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Folheando, tempos atrás, dois catálogos impressos aquando da realização de exposições de fotografias antigas de Coimbra, pertencentes à coleção de Alexandre Ramires, escolhi, de entre muitas que ali observei, três que me pareceu interessante divulgar.
A primeira diz respeito à Sé Velha e foi retirada de Revelar Coimbra. Os inícios da imagem fotográfica em Coimbra. 1842-1900, Lisboa, Instituto Português de Museus, 2001, imagem 48.
Sé Velha antes do restauro
A vetusta catedral conimbricense encontrava-se em franca deterioração e António Augusto Gonçalves, a alma, o mestre, o mentor da Escola Livre das Artes do Desenho tudo fez para que uma intervenção de fundo, capaz de preservar as velhas pedras de séculos, se viesse a concretizar.
As obras iniciaram-se a 30 de janeiro de 1893 e o portal principal foi intervencionado, já em 1898, por José Barata, que se encarregou de esculpir as colunas e por João Machado que tomou sob a sua responsabilidade o trabalho das almofadas. Eram dois artistas formados pela referida Escola e que integravam aquela “plêiade de rapazes que começavam a fazer lembrar a idade áurea da Coimbra artística do século XVI”.
A imagem leva-nos ainda a reparar na atual falta de harmonia existente no edifício, resultado do desaparecimento do terraço. Gonçalves reduziu a área desta plataforma e os Monumentos Nacionais, na reforma levada a cabo em meados da centúria de XX, sumiram-na. Filosofias de restauro mais do que discutíveis que não cabe aqui analisar.
Uma chamada de atenção para a torre sineira, um acréscimo à construção primitiva, que albergava o chamado sino balão, levado para a Sé Nova e a existência de dois janelões laterais também abertos nas grossas paredes dos inícios. No interior da Sé acolhiam-se indivíduos fugidos à justiça régia, os homiziados, pois ali, tal como na zona das lajes, isto é no terraço que circundava o templo, existia o chamado “direito de asilo”.
A segunda imagem refere-se à Praça de Sansão, atual Praça 8 de maio e foi retirada de Passado ao espelho. Máquinas e imagens das vésperas e primórdios da photographia, Coimbra, Museu de Física da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2006, p. 60.
Praça de Sansão mercado
A Praça de S. Bartolomeu, Praça Velha ou Praça do Comércio era um dos locais onde, em Coimbra, se realizavam as trocas e a venda de produtos. A partir do momento em que este espaço se tornou exíguo para responder às necessidades da população aeminiense, a comercialização, sobretudo de aves e de grãos, transferiu-se, num primeiro momento, para a Praça de Sansão, atual 8 de maio. Posteriormente este “mercadinho” deslocou-se para a zona fronteira à esquadra da PSP e, e depois de 1867, instalou-se definitivamente mercado D. Pedro V.
À direita, a igreja de S. João, paroquial da freguesia de Santa Cruz (atual café), já se encontrava desativada, fora desamortizada e ali funcionava, ao tempo, um Armazem de Tecidos.
A fotografia é anterior a 1876, porque nesse ano se iniciou a construção do edifício da Câmara Municipal de Coimbra que aniquilou a parte esquerda do mosteiro, ainda intacta na imagem.
A terceira imagem que nos chamou a atenção é uma “Panorâmica de Coimbra” e encontra-se no catálogo Revelar Coimbra…, imagem 14.
Vista geral, 1860 c.
A foto, da autoria de Alfred Fillon, foi tirada c. de 1860. Numa rápida amostragem diremos que nela se pode ver, à direita, a ponte de pedra sobre o rio Mondego, o Largo da Portagem, a zona da Universidade com o Observatório Astronómico, riscado por Manuel Alves Macomboa, erguido na extremidade do Pátio e o complexo que pertencera outrora aos Jesuítas; mais para a esquerda fica a Torre de Anto, o Colégio da Sapiência e a Torre dos Sinos do mosteiro de Santa Cruz.
Visível ainda na imagem a Rua da Sofia com alguns dos seus muitos colégios e, mais em cima, uma estranha estrutura que deve ser constituída por muros da cerca de alguns colégios e suportes murados a formar socalcos que suportavam um frondoso olival outrora ali existente.
António Augusto Gonçalves, que fora, como se referiu, o responsável pelas hospedarias e que trabalhava com o prelado na intervenção da Sé Velha, incumbiu-se de projetar a nova fábrica eclesial.
Senhor da Serra. Hospedarias
A construção do templo, que se processou em duas fases, iniciou-se em 1900 ... Quatro anos depois (Agosto de 1904), a nave e o campanário já se encontravam concluídos. O antigo templo setecentista permaneceu no meio da nave e só quando esta se finalizou é que o demoliram ... em 1907, Gonçalves desloca-se ao Senhor da Serra, a fim de, in loco, observar a obra que se andava a fazer; tratava-se da conclusão da capela-mor e dos anexos.
... Caracterizar estilisticamente a igreja que se ergueu nos primeiros anos de Novecentos no Senhor da Serra, torna-se tarefa difícil, direi mesmo quase impossível, porque ela não apresenta unidade. Mas, quem melhor a descreveu foi o seu autor quando disse que “não houve nunca o propósito de construir uma Capela que fosse escrava dum estilo. Teve-se apenas em vista uma construção agradável. Quem olhar para o esguio da torre supor-se-á em frente dum gótico flamejante; quem examinar os capitéis e cachorros julgar-se-á em frente duma construção românica. O forro do corpo da capela é dum certo sabor românico mas já o da capela-mor, apainelado como é, parece do século XVII”.
Capela do Divino Senhor da Serra
Construiu-se a capela, mas estava despida, nua e fria: sem mobiliário. Ornamentá-la e inserir-lhe retábulos tornava-se imperioso. Em Coimbra procedia-se, na altura, à demolição da igreja da Misericórdia velha ... Os dois retábulos laterais existentes no templo deixaram de ter serventia, ficaram desativados, acabando por ser comprados para o Senhor da Serra ... Um dos retábulos ficou povoado com o seu orago, o Cristo Redentor, mas para o outro, João Machado, “que tantas e tão repetidas vezes tem assinalado o prestígio da escola coimbrã com produções geniais e de verdadeiro triunfo para o seu conceituado nome” esculpiu uma imagem da Senhora da Piedade ... na abside faltava o retábulo-mor. Mais uma vez, António Augusto Gonçalves é o responsável pelo projeto e, em 1908, durante o tempo em que decorreu a romaria (Agosto), o esboço aguarelado esteve exposto, a fim de ser ratificado por todos quantos passavam pelo Senhor da Serra.
... Lateralmente, em dois nichos de maior envergadura, aparecem, cada um por banda, S. Pedro e S. Paulo que se encontram, respetivamente, ladeados por uns outros menores povoados por Santo Agostinho e São Jerónimo e por Santo Ambrósio e São Gregório Magno.
Capela do Divino Senhor da Serra. Retábulo-mor
... No novo templo, a erguer-se lá no píncaro da serra, havia que tentar imitar os tempos de outrora; por isso, nas oficinas da Escola Brotero, o químico Charles Lepierre, então professor naquele estabelecimento de ensino, tentava produzir, com os seus alunos, as vidraças brilhantes capazes de tornar intimista a igreja e de lhe conferir espiritualidade. Deparam-se com inúmeros problemas impeditivos de concretizar a empresa, mas, mesmo assim, ainda colocam nas ventanas os vitrais que representam os quatro evangelistas e no óculo o do “Divino Salvador”.
... As oficinas da Brotero, relativamente à igreja do Divino Senhor da Serra, funcionaram como verdadeiros laboratórios, pois também foi aí, nas de cerâmica, que António Augusto Gonçalves deu corpo ao lambril de azulejos que reveste a nave, historiados com a vida de Cristo. Parece-me poder deduzir, através da consulta do seu acervo e da da imprensa local, que eles foram assentes em duas etapas. A primeira, e mais vasta, decorreu até cerca de 1913 e a segunda, em 1919-1920.
E penso assim, porque na Gazeta de Coimbra se pode ler: “com destino à capela do Senhor da Serra acabam de sair das oficinas de cerâmica da Brotero dois belos paneaux representando os quadros “Ecce Homo” e “Flagelato pro nobis” cujo desenho se deve ao notável artista conimbricense António Augusto Gonçalves. É mais uma produção que honra sobremaneira as oficinas da Escola Brotero e também a arte coimbrã”.
Anacleto, R. 2011. O Senhor da Serra: arte e património, In: Santuário do Divino Senhor da Serra de Semide. História, devoção e espiritualidade, Semide, Senhor da Serra, p. 9-47.
De seu nome completo José dos Santos Sousa Barata, foi sócio fundador e um dos primeiros e dos mais ilustres alunos da Escola Livre das Artes do Desenho fundada em 1878 por António Augusto Gonçalves de quem foi um discípulo dileto.
Joaquim Martins Teixeira de Carvalho refere ainda que foi aluno da Escola Brotero e discípulo de João Machado.
Na Exposição de 1884, expõe um busto da Vénus de Milo, estudo feito em pedra de Outil, obra que foi premiada.
A primeira grande obra conhecida em que participou data de 1886 e foi a casa neomanuelina da Rua do Corpo de Deus.
A partir de 1897 colabora na obra do que é hoje o Palace Hotel do Buçaco, sendo referido em O Conimbricense, de 8 de Julho de 1899 como um dos artistas que mais se têm distinguido pela mestria e perfeição com que têem executado delicadissimos lavores em pedra.
Em 1898, em parceria com João Machado e sob a batuta de António Augusto Gonçalves, interveio no restauro do pórtico principal da Sé Velha.
Em 1904, Joaquim Martins Teixeira de Carvalho refere-o como um dos artistas conimbricenses que trabalha nas obras do Palácio da Regaleira, em Sintra, afirmando, que lavra como nenhum outro artista portugues, em estilo manuelino
Em 1916 esculpiu a fonte do palacete Garcia (hoje Vila Marini).
Fonte do Palacete Garcia
Em 1927 concluiu a magnifica pia batismal da igreja de Santo António dos Olivais.
Pia batismal da igreja de Santo António dos Olivais
No Despertar de 26 de Fevereiro de 1930 é referido numa nota necrológica: Decorador distinto do manuelino, tendo também executado diversas esculturas, deixou espalhada pelo país (Buçaco, Sintra, etc.) obras admiráveis de beleza e elegância. A pia batismal da paróquia de Santo António dos Olivais, a ornamentação de um prédio na Rua Alexandre Herculano e um jazigo em manuelino foram as suas últimas obras, revelando nelas o seu talento de artista, José Barata, pode também dizer-se, foi quem melhor interpretou o estilo manuelino.
Nota: Esta entrada só foi possível pela investigação e disponibilidade da Senhora Professora Doutora Regina Anacleto que, para a mesma, me cedeu as fotografias e as suas fichas referentes a José Barata.
O meu profundo agradecimento.
José da Fonseca, apesar das reais potencialidades artísticas reveladas ao longo da sua existência, tem sido votado a um certo esquecimento, talvez nem sempre casual.
O artista nasceu em Coimbra, a 20 de Fevereiro de 1884, e iniciou os seus estudos artísticos na então Escola Industrial Brotero ... Fonseca concluiu o seu curso na Escola Brotero com alta classificação, mas «apesar de já então estar na posse de apreciável técnica e apto a produzir e a criar na difícil atmosfera das artes (...) tomou novas lições com mestre António Augusto Gonçalves», o que equivale a dizer que frequentou a Escola Livre. Além disso, foi discípulo de João Machado e na sua oficina aperfeiçoou os ensinamentos adquiridos no estabelecimento de ensino estatal.
... O arquiteto-pintor italiano Luigi Manini ... foi incumbido, cerca de 1890, de projetar o conjunto dos edifícios onde se integraria o Palace Hotel do Buçaco ... Aos artistas canteiros de Coimbra, ligados à Escola Livre das Artes do Desenho, foi-lhes entregue o lavor da pedra e José da Fonseca, ainda muito jovem, integrava a companha
... Na charneira do século, o Dr. Carvalho Monteiro, vulgarmente apelidado de Monteiro dos Milhões por via da sua enorme fortuna, depois de ter comprado em Sintra (na estrada dos Pisões) aos herdeiros da baronesa da Regaleira, a quinta do mesmo nome, encomendou o projeto do palacete e de alguns outros edifícios a construir na, herdade ao cenógrafo italiano.
... Manini havia lidado de perto com o trabalho realizado, no Buçaco pelos artistas conimbricenses, e não teve rebuços em os aliciar para que fossem também eles a lavrar a pedra desta sua nova construção.
Alguns canteiros deslocaram-se a Sintra e por lá se quedaram, enquanto o trabalho não escasseou, para, posteriormente, regressarem à sua cidade ou se fixarem em Lisboa; outros lavraram a pedra em Coimbra e enviaram-na através do caminho-de-ferro, a fim de ser armada no local. José da Fonseca acabou por se radicar na vila, onde organizou a sua vida pessoal e montou oficina.
Mestre Fonseca acompanhou os trabalhos da Regaleira, pode bem dizer-se, desde o princípio até ao fim.
José da Fonseca. Quinta da Regaleira fogão
O lavrado da pedra, algumas estátuas e a magnífica chaminé da casa de jantar, saíram do seu cinzel. Esta última, desenhada por Manini, joga com os apelidos do proprietário: Carvalho e Monteiro. Coroa o conjunto, que quase esmaga pela sua sumptuosidade excessiva e pela falta de equilíbrio existente entre a peça e a parede onde se inscreve, a estátua de um caçador. Na parte superior do fogão de sala, surgem cavalos, cães, figuras humanas e vegetação, completamente isolados do fundo, demonstrando por parte do artista grande domínio da técnica de trabalhar a pedra.
... A partir de 1928, participa nas Exposições da Sociedade Nacional de Belas-Artes com bastante assiduidade; a imprensa e o público nota-o, a coletividade confere-lhe prémios, Em 1932, na 25.a Exposição, apresenta o trabalho intitulado Lóki; quatro anos mais tarde, na 33.a expõe o grupo Náufragos; e, no Salão Primavera da 42.a Exposição, levou às gentes da capital o Busto de Senhora e o grupo designado por Surpresa. Este conjunto de nus foi posteriormente, em 1947, apresentado também numa exposição coletiva que teve lugar no Palácio Valenças, em Sintra. A escultura era particularmente notável pela sua plasticidade, riqueza rítmica e possuía ainda a envolvê-la «um sopro de sensualidade» .
José da Fonseca trabalhou em Sintra durante mais de quatro décadas, até ao seu falecimento, ocorrido em 13 de Dezembro de 1956.
Anacleto, R. Dois fontanários do concelho de Sintra esculpidos pelo mestre-canteiro José da Fonseca, In Boletim Cultural, 90, 1.º e 2.º tomos. Lisboa, Assembleia Distrital de Lisboa, 1984/1988, p. 105-124.
Nasceu no lugar e freguesia de Santa Maria de Almacave (Lamego), em 1876. Pertencia a uma família de artistas, pois um seu um bisavô era canteiro; o avô materno, entalhador; o avô paterno e o pai, serralheiros. Em Outubro de 1897, a seu pedido e porque era sargento espingardeiro, foi transferido do Regimento de Infantaria 13, com sede em Lamego, para o 23, que ocupava, em Coimbra, o antigo convento de Sant’Ana.
Depois de se fixar nesta cidade, ele que era serralheiro artífice, conviveu com os artistas e fez-se amigo de João Machado, tendo começado a aprender modelação na sua oficina.
Entretanto, com a reabertura da Escola Livre, em 1904, passou a ser discípulo de Mestre Gonçalves e, posteriormente, frequentou a Escola Industrial.
Quando morreu, no dia 15 de Dezembro de 1952, tinha 76 anos e morava no Tovim de Baixo.
É com os ferros do fogão da casa dos Patudos, que Chaves inicia a sua carreira. O gótico, o manuelino, o renascimento, o rococó, não tinham segredos para o forjador. O artista apresentou, como referi, as ferragens (suporte, tenaz e pá), correspondentes ao fogão executado por João Machado ... Tratava-se de uma obra para ser admirada “pela elegancia nervosa com que foi concebida e executada, torcendo e levantando o ferro com o cuidado delicado de um ourives”. Os ferros do fogão “poder-se-iam fazer com o mesmo desenho em prata martelada, sem necessitar mais elegância no desenho, mais delicadeza na execução” .
Anos mais tarde, em 1919 ... um candelabro, executado de acordo com o gosto pompeiano ... No ano seguinte ... uma segunda obra de vulto: agora tratava-se de uma braseira, que seguiu o mesmo gosto estilístico da peça anterior . Mas, desta vez, o artista auferiu uma dupla consagração, porque o trabalho foi mostrado aos conimbricenses na sala romana do Museu Machado de Castro e, depois, em Lisboa, seria exposto pelos possuidores das suas peças, “que assim lhe queriam dar uma prova de admiração”.
Em 1924, a mesma sala romana do Museu Machado de Castro abre-se novamente para apresentar o chamado Lectus, obra em ferro forjado ... Esta peça é uma verdadeira joia de ferro, “que tanto honra o nome [do artista] e que nos enche de orgulho por ser executada em Coimbra, terra de arte, graça e beleza!” . Juntamente com o canapé expôs um lampadário.
Depois da guerra de 14-18, começou a desenvolver-se, um pouco por todo o país, o culto aos Mortos da Grande Guerra. As entidades responsáveis determinaram que, numa grande manifestação nacional, fossem trasladados para o Mosteiro da Batalha, os restos de um desses heróis.
Em Coimbra, e mais concretamente no Quartel-general, despontou um movimento no sentido de ser colocado um lampadário condigno na casa do capítulo, junto do sarcófago que deve guardar os despojos do soldado desconhecido. Para concretizar esta ideia, foi aberta uma subscrição, que, num primeiro momento se pensava estender a todas as unidades militares do país, mas posteriormente limitada à contribuição dos oficiais, sargentos e praças da 5.ª divisão do Exército, com sede em Coimbra.
Lourenço de Almeida. Chama da Pátria (desenho de António Augusto Gonçalves)
Desde logo ficou assente que o lampadário, mais tarde denominado Chama da Pátria, fosse executado por Lourenço Chaves de Almeida, que até era militar.
O lampadário, que foi batido dentro do estilo gótico e mede 1,80 m de altura, foi exposto ao público no átrio da Câmara Municipal de Coimbra ... em Lisboa e depois, em Viana do Castelo, na altura em que ia ser imposta a Cruz de Guerra à bandeira que, em França, fora oferecida à brigada do Minho .
O lampadário seria colocado no Mosteiro de Santa Maria da Victória no dia 28 de Junho, data da assinatura do tratado de paz.
Seja-me ainda permitido referir, em 1930, a encomenda de um candelabro de 30 luzes, feita pelo presidente da Comissão Administrativa do município de Coimbra, a fim de ser colocado no salão nobre.
Anacleto, R. 1999. Ourives Conimbricenses do Ferro na primeira metade do século XX. Conferência nas I Jornadas da Escola do ferro de Coimbra. In publicado Munda, n.º 40, p. 21-25
Coimbra, nos finais do século passado (XIX) e inícios deste (XX), apenas saía da pacatez que a envolvia, quando festejava qualquer santo da sua devoção, quando se realizavam as tradicionais feiras ou quando aqui se deslocavam personalidades, quase sempre, do foro político ou cultural. Nessa altura, o quotidiano das gentes do burgo sofria alterações.
Na urbe, grosso modo, intelectuais e artífices movimentavam-se em quadrantes espaciais diferentes e, enquanto os primeiros gravitavam em torno da velha alcáçova, os segundos haviam-se instalado na zona baixa, já fora de portas, em ruas estreitas, que se desenrolavam circularmente em torno dos já inexistentes muros, apenas a adivinharem-se no perímetro urbano da cidade.
Mas, em Coimbra, o desenvolvimento industrial era lento e penoso, até porque se tratava de uma terra quase provinciana, de parcos recursos económicos, onde muito pouco havia para investir.
Mesmo assim, nos finais de Oitocentos, existiam na cidade fábricas de fiação e tecelagem, de sabão, de lanifícios e de cerâmica e, para além destas, O Conimbricense, ainda referia as de massas, as de moagem e as padarias.
A fundição e a serralharia apresentavam então um certo desenvolvimento, não só porque os estabelecimentos existiam em número considerável, como eram credenciados, uma vez que recebiam “numerosas encomendas para esta cidade, e para fora d’ellla”. Contudo, parece-me que estas oficinas gravitavam em torno de trabalhos que se relacionavam, essencialmente, com as necessidades do quotidiano, com a lavoura e com os transportes.
... A tradição artística coimbrã assentava as suas bases na pedra, não no ferro. Deste, nos alvores do nosso século, e, pese embora, a existência de vários estabelecimentos ‘industriais’ deste ramo.
Palácio da Justiça. pórtico
... a Exposição Universal de Paris atraía sobre si as atenções de todo o mundo civilizado. António Augusto Gonçalves não podia ficar indiferente a esta manifestação... A secção de serralharia fascinou-o!
...No regresso, questionava-se acerca do caminho a trilhar, a fim de modificar este estado de coisas e sonhava desenvolver, em Coimbra e com o ferro, uma arte que atingisse nível similar ao da pedra; acabou por confiar o desejo ao Dr. Joaquim Martins Teixeira de Carvalho, o bom Quim Martins, que tanto ajudou, com a pena e com a amizade, os artistas mondeguinos e transmitiu-o também a João Machado, o burilador para quem a pedra não tinha segredos.
A ideia foi germinando e o artista, um belo dia, com quatro pedras, improvisou, ao canto da sua oficina, uma incipiente forja, a fim de tentar manufaturar um florão, destinado a servir de puxador de gaveta. O ferreiro a quem pedira emprestados os utensílios necessários, veio ver e ensinou-o a bater o ferro. Machado entusiasmou-se e pôs de parte, durante algum tempo, o seu amor pela pedra; chegou mesmo a debuxar e a forjar algumas peças.
Assim ressurgiu, em Coimbra e acalentada pela Escola Livre das Artes do Desenho, uma arte que, durante longos anos, sofrera as consequências do desprestígio; a sua certidão de batismo, que não a de nascimento, foi passada quando Manuel Pedro de Jesus bateu, segundo um desenho e com direção de António Augusto Gonçalves, uma grade para o monumento funerário que então se erigiu no cemitério da Conchada em memória de Olímpio Nicolau Rui Fernandes.
Anacleto, R. 1999. Ourives Conimbricenses do Ferro na primeira metade do século XX. Conferência nas I Jornadas da Escola do Ferro de Coimbra. In publicado Munda, n.º 40, p. 1, 4, 7-9
... na Igreja se gerou um desequilíbrio e S. João Baptista continuava sem morada condigna. Mas a solução surgiu.
Consultando os já citados livros de Receita e Despesa pertencentes a João Machado, deparamos em 1908 com a seguinte nota: «Contractei com o Reverendo Parocho da Freguezia de Santa Cruz ... um retabulo em pedra d’Ança, destinado á Senr.ª das Dôres.
Dedicado a Nossa Senhora das Dores, este altar, assim como o que com ele emparceira a ladear o arco cruzeiro, dispõe-se, a partir da mesa, em três corpos
... Faz parte do primeiro a predela, destacando-se na parte central dois nichos com a Descida da Cruz e a Morte da Virgem; são moldurados por pequenas pilastrinas que terminam em capitéis coríntios e têm a ligá-las um arco semi-circular. O seu remate, bem como todo o conjunto, sem ser um pastiche, é nitidamente influenciado pelo púlpito crúzio. Fitas, folhas, flores e outros elementos comuns ao estilo, normalmente estilizados
... Separando as edículas surgem, sob dosséis renascentistas adossados, três pequenas esculturas: Sant' Ana, São Teotónio e Santa Comba, esta última a «estorcer-se na angustia do martyrio».
Ladeando o conjunto e como que a emoldurá-lo, podemos observar dois quadros representando respectivamente o Baptismo de Cristo e a Visão Mística de Santo Antônio ... O corpo central, rematado por uma cornija, destina-se a albergar na edícula, delicadamente esculpida, a imagem do orago. Ladeiam-na dois colunelos elegantemente afusados que suportam as imagens de São Pedro e São Paulo. Emoldurando o conjunto, dois anjos prostram-se diante dos símbolos da Paixão de Cristo e, à boa maneira renascentista, os medalhões que representam, e fazemos a identificação com certas reservas, São Mateus e São Lucas, completam-no.
Cristo a abençoar, ao centro do terceiro corpo, remata a composição.
Não foi por acaso que estes dois retábulos do início do século surgiram em Santa Cruz de Coimbra, eles inserem-se num movimento mais vasto. O interesse pelo restauro, aformoseamento e até conclusão, quando foi caso disso, de monumentos antigos, tornou-se uma constante em toda a Europa na época romântica; mas em Portugal e mormente em Coimbra, esta movimentação fez-se mais tardiamente.
A cidade, em quinhentos, fora alfobre de artistas e o estilo renascentista assentou arraiais no burgo. Os novos lavrantes da pedra, limitados aos horizontes que os rodeavam, olharam para a arte de antanho e, sentindo-a e vivendo-a, interpretaram-na a seu modo. Fizeram assim com que em Coimbra, na sua e nossa cidade, surgisse, dentro do revivalismo do período, o neorrenascença. É caso único. Não se lhe conhece paralelo.
Anacleto, R. 1984. A obra de João Machado na Igreja de Santa Cruz de Coimbra. In Santa Cruz de Coimbra do século XI ao século XX. Estudos, Coimbra, p. 195-208.
A igreja foi sofrendo alterações e nos finais do século XIX encontravam-se a ladear o arco cruzeiro ornamentações de estuque e madeira, além de dois retábulos de talha dourada em que se veneravam respetivamente as imagens de Nossa Senhora da Conceição e S. João Baptista, orago da freguesia.
No ano de 1898 a junta de Paróquia, depois de obtida autorização superior, uma vez que os altares haviam sido mandados retirar do local em que se encontravam, leiloou-os em hasta pública a 2 de Outubro desse mesmo ano ... Ignoramos o local para onde foi vendido um dos altares laterais e pensamos que o outro se encontra na Capela de Nossa Senhora da Apresentação, na Vimieira, concelho da Mealhada. Se tal se confirmar, no que respeita a este último, estaríamos perante um retábulo dos finais do século XVII que mostra colunas salomónicas decoradas com parras.
... João Machado, que já nessa altura se começava a destacar no meio artístico coimbrão, riscou em 1899 o projeto de dois altares laterais destinados ao majestoso templo de Santa Cruz ... Não me foi possível concluir como se organizou o processo que culminou na feitura dos colaterais de Santa Cruz, mas ao consultar os livros de Receita e Despesa de João Machado deparou-se-me a seguinte nota relacionada, sem sombra de dúvida, com o altar de Nossa Senhora da Conceição:
«Em dezembro de 1905, justo com a Junta de Parochia da freguezia de Santa Cruz, um altar para o lado direito do arco cruzeiro, pela quantia de 650$000 reis, para estar pronpto em 29 de novembro de 1906».
O artista deve ter começado de imediato a fazer as moldagens em gesso e a desbastar a pedra ... O altar esculpido em pedra de Ançã atinge a altura de seis metros e poderia parecer, a quem o visse na oficina, de um tamanho exagerado, mas, integrado no respetivo contexto, a harmonia do conjunto é evidente.
Os nichos da predela que representam a Anunciação, a Assunção e a Virgem da Cadeira, têm a separá-los, assentes sobre pedestais em que se encontram esculpidos medalhões e sob baldaquinos adossados, os Doutores da Igreja, Santo Agostinho, São Gregório, São Jerónimo e Santo Ambrósio. A ladear as edículas, de entre lavares renascentistas, destacam-se os bustos do Papa que então pontificava, Pio X e o do seu antecessor, Leão XIII. «A composição na linha geral e nos detalhes, a disposição das figuras dos doutores, os baixos-relevos, a riqueza dos baldaquinos, a variedade dos capiteis, a delicadeza dos medalhões, a belleza com que a Renascença vestia a admiração pelos camapheus antigos, os frisos decorados, o corte das molduras, a sua disposição, as suas penetrações» revelam bem como João Machado se encontrava totalmente imbuído do estilo que escolheu para cinzelar o seu altar.
O segundo corpo é formado por um grande nicho e flanqueado por duas colunas-balaústres. Remata este corpo uma arquitrave. Dois pequenos nichos embutidos na moldura albergam as imagens de São Pedro e São Paulo; os medalhões de São João e São Marcos ladeiam a parte superior da edícula coroada por dois anjos tenentes que sustentam uma coroa.
Remata todo o conjunto um relevo representando o Padre Eterno em Glória.
Notório se torna que a escultura de Nossa Senhora da Conceição, demasiado vultosa, se ajusta mal ao conjunto tirando-lhe harmonia, mas não nos podemos esquecer que a imagem então exposta ao culto era de roca e bem mais pequena; consequentemente, para apreciar toda a beleza da pedra esculpida por Mestre Machado, é imprescindível abstrair da figura central.
O altar, que foi dourado nas suas linhas decorativas por António Eliseu, está lavrado como se se tratasse de uma joia e não há cantinho, por mais pequeno que seja, de onde não saia um medalhão, um enrolamento, uma cartela, um animal fantástico ou uma deliciosa figurinha, de atitudes graciosas e ágeis, sugerindo aves em rápido movimento; «é bem uma obra da Renascença, pelo espírito, pela linha, pela belleza e pela harmonia».
Anacleto, R. 1984. A obra de João Machado na Igreja de Santa Cruz de Coimbra. In Santa Cruz de Coimbra do século XI ao século XX. Estudos, Coimbra, p. 195-208.
Em Coimbra seguir a moda seria, por exemplo, restaurar Santa-Clara-a-Velha, o que por várias razões, incluindo as de ordem técnica, era inviável; mas a Sé Velha, românica, mesmo no coração da velha urbe, carecia de obras.
... António Augusto Gonçalves bateu-se com firme determinação para que o seu restauro se transformasse de utopia em realidade. Apoiado pelo Bispo-Conde e pela imprensa local, mas olhado com estranheza e desconfiança pelo grande público ... O Mestre podia, com certa segurança, abalançar-se a obra de tamanha envergadura, porque à sua volta gravitavam todos aqueles artistas que desde há alguns anos frequentavam a Escola Livre e aí tinham adquirido maturidade e conhecimentos. De entre eles ressaltava o nome de João Machado, que devido à sua grande intuição e habilidade conseguiu reconstruir com relativa segurança o desenho das almofadas laterais em que assentam as impostas da primeira arquivolta da porta principal do templo e o dos fustes das colunas[1]. Tanto umas como outros se encontravam profundamente corroídos não só pelo salitre como, e principalmente, pelo uso. Com efeito, ao longo de muitos séculos, os fiéis, quando amontoados saíam dos atos litúrgicos, roçavam na pedra friável e foram fazendo com que os desenhos se sumissem.
António Augusto Gonçalves conseguiu transformar o sonho em realidade: a Sé Velha foi restaurada. Os artistas que frequentavam a Escola Livre das Artes do Desenho deram a sua colaboração.
Portal da Sé Velha
O restauro do vetusto templo não podia, no entanto, deixar de influenciar o mundo artístico mondeguino e o neorromânico aparece ligado a outras construções. Os jazigos, tão em voga na época, deram possibilidade aos artistas de soltar a sua imaginação criadora. Utilizaram este estilo, quer alargando-o a toda a construção, quer incluindo apenas alguns elementos em conjuntos heterogéneos mas harmoniosos; e assim, podemos vê-lo um pouco por toda a parte, tanto no Cemitério da Conchada ...
Cemitério da Conchada. Jazigo da Família António Augusto Gonçalves
... como espalhado por outros pontos do país, embora saído de oficinas coimbrãs. Os capitéis de tipo românico, que foram também esculpidos em profusão, sustentavam muitas vezes entablamentos de varandas e arquivoltas de portas, em moradias de certo aparato.
Anacleto, R. 1982. Arquitectura Revivalista de Coimbra. In Mundo da Arte, 8-9. Coimbra, 1982, p. 3-29.
[1] Em fase posterior à publicação do artigo, a Autora verificou que nos fustes se verificara intervenção vultuosa de José Barata, também artista ligado à Escola Livre.
O sacrário de altar, que António Gomes fez para a capela do palácio do Sr. Dr. Carvalho Monteiro em Sintra, é de um desenho que o moço artista complicou no desejo, que tão nobremente o distingue, de se aperfeiçoar e de caminhar na profissão em que é tão estimado pelo seu caracter, como pela alegria com que trabalha, sempre a procurar fazer melhor.
O seu sacrário, de uma bela linha, com os santos em oração sob baldaquinos rendilhados, encimando um curioso enfeixamento de colunas mostra todas as suas qualidades e recursos artísticos.
Luís da Fonseca – Parte média de um frontal de altar
Luiz Fonseca é de uma família de artistas e tem trabalhado sempre na oficina de João Machado, ao lado do pai, artista justamente considerado em Coimbra, há muitos anos.
O seu trabalho - um frontal de altar - é delicadamente tratado, numa grande doçura de cinzel, amorosamente detalhado, e revela-o já como trazendo galhardamente o nome que assinala toda uma família de excelentes canteiros.
Para terminar a resenha dos trabalhos em pedra, apresentados na exposição da Escola Livre das Artes do Desenho, resta-me falar da mísula de António Gomes.
É um rapaz muito novo ainda, mas, em tudo o que faz ou planeia, revela uma natureza artística fora do vulgar.
Desenho ou modelação sua fazem demorar o olhar.
O seu desenho revela um espirito que viu e a intenção de dizer claramente o que o impressionou na obra de arte ou da natureza.
A sua modelação não tem nada da banalidade d'um estudante que tenta reproduzir planos e volumes.
Modela por amor á pedra, para fixar numa matéria branda o que concebeu para ser executado em pedra. Não é o barro que vê quando está modelando, nem os seus efeitos que procura, é a pedra que os seus olhos estão lavrando, tentando realizar a imagem no barro dúctil.
A palheta é como que o escopro de dentes e no barro traça logo os efeitos que mais tarde há-de realizar na pedra
As cabecinhas de dois anjos da mísula eram de uma técnica de encantar, como toda a execução, em que a pedra por efeitos no lavrar se coloria dos mais imprevistos tons.
António Gomes – Modilhão em gesso
O modilhão, que apresentou em gesso, é uma obra de forte execução, que não parece de uma criança. A mascara é colorida e viva, o desenho fácil e largo.
Na modelação, os seus dedos não deixam seduzir-se pelas facilidades do barro, que trata como se fosse uma matéria dura, num grande amor pela pedra, que revela a excecionalidade da sua organização artística.
Com amor á sua profissão, e á matéria que lavra, com a sua forte organização artística, António Gomes virá um dia a honrar singularmente a arte em que trabalha e que se assinala no movimento artístico nacional por tão notáveis obras dos artistas de Coimbra.
Na alocução proferida na abertura da exposição disse António Augusto Gonçalves: as artes da pedra e do ferro estão ostentando em Coimbra recursos de vitalidade e tão desenvolvida compreensão estética como em parte alguma do país.
Assim o mostra o que deixamos dito, quanto á arte de canteiro, e esperamos demonstra-lo também quanto á serralharia artística, objeto do próximo artigo, com que fecharemos estas despretensiosas notas sobre a exposição de Coimbra.
JOAQUIM MARTINS TEIXEIRA DE CARVALHO
Carvalho, J.M.T. Uma escola de canteiros, In Illustração Portugueza, 2.º semestre, 2.ª série, Lisboa, 1906, p. 162-165.
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