geográficas que a fadaram. Uma terra de suaves colinas, de verdes campos, banhada por um rio plano, sem cachões, a meio de Portugal, tinha necessariamente de ser a cidade espiritual, universitária, da pequena pátria lusa. Também a nossa alma é de suaves relevos, de frescas paisagens, e banhada por uma corrente doce de amor e conciliação. Nenhuma outra terra como Coimbra testemunha tão completamente, na sua pobreza arquitetónica, na sua graça feita de remendos e pitoresco, nos seus recantos sujos e secretos, os limites da nossa capacidade criadora, a solidão da nossa alma, e o camponês com que nascemos para tirar efeitos cénicos do próprio gosto de erguer uma videira.”
Ribas, T. (1991?). Coimbra Vista por Miguel Torga. Lisboa, Inatel, pg. 1, 5 a 8
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