Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Um outro artista do ferro, que não pode deixar de merecer referência especial é Daniel Rodrigues, homem que nasceu a 26 de março de 1886 no Largo das Ameias, em Coimbra, terra para onde os seus pais, oriundos de Penacova e de Figueira de Lorvão se haviam transferido. Penso poder dizer que o pai, também Daniel Rodrigues de seu nome, casou com Maria do Rosário a 9 de janeiro de 1881, na igreja de S. Bartolomeu.
Daniel Rodrigues
Iniciou a sua aprendizagem numa oficina de serralharia civil, mas a sua habilidade invulgar para o desenho e manejo do ferro terão despertado o interesse de António Augusto Gonçalves, que o levou a frequentar as aulas de Desenho Ornamental e de Modelação, ministradas na Escola Industrial Brotero por Silva Pinto e pelo próprio Gonçalves.
Retrato de Bissaia Barreto. Desenho de Daniel Rodrigues
Foi também aluno da Escola Livre. Em 1933, conjuntamente com António Maria da Conceição e com Manuel de Jesus Cardoso, integra a direção daquela “universidade plebeia”, fazendo-se também sócio da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Coimbra. Morreu, com 84 anos, quase à beira de cumprir mais um, a 11 ou 12 de fevereiro de 1971.
Daniel Rodrigues, começou a executar, em 1928, uma artística grade para o palacete Sotto-Mayor que foi construído na Figueira da Foz.
A fundição deste trabalho esteve a cargo da casa Alves Coimbra, Sucessores, desta cidade, e a cinzelagem e acabamento foram feitos na oficina do mestre serralheiro. A peça, que foi muito apreciada e mereceu rasgados elogios de João Ameal no Diário de Notícias, esteve exposta no estabelecimento “A Vigorosa”, da rua Ferreira Borges.
Grade para o palacete Sotto Mayor
Daniel era um homem católico e, por conseguinte, de certo modo marginalizado pelos seus colegas e mestres, ateus ou agnósticos e que se encontravam fortemente ligados à maçonaria; por isso não admira que trabalhos como os que bateu para a igreja de Santo António dos Olivais não tivessem na imprensa o eco que alcançaram peças de igual gabarito saídas do malho de outros artistas. Mas, em 1934, por iniciativa do pároco daquela freguesia, padre Manuel Estrela Ferraz, fez o desenho e executou duas artísticas grades de ferro, em estilo gótico, destinadas às capelas laterais da escadaria da igreja. Quatro anos depois, bateu uns artísticos portões para a capela de Nossa Senhora das Dores e para a do Senhor dos Passos, da mesma igreja, bem como o lustre central do templo.
Porta da Capela de Nossa Senhora das Dores
Porta da Capela de Nossa Senhora das Dores. Desenho
De entre as obras de Daniel Rodrigues, com temática religiosa, destaca-se o Anjo da paz eterna, “esculpido” em 1941, a fim de ser colocado no portão do cemitério da Conchada, a substituir o esqueleto que ali se encontrava. Trata-se de uma estátua vultuosa que teve por modelo uma das suas filhas; dir-se-ia que o artista trabalhou o ferro com a mesma facilidade com que as mãos do oleiro modelam o barro.
Cemitério da Conchada. Anjo da Paz Eterna
O anjo ergue as suas asas e, segurando a cruz, como que aponta o céu, num sinal de esperança e de evasão que é, afinal, o estigma de toda a arte. Neste trabalho deve salientar-se a perfeita nitidez das feições do rosto e a execução do cabelo, o subtil drapeado da túnica, apertada na cintura com um cordão, deixando aparecer, ligeiramente, os pés descalços, simbolizando a humildade e a fragilidade inerente ao ser humano.
Nas horas vagas, vai trabalhando a porta do jazigo da sua filha Berta que havia falecido prematuramente. Trata-se da obra mais sentimental saída da sua oficina A peça revela a forte sensibilidade do artista, que retrata, através da imagem esculpida no ferro duro e frio, o real-irreal ou o tempo-não-tempo, que é a transição vida-morte, numa quase ausência de dimensões. No tímpano retratou, ao mínimo pormenor o quarto onde a filha morreu, com o seu mobiliário, a janela que já não dá para este mundo e a jovem, soerguida no seu leito, enfrentando o Anjo da morte.
Cemitério da Conchada. Porta do jazigo da filha
Sob o tímpano encontram-se esculpidas, duas almofadas: na da esquerda pode observar-se “Daniel na cova dos leões” e na da direita encontra-se representada “Santa Beatriz”; alusões diretas ao seu nome e ao de sua mulher.
Em baixo, a meio dos batentes, visualizam-se dois medalhões que mostram, respetivamente, Cristo e a Virgem, entre lírios e rosas, apontando, nitidamente, para a ressurreição.
Tímpano da porta do jazigo da filha
Ao longo da sua vida, Daniel Rodrigues, que perde dinheiro em muitos trabalhos (a salvação do artista é o artífice), executa “relevos erguidos no ferro forjado à força de buris e martelada”. É um trabalho verdadeiramente “toledano, grosso de aspeto, mas de um valor que atesta bem as possibilidades da forja e do martelo ao serviço da arte”.
Medalha da Casa da Criança Bissaia Barreto
Medalha da Casa da Criança Bissaia Barreto. Estudo
Na IV Exposição Oficial de Arte em Coimbra (1942), patrocinada pela Comissão Municipal de Turismo e que se realizou no edifício da Faculdade de Letras, o artista expôs uma banqueta de ferro forjado e cinzelado, que se destinava à capela da base aérea da Ota, posteriormente também mostrada na igreja de S. Tiago; o desenho e a execução pertencem-lhe, mas apoiou-se, para a riscar, na opinião avalizada do Doutor António Nogueira Gonçalves.
Banqueta para a basa aérea da Ota
Em 1955, mestre Daniel foi encarregado de executar também dois portões para o edifício da Caixa Geral de Depósitos de Coimbra, mas resolveu ceder parte da empreitada ao artista industrial Joaquim Geraldo Lopes.
Portão cinzelado por Daniel Rodrigues com desenho de Raúl Lino
Os seus trabalhos, e já se não refere Coimbra, encontram-se espalhados por todo o país, desde a Régua, a Odemira, passando por Braga, Porto, Aveiro, Figueira da Foz, Torres Novas, Beja, Lisboa, Covilhã, Belmonte, Figueiró dos Vinhos, Espinhal, Santa Comba ou Mortágua.
Oficina de serralharia. Desenho de Daniel Rodrigues
Daniel Rodrigues é um dos artistas que integram a vasta plêiade de serralheiros da cidade do Mondego; para ele, a arte de alindar o ferro não tem segredos: aproveitou bem as lições dos seus mestres.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021.Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-292.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.