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O Arquivo Histórico Municipal de Coimbra, ao divulgar os documentos mais relevantes e mais interessantes ali depositados, tem vindo a realizar um meritório trabalho.
Ultimamente, com transcrição da Dr.ª Paula França, revelou a existência de dois documentos que que nos dão a conhecer como, em meados do século XIX, se vivia, em Coimbra, o carnaval ou o entrudo, como então se dizia.
Transcrevemos, de seguida, o documento divulgado, embora, a fim de facilitar a leitura, tenhamos atualizado a grafia.
Tudo era alegria, tudo contentamento, Sansão estava povoada até as orelhas.
Homens mulheres rapazes, cães, tudo isto enchia e animava com um esplendor maravilhoso o Largo de Sansão mas, não se entenda que tudo era desordem; não, ao contrário, todo este povo se tinha arranjado e disposto na forma de um ovo, quero dizer, num círculo oval, de sorte que todos, ou pelo menos a maior parte dos constituintes desta figura geométrica, podiam gozar do que no meio da mesma figura se passava.
Largo de Sansão, hoje Praça 8 de Maio. Inícios do séc. XX
Era uma cena do Carnaval, era uma corrida de burros arvorados em touros, pela simples adjunção de uma armação bicórnea, que estava oferecendo um espetáculo vistoso e divertindo a jovial e variadíssima multidão.
Três touros tinham vergado sob o peso da infatigável destreza e habilidade com que os peritos capinhas os atormentavam de dor de ilhargas, porém, três homens eram levados em braços, vítimas também do seu excesso de dedicação!
Eram mártires da tauromaquia, deviam ser respeitados, todos os circunstantes pagaram o seu tributo de compaixão aos infelizes.
Enquanto isto se passava, dois amáveis estudiosos discutiam acaloradamente uma questão que tinha por objeto a referida forma geométrica em que o povo se tinha agrupado, para gozar do espetáculo. Para melhor explicar esta figura ao seu antagonista, o defensor da preposição sacou de um ovo e o expôs a vista do seu adversário, porém, não foi só este que o viu, foi um terceiro amável, que passando por este belo julgar descobrir um belo meio de transtornar as rubicundas faces ao seu amigo da análise tornando-lhas amarelas!
Foi por isso que ele imprimiu, sobre a mão que segurava o ovo, uma tão grande porção de movimento que não só este saltando do seu invólucro rastejou pelas faces do seu admirador, que ficando aterrado, por um golpe tão violento, e ao mesmo tempo tão imprevisto, porque apenas teve tempo de se lembrar que um vácuo se operara na mão que sustentava o ovo, e que era esse mesmo ovo, que rolava agora por seu despeitado rosto; mas até, como íamos dizendo, correu a observar as leis que lhe eram impostas pela natureza, vindo por isso a formar um ângulo de reflexão, igual ao de incidência em virtude da sua elasticidade, operação que teve lugar na cara daquele com quem já estava relacionado. Foi, pois, furando o ovo a natureza, e que ia ser refreada a sua fúria por um transparente vidro, parte constituinte de uma vidraça, que indignado por ver um atentado inaudito, entesou as fibras segurou se no betume e revestindo-se de ânimo esperou o inimigo a pé firme, vendo o ovo preparativos tão hostis redobrou de coragem e velocidade e zás cai sobre o miserável que reduz a mil pedaços, mas ah! Coitado que ele foi vitimado seu furor! Caiu feito em pedaços sobre o ferro frio e impassível!
Foi um som lúgubre e sinistro que anunciou a morte destes dois heróis. Inconcebível desígnio da sorte adversa! O génio mau não quis pôr termo a tão desastrosa catástrofe!
Prosseguiu avante, irritado o senhor da vidraça pela fraqueza de um seu súbdito, começou em contrações nervosas e tão violentas, que de certo as grades voariam, se não fora um novo incidente, que veio pôr termo a um ataque tão terrível.
Uma desgraçada panela rolava furiosamente impelida pela casa, fazendo as delícias duma travessa circunvizinha, que dava agudíssimos gritos ao ver as ligeiras da mísera paciente. Ao rouco e rachado som da panela volta-se exasperado o recém epilético e tomando como insulto feito à sua dignidade, as expressivas cabriolas com que a panela o mimoseava, salta denodadamente sobre a infeliz, que ainda rolava, atraca pelas azas e arroja ao meio do largo o último suspiro, acompanhado dum roufenho gemido. Momento terrível de dor, com imprecações, desordem, tumulto e agitadas desesperações!
Sensações diagonalmente opostas incendiaram e agitaram a multidão e se apoderaram de seus ânimos!
O quarto touro, que ia experimentar a perícia e rigor de seus terríveis e hábeis
perseguidores, foi despojado das armas e completamente reduzido a impassibilidade de um burro!
Os três atores da tragedia altercaram com uma eloquência de Cícero, porém foram interrompidos em sua discussão por uma bravejante coorte de Ciclopes que se arremessaram em todos os sentidos causando mil encontrões e zig-zags. Tarde espantosamente celebre e notória!
Os sucessos que tu viste serão memorizados pelos vindouros por milhares de modos! A História te consagrara duas linhas para eterno monumento de glória!!
Sem Autor. Episódios do carnaval de 1854, manuscrito. Transcrição Paleográfica de Paula França. Arquivo Histórico Municipal de Coimbra. JMC/n.º 14, fl. 119
O subúrbio sofreu considerável destruição em 1373, quando as tropas de Henrique II de Castela atacaram a cidade, no decurso das guerras que o rei castelhano sustentou contra D. Fernando. Os castelhanos não entraram na almedina (onde se encontrava D. Leonor Teles, que então deu à luz sua filha, D. Beatriz), mas roubaram e puseram fogo a casas no subúrbio.
…. O ataque castelhano levou D. Fernando a reforçar as muralhas da cidade e a construir uma barbacã. A Judiaria, que ficava fora das muralhas, mas muito perto delas, foi parcialmente abandonada e o rei reinstalou os Judeus numa «rua nova» que saía da rua Direita e ainda hoje conserva o nome.
Reconstituição do castelo de Coimbra. Op. cit., 170
O Infante D. Pedro recebeu de seu pai o ducado de Coimbra em 1415. Através da sua correspondência sabemos que se preocupou com obras em pontes e calçadas da região. Na cidade, talvez o projeto mais relevante do seu tempo tenha sido o de reforçar o abastecimento de água. A obra, todavia, não se concretizou devido à oposição do mosteiro de Santa Cruz.
…. Em 1443, D. Pedro instituiu em Coimbra um «Estudo Geral de todas as sciencias», mas esta nova Universidade foi um projeto gorado.
No tempo de D. Manuel (1495-1521) foram muitas as obras feitas na cidade por iniciativa régia. Reconstruiu-se a ponte, alteando-a. Renovaram-se os Paços da Alcáçova e o mosteiro de Santa Cruz. Quer nos Paços, quer em Santa Cruz, as obras prosseguiram no reinado de D. João III.
Reconstituição hipotética do rossio da Portagem no séc. XVI. Op. cit., pg. 31
Ainda no tempo de D. Manuel construíram-se, na Praça Velha, o Hospital Real e os açougues.
No mesmo reinado, mas pelo bispo D. Jorge de Almeida, fizeram-se obras na Sé e no Paço Episcopal. Foi sob a égide deste bispo, na década de 1520, que se ergueu a famosa Porta Especiosa da Sé.
Sé Velha de Coimbra, Porta Especiosa. Acervo RA
A catedral foi forrada de azulejo hispano-árabes (dos quais hoje pouco resta) e enriquecida com o famoso retábulo flamengo da capela-mor.
Sé Velha de Coimbra, retábulo da capela-mor. Acervo RA
Vários particulares ergueram grandes moradias: o Paço de Sobre-Ribas, a casa do Conde de Cantanhede, a dos Alpoins e a dos Cunhas de Pombeiro. Portas e janelas manuelinas visíveis em muitas casas da cidade provam que foi grande a construção ou reconstrução de prédios particulares no tempo de D. Manuel.
…. Em 1537, D. João III transferiu a Universidade de Lisboa para Coimbra.
…. Pensava o rei na construção de um edifício novo para os estudos universitários.
…. Numa carta dirigida pela Universidade a D. João III, datada de 9 de Maio de 1537, lê-se que «ja nas cassas de dom Graçia dAlmeida Rector saõ feitas cadeiras e bancos em ordenãça em que cada hu dos lentes tem lidas suas prymeiras lições».
Como seria Coimbra em 1537?
A população da cidade talvez andasse entre 5000 e 5500 almas, vivendo intramuros pouco mais de um terço.
Para podermos imaginar a cidade de forma correta ou completa faltam-nos plantas, vistas panorâmicas, documentos escritos.
Plantas de edifícios e de arruamentos podem jazer, inéditas, nos arquivos. Recordaremos
… A vista panorâmica de Hoefnagel, desenhada em 1566 ou 1567, é de três décadas posterior à transferência da Universidade. Ainda assim, e apesar de ser algo fantasista a representação da cidade, não podemos ignorá-la.
Alarcão, J. Coimbra. O ressurgimento da cidade em 1537. Desenhos de José Luís Madeira. 2022. Coimbra. Imprensa da Universidade.
….Fora da muralha, na área da rua do Corpo de Deus, ficava a Judiaria. Junto dela tinha-se aberto, no tempo de D. Afonso Henriques, a Porta Nova.
Finalmente, por uma cumeada, a muralha seguia até reencontrar o castelo.
Na parte baixa, fora da muralha e até ao rio, ficava o arrabalde ou subúrbio, onde se erguiam, no tempo de D. Afonso III, as igrejas de S. Bartolomeu e de Santiago, e os mosteiros de Santa Cruz, Santa Justa e S. Domingos. O arrabalde não ultrapassaria, nessa época, senão ligeiramente, uma linha de água conhecida pelo nome de «runa». Ia desaguar no Mondego, e na foz ficava um porto fluvial que ainda aparece representado nas plantas da cidade do séc. XIX, com o nome de porto dos Oleiros. Os conventos de São Domingos e de Santa Justa ficavam para além da «runa». Junto de Santa Justa haveria já no séc. XII um núcleo de casas.
…. O povoamento do arrabalde foi-se adensando ao longo dos séculos XIII e XIV.
Nestes séculos foram várias as medidas régias para contrariar o despovoamento da almedina, mas, aparentemente, sem grande sucesso.
Em 10 de Fevereiro de 1269, D. Afonso III isentou de hoste e anúduva os que quisessem vir morar dentro de muros e tabelou as aposentadorias. Procurava o rei evitar que fidalgos e clérigos, vindos de fora, se aposentassem abusivamente nas moradas de quem vivia m almedina sem pagarem o alojamento e a alimentação (ou sem pagarem o justo preço).
Poucos dias antes, em 25 de Janeiro, o rei havia obtido do alcaide Vasco Afonso e dos alvazis da cidade, Domingos Peres e Rui Viegas, autorização para que se instalassem as feiras, açougues, fangas e alfândegas na almedina. Isso seria fator de dinamização da área intramuros, mas facilitaria também a cobrança de taxas e impostos.
….Pode ter havido protestos da população local ou dos mercadores que vinham à cidade, porque em 7 de Maio de 1273 D. Afonso III, dirigindo-se ao alcaide e alvazis, mandou que a feira semanal se fizesse «onde vos aprouver». Provavelmente, havia na cidade vários lugares onde se faziam os mercados de levante semanais. Terá sido contra esta imposição de um lugar único que a população se terá insurgido. Pretenderia manter a pluralidade dos mercados. Ignoramos se um deles já se realizava no espaço entre as igrejas de S. Tiago e de S. Bartolomeu (atual Praça Velha ou do Comércio).
D. Dinis, que residiu demoradamente em Coimbra, transferiu para aqui a Universidade que havia fundado em Lisboa e instalou-a junto dos Paços da Alcáçova. Fez também obras nos Paços.
Paços de Coimbra após as obras do séc. XVI. Planta ao nível dos telhados. Op. cit., pg. 240
Mosteiro de Santa Clara, com o paço e hospício isabelinos. Adaptação de desenho de António Vasconcelos. Op. cit., pg. 23
Reconstituição planimétrica da cerca muçulmana do alcácer … ainda … o que ter existido nos sécs. XI e XII e a área construída por D. Dinis. Op. cit., pg. 235.
D. Afonso IV, enquanto Infante e herdeiro, teve em «Coimbra sua molher assento de sua caza». Já rei, escreveu, em 1338, que queria «fazer morada gram parte do ano na cidade de Coimbra ... foi acordado per todos … de nom star mays o dicto studo que na dicta cidade de Lisboa».
A decisão de transferir a Universidade de Coimbra para Lisboa foi revertida poucos anos depois: em 1354, D. Afonso IV voltou a instalá-la em Coimbra.
Em 1358, D. Pedro confirmou aos moradores da almedina os privilégios que por determinações régias tinham desde os tempos de D. Sancho II e mandou que os mercadores que viessem de fora fossem vender ao bairro escolar. Este bairro, cuja localização exata desconhecemos, foi coutado por D. Pedro. O rei definiu também os poderes da justiça civil municipal e da justiça universitária relativamente aos estudantes.
A Universidade manteve-se em Coimbra até ao tempo de D. Fernando, que a deslocou de novo para Lisboa em 1377. Talvez o mal-estar que haveria na cidade devido aos privilégios dos universitários e às tropelias dos estudantes tenha sido o motivo da transferência
O Rei Formoso concedeu isenções e privilégios aos que moravam na almedina e em 1377 instituiu uma feira franca que devia realizar-se, de 15 de Setembro a 15 de Outubro, «dentro na cerca da dicta cidade no cur[r]al dos nossos paaços e arredor deles se dentro nom couberem».
…. Do que temos dito transparece, por um lado, a preocupação dos reis quanto ao despovoamento da área intramuros – despovoamento que pretendiam contrariar – mas, ao mesmo tempo, a inelutável tendência para a fixação de uma parte substancial da população no arrabalde ou subúrbio – e a pressão que os moradores da parte baixa da cidade exerciam não ficarem excluídos ou menosprezados. No subúrbio iam-se estabelecendo cada vez mais, os ofícios mecânicos e o comércio. As ruas iam tomando nomes segundo as profissões: dos Tanoeiros, dos Caldeireiros, dos Pintadores, dos Peliteiros, da Louça ou dos Oleiros, da Moeda...
Não devemos, porém, contrapor o arrabalde à almedina como se nesta não houvesse artesãos e comerciantes. O nome de rua da Ferraria dado no séc. XIV à atual de Fernandes Tomás, ou da Çapataria à área do Pátio do Castilho, é prova de que na almedina também havia artesanato e comércio; e mais: que aqui havia igualmente algum arruamento de mesteres.
Alarcão, J. Coimbra. O ressurgimento da cidade em 1537. Desenhos de José Luís Madeira. 2022. Coimbra. Imprensa da Universidade.
O Professor Doutor Jorge de Alarcão publicou, em 2022, o livro O ressurgimento da cidade em 1537. Desenhos de José Luís Madeira.
Op. cit., capa
Trata-se de um trabalho de síntese dos estudos realizados sobre este tema, onde é apresentada a sua visão da evolução da cidade de Coimbra.
O livro é profusamente ilustrado quer com fotografias, quer com desenhos muito elucidativos e bem conseguidos. Acresce que se trata de uma obra de grande qualidade estética que se encontra dividida por 10 capítulos que abarcam não só o espaço construído adentro da muralha, bem como as áreas do antigo arrabalde.
Se vamos tentar uma reconstituição de Coimbra tal como seria em 1537, quando D. João III transferiu para aqui a Universidade, parece-nos necessária uma história, posto que muito breve, de tempos anteriores, desde a década de 1130, isto é, desde o tempo em que D. Afonso Henriques fez da cidade a principal do reino. Será resumido e imperfeito o que diremos, ignorando acontecimentos memorandos, mas tentando dar rapidamente conta de como se foi organizando o espaço urbano, do séc. XII ao XVI. Se o nosso foco é a cidade de 1537, o que nessa data existia tinha um passado, mais longinco ou mais recente. Por mais recente entendemos o tempo de D. Manuel, em cujo reinado se fizeram notáveis obras.
A cidade de Coimbra teve uma época áurea desde essa década de 1130 até à de 1260, isto é, do reinado de D. Afonso Henriques ao de D. Afonso III.
Se pensarmos que nesse período de quase 150 anos se construíram todas as igrejas românicas da cidade (Sé, S. Pedro, S. João, S. Salvador, S. Cristóvão, S. Tiago, S. Bartolomeu), bem como os mosteiros de Santa Cruz, Santa Justa, Sant' Ana ou Celas da Ponte, S. Domingos e S. Francisco, teremos ideia de quão nobilitado se encontrava o burgo onde os primeiros reis residiram demoradamente. Ausentavam-se muito, é certo, porque a administração do território exigia itinerância e a guerra contra a moirama reclamava saídas, mas sempre os reis regressavam a Coimbra – e os Paços da Alcáçova foram sua principal residência.
Em 1270, D. Afonso III fixou-se em Lisboa e daí pouco saiu até 1279, ano da sua morte.
Nesta última data, já a almedina, isto é, a área intramuros, se ia despovoando, enquanto o arrabalde ou subúrbio, entre a muralha e o rio, crescia e se adensava.
São poucos os vestígios que hoje restam da muralha. Pode facilmente, porém, reconstituir-se-lhe o traçado.
Planta da cidade medieval nos meados do séc. XIII, com representação da muralha, dos principais arruamentos, das igrejas e dos mosteiros, da alcáçova, do paço episcopal e do castelo. Op. cit., pg. 12
Uma das portas principais, a do Sol, ficava junto do castelo, onde D. Afonso Henriques havia edificado a torre de menagem, e D. Sancho I construído, em 1198, uma torre pentagonal.
Da porta do Sol descia a muralha até à de Belcouce, ao fundo da atual couraça de Lisboa. Nesse percurso ficava a porta da Traição ou de Genicoca. Abaixo desta, uma couraça (obra também, provavelmente, de D. Sancho I) arrancava da muralha direita ao rio e terminava numa porta que o desenho de Hoefnagel ainda representa. Quando, na década de 1980, se fizeram obras de saneamento na avenida Navarro, reconheceram-se vestígios dessa porta perto do restaurante D. Pedro (no número 58 da avenida).Gravura publicada em George BRAUN, «Civitatis orbis terrarum», vol. V, Colónia, 1598, a partir de desenho de Hoefnagel
Junto da porta de Belcouce ergueu D. Sancho I, em 1211, uma segunda torre pentagonal que ainda hoje se conserva.
Daqui, a muralha seguia à torre de Almedina e subia depois no sentido da rua do Corpo de Deus. No percurso entre a torre de D. Sancho e a de Almedina ainda se reconhecem hoje alguns torreões. A norte da torre de Almedina encontram-se duas torres: uma incorporada no paço de Sobre-Ribas e outra conhecida como torre d’Anto.
Alarcão, J. Coimbra. O ressurgimento da cidade em 1537. Desenhos de José Luís Madeira. 2022. Coimbra. Imprensa da Universidade.
Conclusão do texto de Manuel Campos Coroa sobre Jorge Gomes.
Jorge Gomes começou por ensinar jovens a tocar guitarra na sua casa, mas logo em 1971 foi convidado para integrar um projeto pedagógico de forma mais intensa e estruturada, no edifício das antigas piscinas municipais da cidade, em consequência de mais uma notável iniciativa do Dr. Fernando Mendes Silva, que criou a escola onde o mestre ensinou várias dezenas de alunos de ambos os sexos. Esta iniciativa passou também pela ACM, num esforço alargado de revitalização da música popular de Coimbra.
Em 1978, na sequência do 1º seminário do fado, a Camara Municipal de Coimbra criou a chamada Escola do Chiado, pela mão do Dr. António Rodrigues Costa e coordenação pedagógica de Jorge Gomes, onde também lecionou Fernando Monteiro.
Jorge Gomes e alguns dos primeiros alunos da Escola de Fado do Chiado. Igreja de Santa Cruz, capela de S. Teotónio. 1979
Tozé Moreira, um dos primeiros alunos da Escola de Fado do Chiado. 1979
Jorge Gomes com alunos da Escola de Fado do Chiado. II Seminário do Fado, serenata na Sé Velha. 1979
Esta escola, que funcionou no edifício camarário da rua Ferreira Borges, começou a “produzir” com regularidade uma grande quantidade de jovens guitarristas, violistas e cantores, com muita qualidade, num tempo em que era necessária uma dose reforçada de coragem, pela necessidade de combater uma ideia (errada), que começou a ser estabelecida na cidade, de certo modo, logo no período da crise académica de 1969, mas com um impacto muito maior durante o período revolucionário (PREC), em que tudo o que se relacionasse com guitarras e canto tradicional era considerado reacionário. Os elementos dos grupos que ousavam fazer serenatas de rua, eram frequentemente vítimas de agressão física, ou insultados porque os consideravam saudosistas do Estado Novo.
Os jovens desse período, honra lhes seja feita, nunca tiveram medo e não pararam as atividades. A escola camarária continuaria a funcionar, mudando de instalações para a ladeira do Carmo e mais tarde para o Centro Norton de Matos, sempre coordenada por Jorge Gomes, até que foi abruptamente encerrada, sem que se desse qualquer explicação aos alunos já inscritos, ou mesmo aos monitores. As razões deste encerramento, embora conhecidas, nunca foram frontalmente assumidas pelos responsáveis políticos da época.
No início da década de 80, mestre Jorge Gomes estende a sua atividade, ao sindicato dos Bancários, à escola de música do Colégio de São Teotónio, e também à AAC, mais concretamente à TAUC e à Secção de Fado, onde inicialmente esteve também Fernando Monteiro.
Esta fase, foi a mais produtiva do percurso de Jorge Gomes no ensino da guitarra, da viola e do canto. Preparou ali instrumentistas às centenas e consequentemente, uma quantidade enorme de grupos de canção de Coimbra, com alto nível artístico, que projetaram de uma forma notável todo o esplendor do património musical da academia e da cidade, através de incontáveis espetáculos “Urbi et Orbi”.
Mestre Jorge Gomes é um homem de fortes convicções e personalidade, que se manteve fiel à forma de ensino tradicional da guitarra, com comprovadíssima e incontestável eficácia.
Dono de uma generosidade notável, ensinou tudo o que sabia a todos os alunos que julgou merecedores. Nada lhe dá mais satisfação do que saber que os seus alunos brilham pelo seu mérito, e quanto mais novos forem melhor. Por isso reagiu sempre às tentativas (mais ou menos explícitas) de desvalorização do mérito que pertence aos alunos e decorre da sua própria dedicação, talento e inteligência.
Dedicou a maior parte da sua vida ao ensino da guitarra de Coimbra, motivado unicamente pelo serviço à causa, sem nunca se servir dela em benefício próprio. Foi muitas vezes incompreendido e criticado por quem acha a sua metodologia desadequada face ao ensino formal da música.
Uma personalidade que fez muitos e bons amigos, mas criou, por outro lado, fortes anticorpos e também alguns inimigos, mas nunca deixou de ser fiel a si próprio, Jorge Gomes soube manter uma total Independência face aos poderes instituídos e por isso, nunca foi passível de instrumentalizar.
A intolerância que sempre teve, à introdução de ornamentação instrumental excessiva nos acompanhamentos e de alguns trejeitos no canto, mais próprios de outras regiões do País, levou a que alguns sectores menos cultos da atividade, o acusassem de fundamentalismo e até de ser um anacrónico travão da “evolução” para a modernidade.
É fundamental compreender que a intenção e a força interpretativa da palavra cantada, a emoção da poesia, reforçada com a adequação e a qualidade nos acompanhamentos, é o que tem que passar para quem ouve. Por isso, tudo o que contribua para “distrair” o ouvinte do essencial, é, na estética da canção de Coimbra, totalmente dispensável.
Tocar guitarra e cantar Coimbra, não pode transformar-se em mero exibicionismo circense ou em feiras de vaidade.
Quando o ouvinte consegue abstrair-se das figuras que cantam ou tocam e se centra emocionalmente na mensagem, mais perto estaremos da perfeição.
A evolução da música de matriz coimbrã, acontecerá de forma independente das vontades, das ambições pessoais, das modas ou de simples circunstâncias conjunturais. Apenas o tempo, na sua sabedoria, separará o “Trigo do Joio“ e ditará o que sobrevive no futuro.
Ao que julgo saber, nenhum dos grandes protagonistas da história da canção de Coimbra, trabalhou com a intenção de procurar o estrelato, ou teve sequer consciência durante o processo criativo, da importância que o futuro lhes concedeu.
Mestre Jorge Gomes foi, durante muitas décadas um verdadeiro guardião do património musical popular de Coimbra, muito particularmente da sua guitarra, garantindo através da transmissão oral direta e do ensino tradicional, a sobrevivência de um tesouro cultural inestimável, de uma forma absolutamente excecional.
Os resultados falam por si. Não conheço outra escola que se lhe compare, seja na qualidade ou na quantidade dos intérpretes que produziu.
Encerrou definitivamente a sua atividade de ensino na Secção de Fado da AAC, em março de 2020, por ocasião do confinamento determinado pela pandemia de Covid-19.
Infelizmente, mais do que o fator idade, foi em grande medida o ambiente de facilitismo instalado na cidade e na academia, com uma crescente falta de ética, grande desrespeito pelas exigências técnicas e estéticas, que foram decisivas para que o Mestre não voltasse.
O fenómeno de crescente mercantilização da música de Coimbra, que caminha a passos largos para uma certa “globalização” descaracterizadora, pouco exigente no gosto e no rigor, protagonizada pelos que se servem da arte para obtenção de lucros e/ou notoriedade pessoal a todo o custo, é manifestamente incompatível com os valores morais e éticos, de homens com a verticalidade do Mestre Jorge Gomes.
Na cultura, como na biologia, é imperativo defender a diferença, as especificidades regionais e locais, porque a beleza da arte também reside na diversidade e a Humanidade precisa do belo.
Serão as forças vivas da cidade, capazes de garantir a sobrevivência deste legado cultural, com a indispensável independência face a interesses conjunturais de qualquer natureza? Seremos capazes de defender e preservar este tesouro cultural?
Ficam as perguntas.
Coimbra, 28 de janeiro de 2024
Manuel Campos Coroa
Continuação do texto de Manuel Campos Coroa sobre Jorge Gomes.
Jorge Gomes, persistiu no seu método pedagógico por mais de 5 décadas e nunca deixou morrer em Coimbra o legado de Artur Paredes, que de contrário seria, na minha opinião, mais um génio esquecido no tempo.
Identifica como seus mestres, Fernando Rodrigues (irmão de Flávio), José Rodrigues, bem como os estudantes Octávio Sérgio, Arménio Serrão Assis e Santos, a que se somavam também alguns outros guitarristas com quem convivia.
O instrumento que hoje possui, foi-lhe vendido em 1959 por Octávio Sérgio, que o tinha comprado na casa de Olímpio Medina. É uma Guitarra de Coimbra em pau-santo da Baía, da lavra do mestre guitarreiro João Pedro Grácio Júnior, sua companheira de incontáveis serenatas e gravações, que o acompanhou durante a comissão militar em Angola e que iria mais tarde emprestando a alunos de sucessivas gerações, que ainda não tinham guitarra própria, possibilitando-lhes assim a aprendizagem e o uso em eventos especiais.
Integrou como instrumentista vários grupos de canção de Coimbra, a começar pelo grupo em que se estreou, tocando viola, numa serenata realizada no antigo colégio Camões (à Av. Dias da Silva), acompanhando os guitarristas Manuel Pais e Frias Gonçalves, com Fernando Ermida no canto, até ao Grupo Folclórico de Coimbra, passando também por muitos outros agrupamentos de destaque.
Para referir apenas alguns grupos que Jorge Gomes integrou no seu extenso percurso musical, destaco um com David Leandro, outro com o guitarrista/cantor Manuel Branquinho (com quem gravou em estúdio), mas também com os amigos António Ralha e Manuel Dourado, acompanhando regularmente cantores como Serra Leitão, Raúl Diniz, José Manuel dos Santos, Armando Marta, ou também, de forma pontual, Fernando Rolim, ou Glória Correia, entre muitos outros intérpretes.
Durante vários anos, foi 2º guitarra no grupo liderado por António Pinho Brojo, com Aurélio Reis e Manuel Dourado nas violas, acompanhando o cantor José Mesquita, em espetáculos e gravações de estúdio.
Gravou como violista os discos, Fogueiras de São João I e II, editados pelo Grupo Folclórico de Coimbra,
Grupo Folclórico de Coimbra, com Jorge Gomes na guitarra de Coimbra. Comemorações dos 500 anos da descoberta. do Brasil, junto ao monumento a Pedro Alvares Cabra, em Passo Fundo, Brasil. 2000.
mas também outros editados pela Secção de Fado da AAC, como “Olhar Coimbra”, integrando à guitarra o grupo “Árreum Pórreum” com temas de música futrica ou ainda o disco da Secção de Fado “Coimbra, Baladas Fados e Guitarradas”, em que gravou a peça de sua autoria “Maio de 78“, composta no edifício Chiado em homenagem ao retomar das tradições académicas, que resultou das conclusões extraídas do primeiro seminário do fado, realizado naquela data no auditório da reitoria da UC.
Jorge Gomes com alunos da Secção de Fado da AAC. Abril de 2005.
Jorge Gomes com alunos da Secção de Fado da AAC, no café de Santa Cruz. Inícios dos anos 2000.
A sua dimensão pedagógica, é sem sombra de dúvida a que mais se destaca, pelo enorme talento natural para a transmissão de conhecimentos, mas essencialmente porque ensinou sempre de forma dedicada, com um visível gosto pessoal e verdadeira vocação, quer a música quer a História, disciplina em que é licenciado pela FLUC e que lecionou durante anos no colégio de S. Teotónio.
Pude testemunhar em frequentes ocasiões, a grande cumplicidade que se estabelece naturalmente com os jovens e adolescentes com quem se relaciona, acrescentando ao trabalho técnico, alguns episódios de sã brincadeira, que contribuem de forma decisiva para o fortalecimento dos laços de amizade para a vida.
Os seus alunos de guitarra, para além da aprendizagem técnica e estética da música de matriz coimbrã, absorveram quase sem dar conta, com frequência à volta de uma mesa de lanche ou refeição, conceitos absolutamente essenciais para a correta compreensão e o indispensável enquadramento histórico-cultural das atividades artísticas, promotores de uma formação de base sólida, que estimula de forma decisiva, o sentimento coletivo de pertença.
Mestre Jorge Gomes é, na minha opinião e na de muitas dezenas de cultores, o maior vulto do ensino da guitarra de Coimbra de sempre. Pelo abrangente conhecimento da cultura, da história, pela consciência da grande importância do contributo para a arte, daqueles que foram passando pela cidade em busca de conhecimento e por cá deixaram as mais diversificadas influências e que muito contribuíram para o enriquecimento deste “caldo de cultura” que se chama Coimbra, influenciando de forma muito particular a música, nas suas vertentes académica e futrica, elas próprias, verdadeiramente indissociáveis.
O cerne do ensino de Jorge Gomes na arte de bem tocar a Guitarra de Coimbra, reside na transmissão rigorosa de uma técnica de dedilhação apoiada da mão direita, em que polegar e indicador percutem as cordas utilizando em simultâneo a unha (que não deverá ser demasiado comprida, nem ter forma de palheta) e a polpa dos dedos, ficando estes, ato contínuo, apoiados nas cordas imediatamente adjacentes, quase sempre no uso do polegar e na flexão do indicador, favorecendo desta forma a consistência, a intensidade e a qualidade das notas musicais, o que, aliado à destreza da mão esquerda, contribui de forma decisiva para a qualidade do som extraído da guitarra, que é uma das principais características diferenciadoras no toque da guitarra de Coimbra, em que Jorge Gomes é exímio.
Importa esclarecer, que não foi Jorge Gomes o “inventor” destas técnicas, mas sim Artur Paredes, como se poderá constatar pela leitura da obra do amigo e 2.º guitarra, Dr. Afonso de Sousa: “O canto e a guitarra na década de oiro da Academia de Coimbra (1920-1930)” – Coimbra Editora 1986.
Conclusão na entrada seguinte.
Coimbra, 28 de janeiro de 2024
Manuel Campos Coroa
Conheço Jorge Gomes há largos anos. A sua personalidade assenta em duas vertentes, a de um homem vertical e forte nas suas convicções e um acrisolado amor ao ensino e preservação do Fado de Coimbra. Lembro o tempo em que tantos “meteram a viola no saco” e ele continuar firme e destemido na defesa de uma das razões de ser da sua vida.
È, de inteira justiça, integrar a galeria das Personalidades de Coimbra.
O texto de hoje da autoria de Manuel Campos Coroa, é o primeiro de uma série de três entradas, sobre um percurso de vida ímpar.
Falar sobre o Dr. Jorge Gomes, é falar num bom amigo e mestre, com quem mantenho há várias décadas uma proximidade diária, numa relação que extravasa em muito o universo da Guitarra de Coimbra, mas não existiria sem ela.
Fazê-lo para corresponder a um desafio do Dr. António Rodrigues Costa, transforma estas linhas numa tarefa tão irrecusável quanto difícil, porque apela a um exigente poder de síntese, que confesso não ter.
Jorge Gomes
Não me é possível falar do Mestre, sem um olhar pluridimensional sobre o Homem, o Professor e o Músico, na sua relação afetiva com o universo histórico-cultural da sua Coimbra natal.
Jorge Luiz da Costa Gomes, nasceu em Coimbra no dia 19 de julho de 1941 e cá vive desde sempre, com exceção do período em que cumpriu o serviço militar obrigatório, com passagem por Angola. Mantém uma memória remota notável, com grande capacidade de evocação de factos e personalidades do passado, identificando os protagonistas e acontecimentos com grande clareza.
Viveu a sua infância e adolescência na travessa de Moura e Sá, em Montes Claros, na companhia de seus pais e irmã, de onde posteriormente se mudariam para a rua Verde Pinho.
Foi neste ambiente, onde pontificou a influência familiar, que se forjou Homem de honestidade a toda prova, verdadeiramente desprendido de interesses materiais e convictamente avesso ao elogio da própria personalidade.
Na Escola Primária de Almedina, foi colega de carteira e amigo, do malogrado Fernando Frias Gonçalves, que seria também um talentoso guitarrista com quem partilhava o interesse e a aptidão para a música, em particular para os instrumentos de corda, em que o genial guitarrista Artur Paredes era referência maior.
Fernando Frias Gonçalves na viola, Jorge Godinho e Eduardo Melo na guitarra e José Miguel Batista, no canto. Finais dos anos 60. Imagem acedida em: https://www.facebook.com/photo/?fbid=2040525446055952&set=pcb.2040525472722616
Jorge Gomes, revelou desde jovem uma grande habilidade manual, começando mesmo por fabricar os seus próprios instrumentos, ainda que muito rudimentares, usando para isso (às escondidas), tábuas e fios metálicos, que o pai usava no fabrico de resistências para fogões elétricos. Eram “instrumentos-brinquedo”, que embora muito primários, permitiam já a afinação das “cordas” e a formação de acordes musicais, no que seriam os primeiros passos para mais tarde construir as suas próprias guitarras e sobretudo uma viola toeira de Coimbra, que ofereceu ao Dr. Manuel Louzã Henriques, depois do desaparecimento (em 1981) do guitarreiro Raúl Simões, último construtor e tocador conhecido de violas toeiras, de que já não havia na época qualquer exemplar tocável .
Viola toeira construída por Jorge Gomes, 2003 c.
Esta viola toeira construída por Jorge Gomes, pode ainda hoje ser vista na coleção de instrumentos populares do Dr. Lousã Henriques.
A necessidade de aprender a tocar de forma mais sistematizada a guitarra de Coimbra e o violão de acompanhamento, rapidamente se impôs.
A primeira guitarra que teve, foi-lhe oferecida por uma tia, que, notando o entusiasmo e o talento do rapaz para a música, a decidiu comprar na casa Olímpio Medina, por ocasião da conclusão do ensino primário e ingresso no Liceu.
Só que o Pai, Joaquim Flório Gomes, homem dedicado ao trabalho, eletricista muito solicitado pela sua competência técnica e honestidade, via na guitarra uma grande fonte de distração do filho e pensava que o largo tempo que lhe dedicava, o iria prejudicar no cumprimento das obrigações escolares.
Nestas circunstâncias, não lhe sendo possível treinar em casa, restou a solução de levar o instrumento para casa do amigo Frias Gonçalves, no Tovim, para que este lhe fosse dando uso durante a semana.
Aos fins de semana, principalmente aos sábados de tarde, lá ia o Jorge sempre a correr até ao Tovim, o mais depressa que podia, ausentando-se muitas vezes (sorrateiramente) das atividades desportivas da mocidade portuguesa, para aproveitar também a sua guitarra com o Frias.
Ouviam ambos, repetidamente, nos discos de 78 rpm e nas fitas magnéticas, as variações do ídolo, Artur Paredes, usando “apenas” os ouvidos para tentar descobrir os segredos da execução, tentando aperfeiçoar o mais possível a própria técnica, na busca da maior aproximação possível à excelência interpretativa do Mestre.
Artur Paredes. Acedido em: https://www.bing.com/images/search
Tarefas exigentes e trabalhosas aquelas, em que era preciso distinguir o que era tocado pelo solista (1ª guitarra), do que provinha da guitarra de acompanhamento (2ª guitarra) ou mesmo de cada um dos violões (normalmente 2). É de salientar, que as gravações que normalmente usavam eram de muito baixa qualidade e não dispunham de quaisquer recursos técnicos adicionais.
Devemos ao Jorge Gomes e a alguns outros jovens da mesma geração, o podermos hoje usufruir de verdadeiras obras primas da guitarra de Coimbra, de grande rigor técnico na execução.
Mesmo os jovens do século XXI, que se ora dedicam ao estudo da guitarra e da vasta obra de Artur Paredes e outros autores, recorrem a avançados programas informáticos e aplicações de telemóvel, que possibilitam a rigorosa audição de cada nota, ou de pequenas frases musicais de forma repetida, lenta e sem qualquer desafinação tonal, o que possibilita identificar rigorosamente muitos detalhes e mesmo “erros” de transcrição por vezes apontados ao mestre, mas que eram virtualmente impossíveis de perceber sem estes recursos.
Coimbra, 28 de janeiro de 2024
Manuel Campos Coroa
Continua na entrada da próxima 3.ª feira.
No início desta pequena série de três entradas, dedicadas à viola toeira de Coimbra, escrevemos que a mesma seria terminada recordando “o que, em 1983, quando era Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra o saudoso Fausto Correia e eu tinha a honra de chefiar o Departamento de Cultura, se implementou relativamente a este instrumento”.
Começo por citar uma notícia publicada no Diário de Coimbra de 9 de maio de 1983 – que Rui Marques, a quem agradeço, me disponibilizou – e onde se pode ler o seguinte:
Câmara cedeu violas toeiras a grupos folclóricos do Concelho
Viola toeira construída por Raúl Simões. Imagem acedida em: https://www.muralsonoro.com/mural-sonoro-pt/2014/3/4/viola-toeira
A Câmara Municipal de Coimbra entregou anteontem sete violas toeiras a grupos folclóricos do concelho.
O vereador do Pelouro, Fausto Correia, disse ao nosso jornal que esta medida vem na sequência de um processo de recuperação do instrumento musical, tradicional de Coimbra.
«O processo – salientou – iniciou-se com a aquisição dos instrumentos e da técnica, a Raul Simões, último fabricante, em Coimbra, da viola toeira».
Raul Simões, construtor e exímio tocador de viola toeira
«A partir daí – acrescentou – o professor Luís Filipe construiu 10 violas, sete das quais foram cedidas a grupos folclóricos, duas ficaram ao cuidado a Câmara e uma foi doada ao Instituto Português do Património Cultural».
Na sessão, que decorreu nos Paços do Concelho sob a presidência de Mendes Silva, presidente da Câmara, ficou ainda decidida a organização de um curso de aprendizagem de viola toeira.
O curso vai realizar-se no edifício Chiado em Coimbra, na próxima semana.
In: Diário de Coimbra, de 9 de maio de 1983
Uma outra notícia, saída no mesmo periódico, informa que no ato atrás referido estavam ainda presentes as Pessoas que então integravam a Comissão de Análise dos Grupos Folclóricos, constituída pelo Presidente da Federação do Folclore Português, Sr. Augusto Gomes dos Santos, pelo Doutor Nelson Correia Borges e pelo Dr. Francisco Faria responsáveis pelo reconhecimento “de interesse folclórico” dos grupos do Concelho de Coimbra.
O jornal O Despertar de 13 de maio do mesmo ano deu a conhecer o nome dos grupos a quem foi oferecida uma vila toeira: Camponeses do Mondego, de Ribeira de Frades; Típico da Palheira; Rancho de Vila Nova de Cernache; Vigor da Mocidade, de Fala, S. Martinho do Bispo; Rancho Típico do Bordalo; Rancho de Assafarge; e Casa do Povo de Ceira.
De memória, acrescento ainda as seguintes notas:
- O Município de Coimbra adquiriu aos herdeiros de Raul Simões, o último construtor de violas da cidade e homem que também tocava viola toeira, todo o material existente na sua oficina. Seguidamente, estabeleceu um acordo com o Museu Nacional de Etnologia, a fim de este levar a cabo a identificação e a catalogação dessas peças, cedendo-lhe, como contrapartida, alguns artefactos. Na altura, esse material destinava-se a reconstituir, no âmbito do projetado Museu da Cidade, a oficina do mestre violeiro.
- Algum tempo depois, cessei as minhas funções na Câmara de Coimbra e, por isso, desconheço o destino dado a esse precioso material. É evidente que o projeto da sua musealização, tal como a instalação do Meseu da Cidade, foram abandonados. Parece-me premente saber onde se encontra esse material, do qual faziam parte madeiras, moldes, ferramentas e produtos químicos que eram utilizados na sua oficina pelo último violeiro de Coimbra.
Após ter partilhado com os leitores estas informações talvez seja possível compreender melhor o espanto e a tristeza, para não dizer a revolta, que expressei na primeira destas entradas.
Rodrigues Costa
Concluímos, nesta entrada, a divulgação da publicação onde se relata o trabalho que está a ser desenvolvido na Miami University, relacionado com a revitalização da viola toeira.
A viola toeira e Coimbra
A viola de Coimbra tinha duas denominações distintas: a “Banza” e a “Farrusca,” sendo que o termo Banza descende provavelmente do instrumento africano “Mbanza” levado na memória dos escravos para o Brasil e daí o termo ser utilizado para denominar um instrumento de corda.
Coimbra foi, até às invasões francesas, a universidade do Brasil, os estudantes que vinham estudar na universidade traziam consigo a sua musicalidade, com ritmos, melodias e ambientes harmónicos dos “lundus,” combinando harmonia europeia e ritmos africanos, e a modinha brasileira, baseado na moda portuguesa e sempre acompanhada pela viola. A modinha ficou tão popular que o Jornal de Modinhas foi publicado em Lisboa entre 1792 e 1795. José Ramos Tinhorão confirma que “o costume dos estudantes, tanto de Lisboa quanto em Coimbra, de preencherem as suas horas de lazer com tocatas e cantorias chamadas de estudantinas, levava-os a compor canções.”
Quando um estudante se enamorava era costume convencer alguns dos seus colegas para o acompanhar nas noites mais claras, iluminadas pela lua cheia, pois não existia iluminação publica nas ruas, a cantar à janela da sua amada. Ouvia-se uma serenata deliciosa. Cantando versos como “menina vinde ao luar, vinde ver quem está a cantar,” o instrumento que acompanhava a sua voz era a viola de Coimbra, conhecida agora como viola toeira. Assim nasceu a Serenata, assim nasceu o Fado de Coimbra. Francisco Faria, em Fado de Coimbra ou Serenata Coimbrã?” interroga-se: “Por que chamar a isto fado? Canção coimbrã é uma música de ar livre, a estiolar em ambientes fechados, nos quais perde força expressiva e significado social, para se tornar canção-espetáculo...”
Provavelmente aprenderiam a cantar com familiares e tutores que sorviam a estética parisiense e, no caso da música, a italiana e a austríaca. Por esta razão ouve-se cantar na canção das ruas de Coimbra, a técnica operática do canto lírico que persiste na atualidade e que muito a diferencia do fado de Lisboa. A viola que acompanhava os estudantes era denominada de banza (muito raramente ainda se utiliza hoje expressão como “profissional da banza”). Era semelhante à farrusca a viola dos futricas e tricanas, mas ao nível das decorações era bastante ornamentada e rica segundo a estética barroca, com a utilização de madeiras nobres, madrepérola e marfim.
Quando um estudante se enamorava era costume convencer alguns dos seus colegas para o acompanhar nas noites mais claras, iluminadas pela lua cheia, pois não existia iluminação pública nas ruas, a cantar à janela da sua amada. Ouvia-se então uma serenata deliciosa.
Eduardo Loio a tocar uma réplica da viola de Bento Martins Lobo. Op. cit.,
Provavelmente aprenderiam a cantar com familiares e tutores que sorviam a estética parisiense e no caso da música a Italiana e austríaca. Por esta razão ouve-se cantar na canção das ruas de Coimbra, a técnica operática do canto lírico que persiste na atualidade e que muito a diferencia do fado de Lisboa. A viola que acompanhava os estudantes era denominada de banza (muito raramente ainda se utiliza hoje expressão como “profissional da banza”). Era semelhante à farrusca a viola dos futricas e tricanas, mas ao nível das decorações era bastante ornamentada e rica segundo a estética barroca, com a utilização de madeiras nobres, madrepérola e marfim.
Revitalização e construção
A viola toeira está a passar por uma revitalização nos últimos anos, com muito interesse nas comunidades académicas e musicais, reconhecendo o potencial de um instrumento com possibilidades expressivas. Com o movimento de early music e o desejo de voltar a usar instrumentos originais na música histórica, vários instrumentos extintos ou esquecidos estão a ser reutilizados em tipos de música antiga e folclórica. A viola toeira cai nesse movimento, e a canção coimbrã.
Em termos acadêmicos, investigadores estão explorando a história e desenvolvimento da viola toeira e música composta para o instrumento, pesquisando a música em arquivos e museus em Portugal e no exterior. Várias teses e dissertações foram escritas recentemente, explorando música disponível como o “Coimbra Codex” em arquivos como a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a Biblioteca Nacional e a Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Outras fontes estão a ser descobertas, e muita informação está disponível na internet. Instrumentos antigos estão a ser estudados também, com exemplares de violas portuguesas de 12 cordas do século XVIII acessível em museus em Portugal e outros países, construídas por António dos Santos Vieira, de Lisboa, exposta no Ashmolean Museum, em Oxford, Inglaterra, a de Pedro Ferreira de Oliveira (Lisboa, c. 1790), da antiga coleção de Arnold Dolmetsch, actualmente no Horniman Museum, em Londres, outra de José Pereira Coelho (Lisboa, c. 1785) no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa.
Uma parte dessa revitalização é a construção de instrumentos, principalmente nas últimas décadas. Construtores redescobriram o instrumento e começaram a construir instrumentos baseados nos exemplares históricos, alguns muito elaborados, outros mais simples. Ultimamente, ateliers e fábricas começaram a produzir instrumentos em número significativo.
A construção da viola toeira respeita as técnicas de construção ibéricas que remontam ao século XVI, em que o braço e o cepo ou bloco da quilha são uma peça única, onde as laterais, ilhargas ou costilhas são coladas em duas ranhuras perpendiculares à mediana do braço, previamente serradas. Este método de construção é muito diferente do utilizado em França e Itália, que emigrou para os Estados Unidos onde a caixa acústica é construída separadamente do braço sendo unidos posteriormente através de um encaixe ou malhete.
A cidade de Coimbra é uma parte essencial da revitalização e a construção da viola toeira, com estudantes, músicos e luthiers amadores e profissionais interessados em construir e tocar o instrumento.
Há muitos websites dedicados às violas portuguesas e à viola toeira, e é possível comprar instrumentos, estojos e cordas em vários países do mundo. Projetos como EcoMusic na Universidade de Aveiro estão a investigar a história e revivalismo do instrumento e outros aspetos da música portuguesa.
A viola toeira tem um passado interessante e variado, e será fascinante ver o que o futuro reserva para esse instrumento.
Thomas Garcia a construir uma viola toeira na Coimbra Luthier School. Op. cit.,
Garcia, T.G.C. e Loio, E. A Viola Toeira: História, Desenvolvimento, Revitalização e Construção. Acedido em: https://veduta.aoficina.pt/14/a-viola-toeira/
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