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A obra que ora divulgamos insere o seguinte texto assinado pelo Padre Doutor António de Jesus Ramos, com o título, Alguns traços para o perfil de Monsenhor Nunes Pereira:
Numa das minhas incursões pela história comparada dos povos encontrei, tempos idos, a figura simpática de um rei polaco, de nome Augusto, que, nos finais do século XVII, deixou nomeada em toda a Europa pela simples razão de estar na origem paternal, pelo menos atribuída, de quatrocentas criaturas.
Longe estava eu de pensar que alguma vez me seria dada a honra de, nestes últimos anos do século XX, traçar o perfil de um outro Augusto, com créditos firmados em Portugal e além-fronteiras, e que assume a paternidade responsável de várias centenas, talvez de milhares de criaturas.
Ninguém se admirará que eu me exprima deste modo e tenho a certeza de que Monsenhor Augusto Nunes Pereira não vai desaprovar este preâmbulo.
Na fachada da casa natal, uma cabeça de mulher outrora saída das suas mãos, serve-lhe agora de modelo para uma fotografia. Op. cit., pg. 33
As voltinhas do Fajão. Fotografia José Maria Pimentel. Op. cit., pg. 40
"Comecei a pisar esta calçada,
Um cinco-réis de gente, um quase nada.
Que bela recordação,
As voltinhas do Fajão" (Nunes Pereira)
Eu digo porquê. Num dos nossos primeiros encontros, era eu ainda jovem estudante, quando lhe referi o nome da minha aldeia, deixou-me algo perplexo, mas não escandalizado, a sua informação: «Conheço muito bem, e até lhe posso dizer que tenho lá dois irmãos».
Pai de Nunes Pereira, Xilogravura. Op. cit., pg. 19
Perante o meu silêncio questionador o santo e paciente sacerdote, sempre amável para o verdor da juventude, explicou-me, logo de seguida que seu pai, além de agricultor, fora, em finais do século XIX o escultor-santeiro mais conhecido em toda a Beira-Serra e que, para a capela do povoado onde nasci, por encomenda dos meus antepassados, esculpira duas imagens que eu venero desde criança, uma representa Nossa Senhora de Nazaré com o seu Menino ao colo e um grupo de anjos aos pés e a outra o santo do meu nome, António, nas suas vestes franciscanas, com um cordão que lhe toma a cintura pronunciada, uma cruz na mão direita e, na esquerda, um livro aberto nudez do Divino Infante. Aquelas duas imagens são, hoje, no meu humilde entendimento artístico, os familiares antepassados das centenas de criaturas que, em desenho à pena, em ferro forjado, em aguarela, em vitral e sobretudo em madeira gravada saíram do talento artístico que o Senhor de todos os dons concedeu em abundância caudalosa a este homem simples e bom que, ainda hoje, se identifica com as suas raízes, que vão mergulhar na honradez que lhe foi transmitida nas canções com que a mãe Ana o embalava no rulo que o pai António fizera em madeira de castanho.
Quem quiser conhecer e entender a multifacetada obra artística de Nunes Pereira tem de se deter demoradamente sobre esta primeira etapa da sua vida. Foi o próprio artista que mo confessou em longa conversa que mantivemos, em Agosto de 1980, respirando a brisa fresca da praia da Figueira: "Moralmente recebi influência direta de meu pai.
Embora eu tivesse só nove anos quando ele morreu, lembro-me muito da convivência com ele, do que me dizia, do modo como educava os filhos”. E dele recebeu também o gosto pela arte e as ferramentas para trabalhar a madeira: as plainas, as goivas, os formões... E não deixou de o influenciar por certo aquela história verdadeira que ouviu na infância a propósito de seu pai: alguns homens da Mata foram à sede de freguesia, a Fajão, para combinarem com o pároco, padre Carlos José Fernandes de Almeida, a bênção da imagem do Senhor dos Milagres, orago da capela local. 0 prior perguntou à delegação: "Quem é que a fez?" Eles responderam: "Foi António Nunes". "Isso não deve estar capaz" - retorquiu o padre Carlos. "Está pois! Ele é um artista." Pouco convencido, o prior despachou-os: "Está bem! Eu lá irei, mas, se não estiver em condições, agarro-lhe por uma perna e atiro-a para o Pego Redondo". Não foi necessário, o sacerdote não só benzeu a imagem como ficou admirado como é que as mãos calejadas de um cavador de enxada tinham esculpido obra tão perfeita.
Retrato de minha Mãe – 1927. Nunes Pereira, op. cit., pg. 19.
Não menos influente na formação do padre e artista foi a figura tutelar de sua mãe. Num dos seus livros de versos, escreveu Nunes Pereira esta dedicatória: "A minha mãe, que eu persisto em relembrar no momento dos vivos".
Na mesma conversa que atrás referi, confidenciava-me o artista:” Minha mãe, considero-a ainda viva pela influência que exerce em mim. Foi uma grande mulher. Tendo enviuvado cedo, ficou com uma casa de lavoura a seu cargo e, mesmo assim conseguiu-me mandar para o Seminário, com dinheiro emprestado.
Ramos, A. J. Alguns traços para o perfil de Monsenhor Nunes Pereira. In: Pimentel, J.M. e Oliveira, M.C. 2001. Monsenhor Nunes Pereira. O percurso de uma vida. Coimbra, Edições Minerva.
Dedicamos a entrada de hoje e as quatro que se lhe vão seguir ao livro Monsenhor Nunes Pereira. O percurso de uma vida.
Monsenhor Nunes Pereira. O percurso de uma vida, capa
Monsenhor Nunes Pereira. O percurso de uma vida, contracapa
Trata-se, essencialmente, de um magnifico álbum fotográfico dedicado à vida e à obra dessa figura maior de Coimbra que foi Nunes Pereira.
Para além das excelentes imagens, a obra em apreço apresenta, a enquadrá-las, um conjunto de textos passíveis de fazer um relato do percurso de vida do Homem e do Sacerdote que ele foi e da sua obra artística, afanosamente construída ao longo da vida.
A obra de Nunes Pereira merece a atenção dos conimbricenses e a razão dessa relevância surge assim relatada:
Num café de Coja tomávamos a bica.
Veio à conversa a recente edição da Valceira, Associação de Desenvolvimento sediada em Fajão, de uma recolha de quadras populares coordenada por Maria da Conceição Oliveira e ilustrada por Monsenhor Nunes Pereira. Falámos sobre ele, sobre a sua enorme vitalidade, sobre o que conhecíamos da sua vida e obra, que se nos apresentava em fragmentos mais ou menos dispersos do que sobre ele tínhamos ouvido falar ou lido.
Nos minutos seguintes, a admiração que ambos temos por este homem, para quem a arte é uma paixão desde criança e de todos os dias, fez-nos nascer a ideia de uma fotorreportagem. Não pretendíamos ficar presos à sua biografia, nem tão pouco fazer um estudo detalhado da obra realizada, queríamos antes acompanhá-lo no reencontro com os espaços e ambientes que foram a sua vida e transcrevê-los em imagens.
Seria uma justa homenagem e um projeto que concretizaríamos com prazer.
Apresentámos-lhe a ideia.
Com a habitual modéstia hesitou. Parecia-lhe trabalho a mais para pessoa de interesse relativo.
Ultrapassado à força de argumentos este primeiro obstáculo, encontrámos o entusiasmo que lhe é característico e que põe em tudo aquilo a que se dedica.
Seguiu-se a digressão pelos locais onde viveu, acompanhados por este conversador incansável dotado de um sentido de observação, saber e memória extraordinários.
Assim, fomos descobrindo uma obra com uma dimensão muito superior à que imagináramos, tanto na vertente de intervenção social, como na artística. Até neste último aspeto, talvez aquele que julgávamos conhec.er melhor, nos conseguiu surpreender. Sempre munido de caneta e papel, percorreu a vida a registar o que lhe despertava o olhar: são cadernos e cadernos de desenhos gravuras, aguarelas espalhados entre o seu atual atelier e escritório no Seminário, a casa da Portela (Coimbra), o museu em Fajão (Pampilhosa da Serra), as coleções particulares; são as muitas xilogravuras, vitrais e trabalhos em ferro existentes em igrejas do país e outros edifícios. Deparámos com surpresa que, entre as muitas disciplinas artísticas que praticou, também a banda desenhada mereceu a sua atenção permitindo, ocasionalmente, dar curso a um sentido de humor familiar a quantos o conhecem.
A recolha de imagens foi feita ao ritmo das nossas deambulações, sem encenações nem poses.
À medida que iam surgindo, entregávamos-lhe uma cópia para que seguisse o trabalho. Nasceram, assim, espontaneamente, de sua autoria e em jeito de comentário, as quadras que as acompanham.
Nunes Pereira – Retrato a ponta seca da autoria de José Maria Pimentel. Op. cit., pg. 5
Este livro apresenta Monsenhor Nunes Pereira nos espaços que são hoje o seu quotidiano, sugere o ainda possível dos ambientes que condicionaram o percurso da sua vida, regista os objetos que o têm seguido, muitos fabricados pelas suas mãos. A reprodução de obras nele incluídas não pretende fazer qualquer seleção critica, mas apenas dar nota da sua qualidade e diversidade.
Esperamos ter sido merecedores da confiança que em nós depositou.
Pimentel, J.M. e Oliveira, M.C. Monsenhor Nunes Pereira. O percurso de uma vida. Alguns traços para o perfil de Monsenhor Nunes Pereira, A. Jesus Ramos. Percursos artísticos de Augusto Nunes Pereira, Elisabete Oliveira. 2001. Coimbra, Edições Minerva.
O projeto “Conversas Abertas”, iniciativa do blogue “A’Cerca de Coimbra”, com o apoio do Clube de Comunicação Social e do Arquivo da Universidade de Coimbra, depois de um interregno de cerca de dois anos motivado pela pandemia, vai ser retomado.
As sessões realizar-se-ão na Sala D. João III do Arquivo da UC, às18h00 das últimas sextas-feiras dos meses de março a junho e no dia 13 de maio, do presente ano.
Arquivo da Universidade de Coimbra, entrada pela Rua de São Pedro n.º 2, parte baixa e traseiras do edifício da Biblioteca Geral da Universidade
Arquivo da Universidade de Coimbra, sala D. João III
O programa é o seguinte:
- 25 de março, 6.ª feira, às 18h00
. Tema: Mons. Nunes Pereira. O homem, o sacerdote e o artista.
. Palestrantes: Dr.ªs Virgínia Gomes (Técnica do MNMC) e Cidália Maria dos Santos (Curadora do Museu Nunes Pereira).
. No âmbito desta Conversa Aberta o Arq.º António José Monteiro e o artista plástico José Maria Pimentel, farão a apresentação de uma proposta de monumento a Mons. Nunes Pereira a instalar junto à rua com o seu nome, em Coimbra.
- 29 de abril, 6.ª feira, às 18h00
. Tema: Arco romano de Coimbra.
. Palestrante: Arq.ª Isabel Anjinho.
- 13 de maio, 6.ª feira, às 18h00
. Tema: Judeus em Coimbra.
. Palestrante: Dr.ª Berta Duarte.
- 27 de maio, 6.ª feira, às 18h00
. Tema: O Jardim do Mosteiro de Santa Cruz ou Jardim da Sereia: Uma imagem do Paraíso na cidade de Coimbra.
. Palestrante: Doutor Marco Daniel Duarte.
- 24 de junho, 6.ª feira, às 18h00
. Tema: Livreiros franceses em Coimbra: contributos para uma biografia dos irmãos Orcel.
. Palestrante: Dr.ª Ana Maria Bandeira.
As sessões decorrerão na forma habitual, ou seja:
- Intervenção inicial do(s) palestrantes.
- Intervenções dos assistentes.
- Encerramento pelo responsável pela organização.
Monsenhor Nunes Pereira foi um dos homens que marcou a minha vida.
Primeiro, como professor na Brotero, onde se destacava pela sua humanidade, pela simplicidade e por, a fim de lecionar o conteúdo da disciplina que lhe estava confiada, e não só, desenhando no quadro preto autênticas obras de arte.
Mais tarde, quando assumi o cargo de Diretor do Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Coimbra, tive ocasião de conhecer mais profundamente o Homem e o Sacerdote. A sua dignidade e simplicidade, o seu saber, a sua imensa alegria de viver, o sorriso que vinha do fundo da alma, a sua bondade, a busca continua de mais conhecer e de mais transmitir deixaram em mim uma marca indelével.
Com ele passei longas horas, na Portela, a conversar à porta da sua residência, quando, depois das reuniões em que participávamos, o ia levar a casa, pois automóvel foi coisa que nunca lhe vi. Era uma habitação de madeira, modesta, mas repleta de obras de arte e de tranquilidade.
Ainda hoje lhe estou grato pelo muito que me ensinou e pelo humanismo que ele fez gravar em mim, para sempre.
O Museu Monsenhor Nunes Pereira, localizado em Fajão, sua aldeia natal, foi inaugurado a 13 de setembro de 1997.
Museu Monsenhor Nunes Pereira na atualidade, exterior. Acedido em https://www.allaboutportugal.pt/pt/pampilhosa-da-serra/cultura/museu-monsenhor-augusto-nunes-pereira
Museu Monsenhor Nunes Pereira na atualidade, interior. Acedido em http://www.cm-pampilhosadaserra.pt/pages/485?poi_id=138
Quando tive o privilégio de usufruir de uma visita guiada a este pequeno/grande Museu, recolhi a folha de sala, então distribuída aos visitantes, que, na capa, apresentava uma ilustração, desenhada pelo próprio, com o aspeto exterior inicial do edifício.
Museu Monsenhor Nunes Pereira. Folha de sala, capa
e na contracapa, sobre a reprodução da sua assinatura, uma fotografia do patrono à porta do Museu.
Museu Monsenhor Nunes Pereira. Folha de sala, contracapa
Museu Monsenhor Nunes Pereira. Folha de sala, contracapa, pormenor da assinatura
No interior da folha de sala, pode ler-se um texto assinado Pe. Augusto Nunes Pereira, que diz o seguinte:
Fajão, entre a História e a Lenda
Em Junho de 1233, o Prior do Mosteiro de S. Pedro de Folques, Dom Pedro Mendes, concedeu Foral a “dez Povoadores de Seira que depois se chamou Fajão”. Foi o primeiro foral concedido por aquele mosteiro.
Os povoadores ficavam de posse das terras, para que edificassem e plantassem e cultivassem e nela fizessem o que lhes aprouvesse, apenas com a obrigação de darem ao mosteiro a décima e uma fogaça de almude da medida de Arganil e um capão au galinha, e se algum não podia dar capão au galinha daria seis denários (Cf. «Pe. Augusto Nunes Pereira. O Mosteiro de S. Pedro de Folques, in Santa Cruz de Coimbra do século XI ao século XX. Coimbra. 1984»).
O Mosteiro de S. Pedro foi fundado em Arganil no século XI e depois transferido para Folques. Era dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. Fundado o Mosteiro de Santa Cruz, pouco depois o Mosteiro de Folques foi agregado àquele, conservando, no entanto, a sua autonomia. Isto permitia-lhe gozar dos privilégios e isenções concedidas pelos reis ao Mosteiro de Santa Cruz. Pelo menos duas vezes, os moradores de Fajão protestaram contra a atribuição de fintas para melhoramentos públicos em concelhos estranhos, alegando estarem isentos disso ao abrigo daqueles privilégios. De uma das vezes a reclamação foi encabeçada por Pascoal Fernandes, de Fajão, o que terá motivado ser o Pascoal uma figura relevante nos célebres «contos de Fajão».
Estes contos são dos mais valiosos patrimónios de Fajão, como na Alemanha os «contos de Beckum», muito semelhantes aos nossos.
Mas Fajão tem outros valores. Para recolher, e para deles fazer uma força educativa, houve a ideia de criar um museu de Fajão. O seu edifício, uma antiga casa de habitação, com sua cozinha e forno, foi restaurada no gosto das antigas construções de xisto, de modo que será um incentivo para que não se estraguem outras casas do meso tipo que ainda restam na vila e na região.
Nos dois pisos reúnem-se artefactos, obras de arte e documentos históricos, havendo ainda a possibilidade de ali se realizarem, uma vez ou outra exposições diversas.
Fajão fica, por esta forma, enriquecido por um valioso instrumento educativo, que a Junta de Freguesia e os fajaenses certamente vão defender, desenvolver e aproveitar.
Pe. Augusto Nunes Pereira
Acrescento uma pequena memória extraída da pagela da missa do 7.º dia, comemorativa da sua partida, ocorrida a 1 de junho de 2001.
Pagela da misa do sétimo dia, anverso
Pagela da misa do sétimo dia, reverso
Um destes afortunados comerciantes foi Estevão Domingues. Morador na Rua dos Francos e freguês de Santiago, encontramo-lo em 1347, juntamente com sua esposa Florença Fagundes, a negociar com esta igreja a sepultura de ambos, sendo noticiado, também, que a mãe desta, Joana Fernandes, já ali estava enterrada. Não deverá ter sido este, porém, o destino último deste mercador. Ao que tudo indica, foi enterrado no mosteiro de Santa Clara, já que a filha de ambos, Clara Esteves, ali terá ingressado, razão pela qual o mosteiro reclamou um terço das posses de Estevão Domingues após a sua morte. Quando este faleceu, já era casado em segundas núpcias com Iria Esteves que, como ficamos sabendo por instrumento de 1362, terá feito o inventário dos seus bens, a fim de que a subsequente partição fosse efetuada.
Fotografia da hoje designada rua Visconde da Luz, nos inicios do séc. XX
É com base neste inventário que temos uma noção da riqueza de um mercador coimbrão de fins de trezentos. Estevão Domingues era um negociante por excelência, já que mercava panos importados, sobretudo de lã, oriundos de Flandres e da Inglaterra. Juntamente com estes, vendia também enfeites para a confecção de vestes, como fitas, fios e botões de diversos materiais. Do seu património pessoal, destaca-se um relativo conforto e abundância de artigos de cama e mesa, incluindo-se aí almofadas, colchões, cobertores, mantas, tapetes, toalhas, vasos, taças, colheres, panelas, entre muitos outros utensílios. Também nos aparece arrolado o mobiliário da casa, constituído – entre outros objetos – por cadeiras, mesas, armários, tabuleiros e uma escrivaninha, além de diversos tipos de roupas, pertencentes tanto a Estevão Domingues como a Iria Esteves. Por fim, ficamos sabendo de suas propriedades, que se resumiam, aparentemente, a casas na Rua dos Francos e uma outra na Rua dos Tintureiros.
Não era só de mercadores, no entanto, que a Rua de Coruche e a Rua dos Francos – antecessora da Calçada – eram constituídas. Desde a centúria de duzentos até meados do século XV, encontramos na documentação, além dos sempre presentes alfaiates e sapateiros, também ourives, tendeiros, cónegos, tosadores, um cutileiro, um boticário, um pintor, um barqueiro e um “homem braceiro”. Dentre os funcionários públicos e régios, ali encontramos os tabeliães Afonso Vicente, Miguel Lourenço, João Afonso e Pedro Afonso; o almoxarife Pedro Juliães. vedor da portagem Vasco Eanes e o escrivão régio Domingos Anes, o escrivão da câmara, Álvaro Gonçalves e Gonçalo Vasques, “esprivam (sic) que foy dos horphaãos”. Dentre a pequena nobreza, destacamos os escudeiros João e João Lourenço, além da própria Coroa que, como sabemos através das chancelarias e tombos, detinha algumas propriedades na área.
Finalmente, descendo até o final desta mesma via, atingir-se-ia a Portagem, ponto de partida de nossa caminhada pelas freguesias de São Bartolomeu e Santiago de finais da Idade Média.
Conclusão
Como pudemos verificar, quem se embrenhasse pelas ruas, adros e terreiros de tais freguesias no período medieval, teria contato direto com elementos de todos os extratos sociais, e testemunharia a existência de um número relativamente diversificado de mesteres e estabelecimentos de produção.
Dentre estes, merecem especial destaque os alfaiates, sapateiros e carpinteiros, presentes em toda a área, assim como os peliteiros e os tanoeiros, únicas categorias de mesteres geograficamente concentradas, instalados nas ruas que levam suas designações, na freguesia de Santiago. A freguesia de S. Bartolomeu, por sua vez, tinha como atividade predominante a produção de azeite – como nos evidencia a alta concentração de lagares na zona próxima ao rio –, e contava, também, com a presença de alguns estabelecimentos mecânicos relacionados à curtição de peles.
Dissertação. Imagem nº 22: A Praça do Comércio nos inícios do séc. XX, em vista tomada em direção a igreja de Santiago, pg. 107.
Dissertação. Imagem nº 23: A Rua do Poço, ao centro, ladeada pela Rua das Rãs, a Rua das Solas (atual Adelino Veiga) e a Rua das Azeiteiras. Seu trecho oriental, após o Beco de Santa Maria, hoje é designado por Travessa das Canivetas. Planta Topográfica de Coimbra executada pelos Irmãos Goullard, 1873-74, pg. 117.
Por fim, no eixo formado pela Rua de Coruche e a Calçada – antes denominada Rua dos Francos –, pela sua importância e grande extensão, encontravam‑se instalados profissionais de diversas categorias e grupos sociais, dentre os quais destacava-se a burguesia mercantil, que ali formava o seu reduto.
Concluindo, resta-nos reafirmar que será na Baixa que se conduzirá o desenvolvimento e se refletirá o progresso de Coimbra pelos restantes séculos do período medieval. Serão seus habitantes, homens e mulheres, mercadores e mesteres, que incrementarão o comércio e a produção, e garantirão o relevante papel da urbe no contexto do reino. Destes habitantes, tentámos obter retratos do seu cotidiano e detalhes acerca de sua identidade, revelando um pouco mais acerca destes agentes da história que, em seu conjunto, formam parte essencial do contexto socioeconómico coimbrão, no período de transição de antiga sede da corte à moderna cidade estudantil.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
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Em dias comuns, o movimento na Praça não seria muito diferente do resto dos arruamentos. Transeuntes, tendas, algumas vendedeiras, carros de bois, crianças correndo ou pombas ciscando – alimentando-se, talvez, do que havia sido deixado da última feira semanal – seriam visões comuns. Esta relativa tranquilidade, porém, não devia equiparar-se ao bulício que a Praça experienciava em tempos de feira franca.
Durante os reinados de D. Fernando e D. João I, esta ocorria de 15 de Setembro a 15 de Outubro. Coincidia com o S. Miguel de Setembro, época de colheitas e de pagamento de rendas, e a ela acorria gente de todo o termo, para comprar e para vender, constituindo-se no verdadeiro encontro entre o campo e a cidade.
Tais características faziam da feira, portanto, um vivo e colorido retrato da sociedade medieval. Era ali que o abastado burguês citadino exibia suas roupas adornadas e sua bolsa cheia de moedas, procurando pelo melhor sapato, o melhor tecido ou, talvez, alguma joia. Impressionava, com toda a certeza, o lavrador que, vindo de uma localidade recôndita nos confins do termo coimbrão, aproveitara as isenções fiscais próprias do evento para montar uma banca e vender o produto de suas colheitas a fim de obter algum lucro, que talvez fosse gasto por ali mesmo, em um novo utensílio doméstico ou peça de roupa para sua família. À sua banca, acorria, entre muitos outros, o mesteiral local, com o intuito de abastecer-se do que era necessário para as suas atividades e, no processo, surpreender-se ao passar por estrangeiros a balbuciarem uma língua estranha, vendendo panos exóticos ou outros produtos vindos de fora do reino. Tudo isto, claro, vigiado pelos oficiais do concelho, dispostos a manter a ordem e que tinham no pelourinho, situado bem ao centro da praça, tanto um instrumento de punição como um elemento representativo do poder municipal.
Reconstituição do pelourinho, na sua presumível localização quando instalado na Praça
Por fim, em frente a porta da igreja Santiago, alguns cónegos reúnem-se no alto de sua escadaria, juntamente com um casal. A meio deles, sentava-se um tabelião, rabiscando um grande livro. Era algum emprazamento a tomar forma. Foi este o caso, por exemplo, de Diogo Lourenço e Catarina Anes que, em 5 de Outubro de 1437, em plena feira, receberam de emprazamento, do Mosteiro de São Jorge, um casal e herdade em Santa Luzia, termo de Coimbra, tendo o contrato sido celebrado “ante a porta prinçipal da egreja de San Tiago”.
Dissertação. Imagem nº 8 e 9: A igreja de Santiago após a reconstrução, retratada atualmente / A capela Norte, construída no séc. XV em estilo gótico, pg. 41.
A ocasião, porém, não seria só para negócios. Era, também, a oportunidade de rever os amigos, quem sabe fazer outros novos, atualizar-se acerca das novidades e comentar os assuntos do reino, da cidade, da família, e, até mesmo, da vida alheia. Do que falavam exatamente? Não sabemos, mas podemos supor. Muito provavelmente, um assunto corrente na feira de 1395 seria, por exemplo, o do divórcio entre Afonso Fernandes e Catarina Martins. Ele, dito da Cordeirã, fora escrivão do almoxarifado, e ela, filha de Martim Lourenço, conhecido por Malha e que sabemos ter sido almoxarife de Coimbra entre 1361 e 1367. Foram casados por dez anos e eram, certamente, conhecidos dos moradores da zona da Praça, pois tinham uma casa na Rua dos Peliteiros e um cortinhal em Poço Redondo, localidade próxima.
Não sabemos o que terá causado o divórcio e, muito menos, de quem teria partido a iniciativa, se de um dos cônjuges ou se, em uma hipótese menos provável, da Igreja. Teria o ex-escrivão abandonado a esposa? Era um dos motivos que levariam a tal fim. Se assim o fosse, dar-nos-ia razões para interpretar as quinhentas libras que uma tal Catarina Beata “avia de dar ao dicto Affonso Fernandez do corregimento de pallavras que dissera do dicto Affonso Fernandez” – referidas no instrumento de partilha de bens do casal – como o possível resultado de uma pouco respeitosa observação em relação ao caso. De qualquer modo, a situação era rara e, tratando-se de personagens de alguma visibilidade, certamente terá gerado comentários.
Nesta mesma época, outro tópico que deveria estar entre os discutidos pelos habitantes da cidade seria o da insegurança durante a noite. O povo, este, já apontava culpados: os homens responsáveis pela guarda noturna. Aparentemente, o alcaide-mor, ao invés de utilizar, para este fim, funcionários conhecidos, “escriptos nos livros”, valia-se do serviço de “homees vaadios e nom conheçudos”, não sendo incomum o aparecimento, ao raiar do sol, de pessoas maltratadas e até mesmo mortas, dentre outros malefícios. Por vezes, após a descoberta destes crimes, os ditos homens abandonavam a cidade misteriosamente, sendo “de presumir que som culpados nos dictos mallafiçios ou em parte deles”. Foi este o conteúdo de uma reclamação ao rei, por ocasião das cortes de Santarém, em 1396, tendo o monarca mandado que fossem cumpridos os costumes da cidade de utilizar, para este fim, pessoas conhecidas da população.
Imediatamente acima da Praça, ao cimo das escadas que, já no séc. XIV estariam situadas imediatamente em frente ao arco da Barbacã, estava o eixo formado pela Calçada – antes Rua dos Francos – e a Rua de Coruche, um dos mais importantes da cidade. Tais artérias serviram, durante o período medieval, como reduto de mercadores, fama confirmada por fontes contemporâneas, como é o caso de um decreto fernandino, datado de 1367, que garantia privilégios, especificamente, aos “mercadores moradores na Rua de Coruche e na Rua de Francos”.
Fotografia antiga da hoje designada rua Visconde da Luz 1
Encontramo-los nas fontes desde as primeiras menções a ambas as ruas, em inícios do século XIII, tendo sido muitos deles, ao longo da Idade Média, sepultados no cercano templo de Santiago, como nos provam as diversas citações a mercadores presentes no Livro de Aniversários desta colegiada.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
À época em que se redigiu o testamento, Constança Esteves vivia na companhia de uma tal Senhorinha, a quem acabou por deixar um olival “alem da ponte na Varzea e quatro geiras de terra no campo de Mondego”, estipulando que, à morte desta, tais propriedades fossem transferidas para a Albergaria de Santa Maria de São Bartolomeu, cuja sede se situava na freguesia de Santiago. Ao lado do edifício onde estava instalada a albergaria, encontravam-se as casas que, no séc. XVI, seriam reformadas para servir de Paços do Conde de Cantanhede, e que correspondem, por certo, às doadas por D. João I, em 1390, ao prior do Hospital e Marechal do Rei, Álvaro Gonçalves Camelo.
Junto da casa que pertenceu a esta personagem, na Idade Média, corriam três ruas: a Rua dos Tanoeiros, atual Adelino Veiga; a Rua Olho do Lobo, atual Rua das Rãs e, provavelmente, a Rua dos Peliteiros, sendo as três paralelas e culminando no Arnado. Como os próprios topónimos nos indicam, por ali estariam concentrados, em finais da Idade Média, os tanoeiros, fabricantes de tonéis – destinados ao armazenamento de diversos produtos, dentre os quais, certamente, o azeite produzido na freguesia vizinha – e os peliteiros, curtidores de peles, especializados na obtenção da pelica, couro fino, de uso nobre.
Desta forma, não é surpreendente o fato de termos encontrado nas fontes testemunhos abundantes à presença destes profissionais na área, acompanhados de mercadores e, sobretudo, de sapateiros – que certamente se utilizavam do couro ali produzido – e carpinteiros, que poderiam estar envolvidos no fabrico dos tonéis. Para a Rua dos Tanoeiros, convém destacar também que, na primeira metade do séc. XV, era ali proprietário – dentre tanoeiros, sapateiros e carniceiros – o tabelião João Rodrigues, que fora criado do infante Dom Pedro, tendo sido por pedido deste ao concelho que acedera ao tabelionato, por volta de 1429.
A Rua dos Peliteiros, sobretudo, havia de ser uma artéria importante. O seu período áureo parece ter sido o século XIII e inícios do século XIV, centúria em que encontramos algumas referências a personalidades ilustres que nela, e em suas cercanias, detinham propriedades. Enumerando-as, citemos Vasco Gil, cónego de Santiago e tabelião público, que ali morou; D. Pascásio Godins, que foi deão de Viseu e de Coimbra; o chantre de Viseu e cónego de Coimbra Lourenço Esteves de Formoselha; Gonçalo Esteves, que havia sido escudeiro de D. Astrigo, raçoeiro da Sé, e Aldonça Anes de Molnes, monja de Lorvão. Próximo das casas habitadas por esta última, estariam outras, pertencentes ao seu irmão, o fidalgo Paio Anes de Molnes. Convém mencionar aqui, também, o alvazil Tomás Martins, que habitou em uma platea, na freguesia de Santiago, que poderá corresponder à Rua dos Peliteiros.
Rumando pela Rua dos Tanoeiros em direção à igreja de Santiago, atingir-se-ia, em inícios do séc. XV, a Praça. Devia parecer, nesta época, um grande terreiro de formato ainda um tanto irregular, sendo provável que não se estendesse até ao adro de S. Bartolomeu, como nos dias atuais. A meio desta, em frente a uma pequena escada encrustada no casario, já lá estava o pelourinho e, próximo dali, imediatamente ao lado da igreja de Santiago, os açougues. Em segundo plano, imponente, a muralha e suas torres.
Nos quarteirões à volta da Praça estariam em curso, provavelmente, demolições e novas edificações, no âmbito do processo de reorganização do espaço que lhe deu a configuração atual. Das que já ali estavam, algumas seriam dotadas de alpendres, como ao que renunciou, em 1455, Afonso Martins, que fora criado do infante D. Pedro, alegando ser “homem prove (sic) e meesteirosso”. Tal alpendre confrontava com casas do barbeiro Álvaro Fernandes e outras que haviam pertencido a Martim Afonso, também barbeiro e, à época, já falecido.
Dissertação. Imagem nº 16: Em azul, o traçado presumido da sota, desde a Rua de Quebra Costas até o Mondego, pg. 60
Dissertação. Imagens nº 17 e 18: O arco quinhentista / Detalhe do arco, pg. 93
A pequena concentração destes profissionais no local é entendível. Afinal, a Praça, em meados de quatrocentos, já seria um lugar relativamente central. Ademais, lembremos que os barbeiros, além de apararem a barba e o cabelo, tinham outras atribuições, dentre as quais pequenas intervenções médicas, como era o caso das sangrias. Seu local de trabalho afigurava-se, também, como um espaço de convívio masculino. No século XIV, o severo clérigo castelhano Martín Perez, por exemplo, via grande perigo no ajuntamento de homens no barbeiro, assim como, em contraponto, na concentração de mulheres nas casas de fiandeiras.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
A própria freguesia de S. Bartolomeu, no seu todo, parece ter sido, no período medieval, uma área de grande importância na produção deste óleo, dada a quantidade de lagareiros que aparecem na documentação, estando tais estabelecimentos, por vezes, na posse de membros ilustres da sociedade.
Dissertação. Imagem nº 20 e 21: No centro, a Praça, representada em planta de finais do séc. XVIII, no mapa das Antigas freguezias./ A Praça do Comércio na década 40 do séc. XX, em vista tomada em direção a igreja de S. Bartolomeu, pg. 106
Dissertação. Imagem nº 25: A divisão atual dos lotes da Praça.
Caso notório é o do nobre Fernando Fernandes Cogominho. Em 1258, juntamente com sua mulher, Joana Dias, e as irmãs desta, Teresa e Mor Dias, vendeu a D. Boa Peres, mãe das ditas donas, os quinhões que possuíam nuns lagares de azeite, situados na dita freguesia, que lhes terão ficado de herança após a morte do pai, Vicente Dias.
Confrontando com estes lagares a sul, estava um terreno que havia pertencido a Martim Anes de Aveiro, justamente o mais antigo tabelião público de Coimbra de que se tem notícia, tendo sua existência sido documentada desde pelo menos 1199, e como ocupante daquele cargo, desde 1219. A história deste tabelião confunde-se, também, com a da própria freguesia, já que ao falecer, em 1227, foi sepultado na igreja de S. Bartolomeu, deixando-lhe bens e nela instituindo uma capela.
Ainda na Rua de S. Gião, confrontando de um dos lados com a dita “Estrebaria da Rainha”, estava um cortinhal pertencente a Constança Esteves. Era então viúva do almoxarife Afonso Anes, e ambos tinham sido proprietários de umas casas e de outro cortinhal nesta mesma rua, doados, em 1363, à igreja de Santiago, de onde eram fregueses. Em 1397, certamente em idade avançada, redigiu seu testamento, onde expressa o desejo de ser enterrada nesta igreja junto ao marido, já aí sepultado, com a particularidade de, no primeiro dia após sua morte, ser velada na Sé – de onde então era freguesa – já que as casas em que morava eram “pequenas e estreytas”.
Não sabemos se a viúva ter-se-á mudado para a paróquia sede após a morte do marido, ou se seria dali originária. É percetível, no entanto, a relação afetiva com o Arrabalde, local que certamente habitou e onde, segundo indicam as fontes, ainda teria o que lhe restava da família, já que não encontramos em seu testamento indícios de que tivesse filhos ou netos vivos. Assim sendo, Constança Esteves faz questão de deixar cem libras a Catarina Esteves, uma de suas sobrinhas, casada com João Gil, alfaiate, a quem encontramos, em documento de 1373, em posse de casas a par da igreja de S. Bartolomeu, onde possivelmente residiam. A viúva também não esqueceria o sobrinho-neto, João, filho do casal, a quem deixa outras cem libras com destino louvável: “pera liuros E pera quem ho emsynarem (sic)”.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
Para quem decidisse rumar a norte, uma opção seria uma estreita rua que nascia no adro, em frente à porta lateral do templo, e que seguia para a freguesia de Santiago. Era a Rua dos Prazeres, atualmente denominada de beco, e que na Idade Média seria uma longa via pela qual também se tinha acesso ao atual Largo do Romal – então um terreiro de proporções desconhecidas – os dois espaços formando, nos séculos XIV e XV, uma espécie de bairro eclesiástico. É o que as fontes nos dão a entender, já que são abundantes, para estas datas, os testemunhos sobre clérigos na posse de casas nesta área, pertencentes, na maioria das vezes, ao cabido da igreja de São Bartolomeu.
Dissertação. Imagem nº 12 e 13: O adro de S. Bartolomeu, somente com a planta da igreja medieval. Destacado em vermelho, o casario medieval ainda existente na Rua Sargento-Mor / As casas medievais, no centro, vistas a partir do Adro de Cima, pg. 55
Dissertação. Imagem nº 14 e 15 – Em linhas negras, o provável perímetro ocupado por casas antes da construção da igreja barroca / Edifício medieval da Rua Sargento-mor, pg. 56
Era o caso de João Gomes, raçoeiro; João Domingues, capelão; Vasco Peres, prioste, e dois priores, Sancho Garcia e Raimundo Beltrães. Acerca deste último, algum tempo após sua morte surge nas fontes, executando seu testamento, o seu filho Diogo Beltrães, fruto de um relacionamento do prior com sua “servente”, Maria Anes, e aparentemente um dos muitos exemplos de filhos resultantes do concubinato no seio do clero português medieval.
Era vulgar na Idade Média que padres vivessem, temporária ou permanentemente, com amantes, pelo que a aparição de Diogo Beltrães em uma série de documentos lidando com os assuntos do pai é indício desta relativa normalidade. O problema de sua ilegitimidade, por sua vez, foi resolvido logo em 1400, quando teve seu nascimento legalizado por meio de uma carta de legitimação de D. João I e, em 1416, ao decidir que se manteria na posse, dentre outras propriedades, de uma casa na Rua dos Prazeres, até invocou o fato de a decisão ter sido tomada após um aparentemente custoso acordo entre seus irmãos, “por partirem dentre si grandes ódios e malquerenças e grandes custas e despesas que se sobr´ello podiam segir e segia e pera ficarem amigos”, indicando, assim, que talvez não fosse o único fruto da relação. Neste mesmo documento, aparece como raçoeiro de S. Cristóvão, o que comprova-nos, definitivamente, que seguira os passos do pai.
Sua mãe, porém, não teve o mesmo tratamento condescendente por parte dos clérigos de S. Bartolomeu. Não parece ter sido excomungada nem presa, como as leis da época o exigiam, mas, após a morte de Raimundo Beltrães, continuou a utilizar um cortinhal que este tinha de emprazamento, situado no Romal. A situação duraria pouco, e os cónegos logo reclamariam a devolução da propriedade, conseguida após processo judicial, muito embora seja mencionado que Maria Anes estaria disposta a apelar para Braga. Não sabemos se tal recurso terá surtido algum efeito.
Ainda acerca do Romal, sabemos que, para além de clérigos, na centúria de trezentos eram proprietários nos seus entornos, também, alfaiates, uma padeira e até mesmo tabeliães, caso de Martim Bravo e Vasco Afonso, bem como o escudeiro Diogo Álvares e João Esteves, escrivão dos contos do rei.
Ao atravessar o terreiro que constituía o Romal, chegar-se-ia então à Rua de S. Gião, onde a visão mais comum seria, certamente, a de ânforas e tonéis, manuseados e transportados por almocreves como Bartolomeu Martins, ali proprietário. Com efeito, mesmo ainda sem a designação atual de Rua das Azeiteiras, nela podemos identificar, segundo documentação dos séculos XIV e XV, uma primitiva concentração de lagares de azeite, produto que, em finais de trezentos, constituía a principal riqueza de Coimbra. Fernando Afonso, lavrador, e sua esposa, Margarida Domingues, até escambam, em 1375, duas jeiras de terra nos campos do Mondego por uma antiga casa térrea – chamada “Estrebaria da Rainha” – naquela via, com a intenção de nela montar um estabelecimento deste tipo.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
De volta à Portagem, após o pagamento dos devidos direitos, um viajante recém-chegado à cidade certamente optaria, ou seria recomendado, a seguir em direção às freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. Em um decreto de D. Fernando, datado de 1377, o rei acatava um pedido do concelho – decerto dando continuidade a um costume já existente – de que as estalagens se localizassem na área destas duas paróquias.
Dissertação. Imagem nº 4 e 5: Igreja de S. Bartolomeu localizada em uma vista de Coimbra, de 1855/ Provável representação da igreja de São Bartolomeu na vista de Coimbra de Pier Maria Baldi, 1669, pg. 38.
Uma rota possível em direção ao centro destas freguesias seria pela Ribeira – denominação medieval da área beira-rio situada na margem esquerda do Mondego – ladeando o famoso Arnado. Uma visão inevitável para quem por ali passasse seria a dos barcos ali estacionados. Sabemos, por exemplo, que na segunda metade do séc. XIV, os barqueiros Estácio Martins e André Vicente tinham propriedades nas proximidades, assim como, provavelmente, o pescador Vasco Paiola. André Vicente, especificamente, recebera de emprazamento um cortinhal na Ribeira ao qual Lourenço Martins, “Desbarbado” de alcunha, tinha renunciado. “Nom podia manter o dicto cortinhal porque era ja homem velho e pobre”, alegava.
Também próximo ao rio Mondego, abundariam os estabelecimentos mecânicos. Em toda zona da Ribeira e na Rua da Ponte, temos notícia da existência de lagares de azeite, pelames e alcaçarias, algumas destas últimas pertencentes à confraria dos Sapateiros.
Dissertação. Imagem nº 11: Em preto, o traçado presumido para a Rua da Ponte, em azul o para a “rua que vai para a ponte”, pg. 48.
Trabalhos duros e sujos, por vezes exalando cheiros incómodos, estariam situados junto ao Mondego não somente dada à necessidade ocasional do uso da água como força motriz, assim como pela facilidade de escoamento das impurezas geradas por tais atividades. Isto, conjugado com a proximidade à sota – canal de esgoto que atravessava a Ribeira de S. Bartolomeu, rumo ao rio, correndo provavelmente em vala aberta – e a natural imundície das ruas medievais resultaria, certamente, em um local desagradável e insalubre.
Tal situação, porém, não impedia que figuras de diversas camadas da população habitassem e fossem proprietários na região limítrofe ao rio. Sabemos que, próximo de uns lagares de azeite na Rua da Ponte, estavam as casas de Afonso Peres, porteiro do bispo. Confrontando com uma estrutura não identificada designada de Pedernedo, situada nesta via, estavam as casas de João de Alpoim e, na Rua da Sota, morou Vasco Martins, porteiro do concelho. Por fim, Martim Domingues, senhor do Hospital de Ceira, e Vasco Garcia, escudeiro, também detinham ali propriedades.
A Rua da Sota, segundo a hipótese que avançámos em nossa dissertação de mestrado, corresponderia, na Idade Média, à atual Rua dos Esteireiros e, portanto, desembocaria no adro da igreja de S. Bartolomeu. Centro nevrálgico da freguesia, aqui também encontrar-se-ia, caminhando por entre as campas que rodeavam o templo, entrando e saindo da igreja, ou simplesmente à porta de suas casas, indivíduos de extratos sociais diversificados. Em finais do séc. XII, temos notícia que ali teria propriedades o moedeiro e alvazil D. Telo, enquanto que, para o século XIV, chegam-nos testemunhos de clérigos ali residentes, como Gonçalo Peres, prior de Ceira e raçoeiro de S. Bartolomeu, assim como homens do rei, caso de Estácio Anes e Diogo Peres.
Porém, a maioria dos que habitavam nas imediações do adro parecem ser mesteirais, com a presença de alguns mercadores. Sobre os primeiros, as fontes falam-nos, para os séculos XIV e XV, sobretudo, em sapateiros, alfaiates e carpinteiros. Encontramos também uma oleira, Maria Peres, que deixou em testamento, à colegiada de S. Bartolomeu, as casas em que morava, situadas no local. Teria criado junto de si uma rapariga, de nome Catarina Carnes, a quem recompensou, juntamente com uma tal Constança, com uma casa em Cabo de Cavaleiros, “com esta condiçom que a dicta Costança ensigne a tecer a dicta Cathelina Carnes”. Por fim, fazendo jus a determinação outorgada por D. Fernando décadas antes, convém citar Gonçalo Seco, “estalageiro”, presente como testemunha, em finais de trezentos, em dois atos celebrados na igreja de S. Bartolomeu, indício de que talvez seu estabelecimento ficasse por perto.
Augusto, O.C.G.S. A Baixa de Coimbra em finais da Idade Média: Sociedade e cotidiano nas freguesias de S. Bartolomeu e Santiago. In: Revista de História da Sociedade e da Cultura, 13 (2013). Acedido em https://www.studocu.com/pt/document/universidade-de-coimbra/historia-da-cidade-de-coimbra/apontamentos/a-baixa-de-coimbra-em-finais-da-idade-me-dia/8576144/view
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