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Uma outra obra conjunta e de grande envergadura, a envolver quase todos os artistas mondeguinos do ferro, encontra-se relacionada com o edifício do Palácio da Justiça, a finalizar-se na inacabada morada dos condes do Ameal.
Tímpano do portão principal da fachada do Palácio da Justiça. Obra coletiva.
O titular comprou, antes de 1895, o antigo colégio de São Tomás, que se erguia na zona cabeira da rua da Sofia e introduziu-lhe modificações tendentes a transformá-lo na sua residência. Chamou para dirigir as obras o arquiteto Silva Pinto que lhe foi indicado pelo seu amigo lisboeta, o arquiteto José Luís Monteiro.
Antigo Colégio de S. Tomás.
Após a morte do conde, a sua incompleta habitação foi posta à venda, tendo sido, depois de atribuladas negociações e por ordem do então ministro da Justiça, Dr. Manuel Rodrigues, adquirida, entre 1926 e 1928, a fim de aí ser instalado o Palácio de Justiça mondeguino. Para superintender nas obras do edifício, o governo nomeou uma Comissão Administrativa e como o diretor das obras públicas do Distrito de Coimbra não podia desempenhar o cargo, indicou o engenheiro Manuel de Abreu Castelo Branco, que passou a ser o responsável, saindo do seu lápis o projeto do acrescentamento das duas alas, Nascente e Norte, que ainda não tinham sido construídas.
Portões de ferro forjado da fachada principal do Palácio da Justiça.
Aquele técnico teve um certo cuidado, respeitando, minimamente, o estilo e a harmonia que vinham a ser utilizados, sobretudo no que respeita a interiores, porque alterou profundamente o projeto da fachada.
O edifício da Domus Justitiae foi inaugurado a 6 de maio de 1934 e, durante vários anos, funcionou como ex-libris do Ministério da Justiça.
Na sessão de 29 de agosto de 1929, a Câmara Municipal de Coimbra apreciou um requerimento do Juiz Presidente do Tribunal da Relação, pedindo licença para proceder à vedação do Palácio da Justiça, com um muro e gradeamento. Mas, quase em simultâneo com o pedido, a imprensa noticiava que tinha sido aprovada a proposta conjunta dos serralheiros Lourenço Chaves de Almeida, António Maria da Conceição, Daniel Rodrigues, José Domingos Baptista e Albertino Marques, para a feitura de 106 metros de grade, 2 portões e várias pilastras destinadas à parte exterior das traseiras do imóvel. Os trabalhos eram realizados sob a direção do engenheiro Castelo Branco e constava que outras obras, como lustres, grades interiores, portões, etc., lhes iriam ser encomendadas.
Portão da vedação do Palácio da Justiça.
Portão da vedação do Palácio da Justiça. Desenho existente no espólio de Daniel Rodrigues.
A vedação que, em agosto de 1930, se andava a assentar, de ferro batido era considerado pela imprensa da época como um dos mais artísticos trabalhos “que se têm executado nos últimos tempos em Coimbra, obedecendo à arquitectura do renascimento do século XVI, tão notável e abundante na nossa região e que tem servido de escola aos artistas contemporâneos”.
Mas as encomendas para a Casa da Justiça, tal como havia sido anunciado, continuaram a acudir às oficinas dos serralheiros e, no ano seguinte (1931) Albertino Marques forjava, para o Palácio da Justiça, um novo portão em estilo renascença; concomitantemente, os “ourives do ferro” executavam, no mesmo gosto, quatro candeeiros, destinados à iluminação do claustro superior.
Na mesma altura, para o salão nobre do tribunal, Albertino Marques e Daniel Rodrigues, coadjuvados por João Machado Júnior que modelou os bustos destinados a ser, posteriormente, executados em ferro forjado, bateram um lustre.
Lustre central da Sala das Audiências.
Terminados em fins de junho de 1934, foram executados nas oficinas de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques quatro artísticos lampiões e as respetivas gárgulas de suporte, que se destinavam, obviamente, ao imóvel em causa.
Lampião e gárgula de suporte.
Lampião e gárgula de suporte. Desenho existente no espólio de Daniel Rodrigues.
Numa entrevista feita aos artistas conimbricenses do ferro, levada a cabo por um jornal local, revela-se que os portões do Palácio da Justiça tinham sido executados “a meias”, porque o trabalho fora arrematado por Daniel Rodrigues, que resolveu dividi-lo com Albertino Marques e com António Maria da Conceição. Como se depreende, Daniel é o responsável e dirige os trabalhos executados nas três oficinas, todas elas pequenas e ruidosas; contudo, a do mestre serralheiro, era a mais pequena de todas, “baixa, com tecto abobadado em arcos, quase um cubículo”.
Daniel Rodrigues, em 1915, era sócio da antiga oficina de Francisco Nogueira Seco que se situava no Quintal do Prior, mas, em 1919, inaugurou a sua serralharia no Terreiro da Erva, n.º 36, local onde permaneceu até ao fim da vida.
É ainda sediada no Quintal do Prior que, em 1818, Daniel, talvez de parceria com Albertino Marques e com os descendentes do acreditado industrial Francisco Nogueira Seco, constituíram uma sociedade que girava sob o nome de “Seco, Graça & Marques”. Nessa oficina, um deles, ou ambos, faz ou fazem, a jogo, uns ferros para o fogão estilo Luís XV esculpido por João Machado, destinado à casa de Álvaro Castanheira Esteves, Filho. Não será de excluir a possibilidade de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques, sócios da dita manufatura, se terem desentendido, talvez até por via destes suportes, uma vez que as peças, posteriormente, surgem com a paternidade atribuída ora a um, ora a outro. Como quer que seja, Albertino Marques, gerente da firma que explorava a oficina do Quintal do Prior, transfere o seu local de trabalho para o Terreiro da Erva, onde, já em 1922 se encontrava sediado. Embora dois anos mais tarde ainda ali permanecesse a laborar, em 1925, era dono da serralharia que se situava no Adro de Santa Justa e, quatro anos volvidos, transfere-se, definitivamente, para a rua João Machado.
Apesar de a citada entrevista apontar como autor do risco dos portões do Palácio da Justiça o engenheiro Castelo Branco, a verdade é que tanto informações orais, como as notícias dos periódicos o atribuem, sem margem para qualquer dúvida, a paternidade dos mesmos a Daniel Rodrigues.
As grades de ferro que fecham as três aberturas e dão acesso ao interior do Palácio de Justiça deviam ser colocadas no princípio do ano de 1936 ou ainda antes; utilizam uma gramática neorrenascentista, onde avultam medalhões, enrolamentos e grutescos. Daniel Rodrigues, à boa maneira antiga, deixou nos portões, que pesam três toneladas, um testemunho, colocando uma moeda de prata de 10$00 em cada um dos medalhões do corpo central.
Portão principal da fachada do Palácio da Justiça.
O arco do meio, de volta inteira, apresenta, como se de um tímpano se tratasse, uma monumental bandeira que, ao centro, ostenta a figura simbólica da justiça, rodeada por gentes desavindas, representadas por dragões que olham assustados para a figura central, temendo a sua ação; os animais mostram uma atitude de contendores furiosos, mas as cabeças, porque os seus olhos avistam a justiça, voltam-se para trás, temerosos da balança da verdade. A rodear e a compor o motivo, encontram-se elementos ornamentais renascentistas.
Figura simbólica da justiça. Tímpano do portão principal.
Para a mesma Casa da Justiça, do cinzel de Daniel Rodrigues e de Albertino Marques, individualmente ou de parceria, mas quase sempre com desenho do primeiro, saíram a grade do tribunal do crime, os lustres da sala da Relação, os dos gabinetes do Presidente e do Procurador, lanternas para o claustro baixo e três portões para o interior, estes da inteira responsabilidade de Marques.
Anacleto, R. A arte do ferro forjado na cidade do Mondego, primeira metade do século XX. In: História, Empresas, Arqueologia Industrial e Museologia. 2021.Edição Imprensa da Universidade de Coimbra, pg. 259-292.
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