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Já tivemos ocasião de chamar a atenção dos nossos leitores para a obra do Doutor Marco Daniel Duarte, atualmente, diretor do Museu do Santuário de Fátima e do Departamento de Estudos da mesma Instituição religiosa, bem como do Arquivo e da Biblioteca. Também dirige o Departamento do Património Cultural da Diocese de Leiria-Fátima.
Investigador de grande gabarito, historiador probo, doutorado pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, foi mais um de entre os seus mais brilhantes alunos que a Cidade não soube reter, “obrigando-o” a demandar outras paragens, onde, pela qualidade do seu trabalho desenvolvido, tem demonstrado a importância da investigação histórica, investigação essa que aqui poderia – e deveria - ter desenvolvido em Coimbra. É este o trabalho que vamos divulgar.
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: Ícone do Poder. Ensaio iconológico da imagética do Estado Novo. Capa
Como refere no prefácio a Professora Doutora Regina Anacleto foi realizado no contexto avaliativo da disciplina de História da Arte Contemporânea, por si, então regida, acrescentando, nomeadamente: "O objetivo do livro … passa pela tentativa (bem conseguida) do estudo da obra de arte plena, através da análise de diferentes perspetivas que englobam, para além de outras, a abordagem biográfica dos artistas, bem como a inserção do imóvel no contexto social, a fim de entender mais intimamente a obra de arte na sua totalidade. Por isso procura olhar, interpretar e ver o imóvel da cidade universitária aeminiense representado por imagens e tenta “perscrutar a obra feita no seu sentido mais ínfimo que escapa ao observador, mais apressado”.
Edifício da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Op.cit., pg. 20
Iremos realizar a divulgação deste trabalho, procurando seguir as partes em que se encontra dividido e que correspondem a uma imaginária delimitação do todo da obra estudada, em cinco espaços que a constituem, cada um sob uma epígrafe.
As quatro esculturas (Barata Feyo esculpe Safo, Tucídides, Aristóteles e Demóstenes ou A Poesia, A História, A Filosofia e A Eloquência)
A ideia de que as edificações das faculdades da cidade universitária são meras linhas retas sem interesse arquitetónico-artístico desfaz-se com o olhar pra a fachada de qualquer uma das construções, principalmente quando se olha a frontaria da Faculdade de Letras.
Praça da Porta Férrea, onde se implanta o edifício da Faculdade de Letras, cujo fácies se geminou na fachada da Biblioteca Geral. Op. cit., pg. 17
Na verdade, a fachada do edifício fica longe de se resumir às quatro linhas que delimitam as arestas da frontaria do «caixotão».
A clareza arquitetónica da construção leva a considerar os seus (poucos) ornamentos como essenciais no discurso que se quis edificar. Op. cit., pg. 25.
… o acesso àquela casa do saber não é feito de maneira fácil. Na verdade, não teremos certezas que a fachada se abra, acolhedoramente, aos que percorrem a Via Larga. Parece-nos que o trajeto é o oposto: será o interessado que fará o esforço para penetrar no edifício das Letras. Essas barreiras – se não arquitetónicas, no mínimo, psicológicas – foram criadas desde a Rua Larga até ao interior do edifício. A primeira meta a passar é a das quatro estátuas que, enfileiradas, habitam de forma muito segura (até, rígida) elevando-se ao nível superior do tamanho humano, a frontaria entre a zona de circulação e o espaço que se começa a perceber como dedicado ao estudo.
As esculturas de Salvador Barata Feyo perfilam-se como primeira barreira urbanística que faz distinção entre espaços: o da Praça da Porta Férrea e o átrio dos que pertencem ao Ensino das Letras. Op. cit., pg. 28.
Demóstenes incarna a Eloquência. Op. cit., pg. 29.
Aristóteles ou a Filosofia. Op. cit., pg. 32
A História representada em Tucídides. Op. cit., pg. 33
Safo, a Poesia, foi, entre as esculturas de Barata Feyo para a Faculdade de Letras, a que gerou mais polémica. Op. cit., pg. 34
Pela sua temática não é difícil conotá-las com o mundo grego e se Barata Feyo naquele mundo houvesse procurado a inspiração, para a técnica e formulários escultóricos, tê-lo-ia feito nas rígidas esculturas dos «koroi» e das «korai» gregas. Elas possuem, inclusivamente, o hieratismo típico da escultura egípcia. Tem interesse notar que as estátuas estão tão apartadas do mundo mortal que o escultor não tem pejo em representar o corpo feminino da Poesia com os dois seios desnudados. Não obstante esta particularidade, nada naquela figura roça o erotismo e, nem mesmo, a sensualidade.
Duarte, M.D. 2003. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: Ícone do Poder. Ensaio iconológico da imagética do Estado Novo. Prefácio de Regina Anacleto. Coimbra, Câmara Municipal.
Op. cit., pg. 199
A figura aqui apresentada é uma daquelas que revelam um escultor de garra e bem experimentado na arte de entalhar a madeira. Faltando-lhe embora a mão esquerda e quase todo o antebraço, assim como quase todo o braço direito, mesmo assim o todo da estatueta é notável pela atitude e expressão, pelo lançamento do manto, pelo doseamento das pregas a distribuir luz e sombra num equilíbrio admirável.
Deve tratar-se de um fidalgo, a julgar pelo trajo e pela cadeia que lhe adorna o peito. A mão esquerda devia segurar qualquer objeto que se vinha apoiar na coxa do mesmo lado, onde restam vestígios. O braço encosta ao tronco, e o que resta do antebraço indica a posição de quem sustém algum bastão, espada, etc. Um prego espetado no coto mutilado é o que testemunha uma tentativa falhada de restauro infeliz. Do braço direito apenas ficou uma pequena parte a seguir ao ombro, e a mão. Sabe-se, porém, pela posição da mão com a palma voltada para fora, qual ela a posição do braço.
Op. cit., pg. 205
A figura aqui representada é um baixo-relevo que se encontra na face interna de um painel que delimita uma série de cadeiras. Com a mão direita soergue a capa e com a esquerda segura um bastão terminado por quatro bolinhas.
Pelo seu tamanho, este bastão não é um bordão ou cajado, antes parece um cetro. Mas não é cetro, pois a figura não tem coroa nem aspeto de rei.
Consultando bibliografia, achei que, entre os cantores que nos cabidos das catedrais, mosteiros e colegiadas, entoavam os ofícios divinos, havia um que tinha por missão ensinar a cantar bem e dirigir o coro: era o chantre ou mestre de coro. Só aos chantres era reservado o uso de capas de seda e cetro (Solange Corbin, «Essai sur la Musique Religieuse au Moyen Age», Paris, 1952, pg. 202). A mesma autora, depois de dizer que esse uso está documentado em textos e iluminuras, tais como o Missal de Braga (de 1558) e o Saltério 114, da Biblioteca Pública Municipal do Porto, diz que uma iluminura deste último, que era certamente o de Santa Cruz, apresenta o chantre com o bastão de quatro bolas em cruz, que seria a insígnia da sua dignidade.
Não tive oportunidade de ver as iluminuras citadas, mas basta o testemunho e a opinião da ilustre e conscienciosa investigadora para poder interpretar a figura em causa como sendo o chantre do coro de Santa Cruz.
Pereira, A. N. Do Cadeiral de Santa Cruz. 2.ª edição. Introdução de Nunes Pereira, Abertura de Anselmo Ramos Dias Gaspar e Prefácio à segunda edição de Marco Daniel Duarte. 2007. Coimbra, Câmara Municipal. Pg. 199-200 e 205-206.
É já depois de amanhã, 6.ª feira, dia 27 de janeiro que às 18h00, se iniciam as Conversas Abertas deste ano que irão decorrer na Sala de D. João III, do Arquivo da Universidade de Coimbra.
E para bem começar o Dr. Mário Araújo Torres irá falar de três personalidades ligadas a Coimbra, que se tornaram marcantes na vida cultural nacional na segunda metade do século XIX, todos autodidatas.
AUC. Pormenor da Folha de Sala
Sobre o Palestrante já tivemos ocasião de escrever, em 17 de fevereiro de 2022
Dr. Mário de Araújo Torres
Sendo a importância da reedição de textos, há muito esquecidos e esgotados, de autores que escreveram sobre Coimbra, inquestionável, lembra-se, mais uma vez, que após a sua jubilação o Dr. Mário de Araújo Torres, se dedicou à recolha e reedição – à sua custa, hoje, com mais de 10 títulos publicados – de autores que em Coimbra desenvolveram a sua atividade.
É exemplo um dos primeiros que editou: a produção etnológica e pedagógica do poeta Afonso Duarte.
Embora sabendo que Mário Araújo Torres é avesso a agradecimentos, temos repetidamente afirmado, e mais uma vez o fazemos, que Coimbra lhe deve um institucional: OBRIGADO.
Na modéstia do conimbricense que somos, pelo nosso lado, aqui fica esse reconhecimento, acrescentando que o Dr. Mário Araújo Torres é credor de todos os conimbricenses de uma palavra simples, mas que diz muito: OBRIGADO.
Agradecimento, que é feito perante o silêncio do Município já tantas vezes alertado para este seu dever.
Coimbra não pode, nem deve, continuar a ser madrasta quer para os seus filhos, quer para quantos fizeram de Coimbra a sua cidade.
Rodrigues Costa
Op. cit., pg. 163
A escravatura pode definir-se como a dependência absoluta e incondicional do ser humano com respeito à vontade de outrem.
A sua origem tem várias causas, entre as quais estas: a carência de mão-de-obra, e o direito de guerra (cf. Domingos Maurício, no artigo «Escravatura» na «Enciclopédia» VERBO).
A venda de José, filho de Jacob, a uns negociantes amalecitas que por sua vez o venderam no Egipto a Putifar, é uma das referências bíblicas à escravatura («Génesis», XXXVII). Escravos foram depois os israelitas no Egito, obrigados a trabalhar em condições desumanas m construção de cidades. Dessa escravidão os libertou Moisés.
No tempo em que foi feito o Cadeiral anda a escravatura era largamente praticada na Europa e na África. Não Admira, pois, que a figura do escravo apareça na ate daquele tempo. Por outro lado, as guerras com os mouros e outras faziam numerosos prisioneiros, que depois, em muitos casos, eram convertidos em escravos.
Para a abolição da escravatura contribuiu em grande parte o cristianismo com a doutrina da fraternidade humana.
A figura aqui representada parece mais um prisioneiro do que um escravo. Com efeito, as suas vestes são amplas e dornadas de uma espécie de franja em bicos, que nos parece indicar pessoa de certa posição social que por qualquer motivo foi metida em ferros. Preso à parede pela cintura, tem os pés amarrados. Dois anéis abraçam-lhe as pernas acima dos tornozelos, e um engenhoso sistema de argolas une e fecha os dois anéis. Faltam-lhe as mãos, a direita mutilada antes da atual douradura, e também o nariz está mutilado. Apesar disso, é uma bela estátua esta.
Op. cit., pg. 195
Esta figura é das mais notáveis do Cadeiral, pela nobreza do seu porte, pelo bem concebido da sua composição, pela justeza da sua atitude e pela admirável execução.
De farta cabeleira que cai sobre os ombros, cofia com a mão direita as longas barbas onduladas, enquanto na mão esquerda empunha um alfange, cuja bainha é sustida por uma cadeia de elos retangulares, dos quais, na frente, faltam alguns já anteriormente ao último douramento. Da cintura pende uma bolsa, com uma só borla das duas ou três que teria. Esta bolsa é semelhante a outra a que já me referi em artigo anterior, e indica pessoa de distinção.
Quanto ao alfange, não é muito vulgar a sua forma tão aparatosa. A bainha, em forma de como, vai alargando para o fundo, e é reforçada por três estrias salientes, que no original seriam metálicas. Num relevo da igreja de S. Sebaldo, em Nuremberg, de 1499, representando a prisão de Jesus, um soldado tem suspenso um alfange também curvo, mas a bainha não alarga para o fundo (reproduzido in Gerhard Ulrich, «SChatze deutscher Kunst», München, 1972, pág. 58). Nos primitivos portugueses, designadamente nas representações dos Mártires de Marrocos (de Francisco Henriques e do Mestre do Retábulo de Setúbal), aparecem alfanges brandidos por soldados mouros, o que leva a supor que também esta figura do Cadeiral representará um mouro.
Pereira, A. N. Do Cadeiral de Santa Cruz. 2.ª edição. Introdução de Nunes Pereira, Abertura de Anselmo Ramos Dias Gaspar e Prefácio à segunda edição de Marco Daniel Duarte. 2007. Coimbra, Câmara Municipal. Pg. 163-164 e 193-194.
A complementar a divulgação desta obra, dos textos de Monsenhor Nunes Pereira, escolhemos alguns daqueles que, em nossa modesta opinião, mais nos impressionaram.
Op. cit., pg. 31
Da vida monástica de Santa Cruz de Coimbra resta o seu famoso cadeiral, uma das mais belas e curiosas peças da escultura em madeira do século XVl em Portugal.
O cadeiral esteve primeiro na capela-mor, antes de construído o coro alto. Feito este, para lá foi mudado o cadeiral, em 1531, sendo encangado da obra Francisco Lorete, escultor francês, que também foi incumbido de acrescentar mais catorze cadeiras, «oito grandes e seis pequenas, da obra e maneira das que são feitas», segundo reza o contrato publicado pelo cónego Prudêncio Garcia.
As anteriores, acabadas em 1513, são obra de Machim, cujo estilo é ainda gótico. As outras denunciam um artista da renascença, muito embora Francisco Lorete, em obediência ao contrato, se esforçasse por imitar a obra de Machim.
O «Inventário Artístico» assinala a parte de cada um dos autores. A começar do lado da frontaria da igreja, até ao tambor que marca o arranque das nervuras da abóbada, é de Machim; daí para diante é de Lorete.
Além da diferença de estilo, há na obra de Machim uma nota curiosa: a aplicação de motivos animais tirados do Fabulário. Assim, por exemplo, «A Raposa e as Uvas», «A Raposa e a Cegonha», das Fábulas de Fedro. Esses motivos encontram-se na face inferior dos assentos, só visíveis quando estes estão levantados.
Op. cit., pg. 61
O desenho aqui apresentado representa uma figura de homem sentado à porta de uma pequena casa de estilo nórdico e ornamenta o painel da cadeira que está fronteira àquela que tem o tocador da cítara.
A figura tem os braços levantados, um mais do que o outro como o tocador de cítara, e como este também não tem mãos. 0 rosto está bastante carcomido, mal se distinguindo o nariz e os olhos. À frente nota-se que havia qualquer elemento, que não se sabe o que fosse, por ter sido quase totalmente desfeito pelo caruncho. Mas, dada a posição dos braços, pode admitir-se que se tratasse de um instrumento, por ventura um tambor. É uma hipótese, apenas.
Outras hipóteses podemos ainda considerar.
A primeira é que se tratará de Santo António, com a cabana que para ele mandou fazer o conde Tiso, em Camposampiero, a duas milhas ao norte de Pádua. O conde tinha na sua propriedade um espesso bosque, e no centro deste uma grande nogueira. Entre os seis braços abertos da majestosa árvore, foi feita uma cabana para Santo António escrever os seus sermões e meditar; dos lados, dois cubículos, um para Fr. Lucas Belludi e outro para Fr. Rogério (cf. P.e Rolim 0. F. M., «Santo António de Lisboa», Lisboa, 1931, pág. 162, e a bibliografia aí citada), (Iconographie de L´ Árt Chétien, P. U. F., Paris,1958, Tomo III, pág.118).
A mais antiga representação desta cena, que para o caso não importa que seja verdadeira ou lendária, é de 1490, um quadro de Lazzaro Sebastiani na Academia de Veneza (Louis Réau, op. cit., loc. cit.).
O facto de Santo António estar intimamente ligado ao mosteiro de Santa Cruz, onde estudou, toma muito plausível esta interpretação. Embora Louis Réau afirme que até ao século XV o culto de Santo António esteve localizado em Pádua, e que só a partir do século seguinte ele se tomou o santo nacional dos Portugueses, não repugna admitir que em Santa Cruz ele tivesse culto antes dessa data. Uma coisa é certa: Em 1531 já o «Breviarium» de Santa Cruz, a 13 de Junho, insere o oficio de Santo António, cujas nove lições resumem a sua vida.
Mas aventamos ainda outra hipótese, neste difícil desbravar de terreno. É esta:
Entre as parábolas evangélicas há uma que se refere ao servo vigilante, que espera a vinda do seu senhor, para prontamente lhe abrir a porta (Mat., 24, 42-51; Luc., 12, 35-47).
E basta de conjeturas. Apenas acrescentaremos que se devia estudar a maneira de obstar ao desfazer da graciosa escultura, como de todo o conjunto.
Pereira, A. N. Do Cadeiral de Santa Cruz. 2.ª edição. Introdução de Nunes Pereira, Abertura de Anselmo Ramos Dias Gaspar e Prefácio à segunda edição de Marco Daniel Duarte. 2007. Coimbra, Câmara Municipal. Pg, 31-32 e 61-62.
Na parte final do seu texto o Doutor Marco Daniel Duarte, aborda o tema O que contém e o que falta ao cadeiral de Nunes Pereira. Um Génesis sem Apocalipse, salientando este conceituado investigador que Augusto Nunes Pereira não quis traçar com exaustividade todas as análises que a historiografia permite a propósito do cadeiral de Santa Cruz. Isto mesmo se depreende das suas próprias palavras que com este sentido semeia ao longo das entradas.
A honestidade do autor não deixa que queiramos ver no seu livro mais do que uma reunião de textos redigidos para um fim específico e por isso denunciadores dessa primeira finalidade.
Publicados em forma de colunas no periódico diocesano, os textos têm obrigatoriamente de ser curtos, porque submetidos às regras que o público jornalístico exige, mas que também hoje serão, no entanto, um valor maior no que concerne à divulgação dos méritos da arte de eras passadas, pelo que o leitor pode aceder, sem desânimo, as breves descrições dos pormenores de uma obra de arte muito complexa.
Mais adiante acrescenta que Ninguém como Augusto Nunes Pereira terá olhado de tão perto para o cadeiral de Santa Cruz, pelo menos com o intuito de registar esse olhar … Não afirmamos pelo facto de qualquer observador ter, obviamente, uma visão diferente da obra que observa, mas porque efetivamente o cadeiral crúzio foi exarado por Nunes Pereira como quem revela uma fotografia, com arguta minudência de cristalizar os sentidos que parte da artística paisagem encerra.
Nunes Pereira, o Artista incansável
Importa recordar que Marco Daniel refere, na página 23, a existência de um terceiro escultor do cadeiral, João Alemão, ao afirmar que é De lamentar é o facto de Augusto Nunes Pereira não ter desenhado, com o risco e com as palavras, tantas outras figurações, nomeadamente as do coroamento e assim analisar as representações contidas na totalidade do lenho de carvalho artisticamente trabalhado por Machim, João Alemão e Francisco Lorete.
Já perto do final do seu texto arco Daniel sublinha que o cadeiral de Santa Cruz não é apenas uma das mais importantes obras de arte de um país. Ele foi palco de uma história cultural, institucional, política, religiosa e, antes destas, litúrgico-musical. Nunes Pereira olhou-a, viu-a, interpretou-a e, não raras vezes, reinterpretou-a.
Op. cit., pg. 189
Estamos convencidos de que, depois dos seus artistas e artificies, ninguém como Nunes Pereira – também ele um artífice e também ele artista – dedicou tantas horas ao cadeiral de Santa Cruz: horas de minuciosa observação para lhe desvendar os traços; horas de pensamento para lhe desvendar os entranhados sentidos que as formas encerram.
Acrescenta ainda o investigador. Embora não se tenha dedicado em exclusivo, ao estudo histórico de obras de arte, Augusto Nunes Pereira ficou associado a descobertas historiográficas muito importantes e, diríamos mesmo, emblemáticas … merece sempre registo o facto de que data do celebrado púlpito da igreja de Santa Cruz
Datação do púlpito da igreja de Santa Cruz, Desenho de Nunes Pereira
… importantes passos na inventariação dos bens artísticos da Diocese de Coimbra para acrescentar que se dedicava … a desenhar, de forma quase compulsiva, numa espécie de ‘viciosa virtude’, tudo o que povoava o seu viver.
Por último, importa ainda recordar que a localização primitiva do cadeiral foi a capela-mor, na parte reservadas aos cónegos, separada por um gradeamento da parte aberta aos fiéis. A sua forma era em U, aberto para o altar.
Igreja de Santa Cruz, capela-mor ainda com o gradeamento.
Quando o rei D. Manuel I determinou a demolição da igreja românica e a construção da igreja manuelina, bem como dos túmulos dos primeiros reis, o cadeiral foi mudado, em 1531, para o coro alto da igreja, onde hoje o podemos admirar.
Pereira, A. N. Do Cadeiral de Santa Cruz. 2.ª edição. Introdução de Nunes Pereira, Abertura de Anselmo Ramos Dias Gaspar e Prefácio à segunda edição de Marco Daniel Duarte. 2007. Coimbra, Câmara Municipal.
Na preparação desta série de entradas, ao concluir a leitura do livro Do Cadeiral de Santa Cruz, 2.ª edição datada de 2007, de Monsenhor Nunes Pereira, desabafei para mim mesmo: quanto mais aprofundo o conhecimento sobre a sua obra mais admiração tenho pelo Artista!
Do Cadeiral de Santa Cruz, capa
O P.e Anselmo Ramos Dias Gaspar na Abertura desta obra conta a história do surgimento da primeira edição.
De 1977 a 1981, Mons. Nunes Pereira … deu-se ao labor de estudar cada um dos motivos esculpidos por Machim e por Lorete, desenhando à pena, minuciosamente, cada um deles … resolveu, a partir de outubro de 1978, publicar os seus desenhos, com a respetiva explicação iconográfica, no “Correio de Coimbra” … Muitos foram os leitores, alguns deles com conhecimento na matéria, sugeriram ao padre-artista que reunisse em volume, a série dos apreciados artigos … com o apoio da paróquia de Santa Cruz, a obra foi publicitada em 1984.
Um dos leitores que fez aquela sugestão foi o Professor Manuel Lopes de Almeida, como se depreende da carta publicada no prefácio da primeira edição.
Carta do Professor Doutor Manuel Lopes de Almeida, datada de 22 de dezembro de 1978.
O livro, nas suas mais de duzentas páginas é, ele próprio, uma verdadeira obra de arte, resultante de um gigantesco trabalho realizado pelo Autor.
Op. cit., pg. 37
Acresce que a obra, nesta edição, é enriquecida com um Prefácio à segunda Edição, da autoria do Doutor Marco Daniel Duarte.
Ali e num primeiro tempo que intitulou, O cadeiral de Santa Cruz, obra de arte do presente construída no passado, começa por sublinhar que o cadeiral do mosteiro de Santa Cruz, ex-libris da casa monástica que o abriga, ex-libris da cidade do Mondego e, não menos importante, ex-libris da própria história da arte portuguesa, é o mais antigo cadeiral que trespassou eras históricas e chegou, mais ou menos incólume, à pós-contemporaneidade.
Cadeiral de Santa Cruz, na atualidade. Foto Augusto Ferreira
Levantado, no segundo e terceiro decénios de mil e quinhentos, como grande móvel para enquadrar um dos esteios mais importantes dos habitantes de um complexo monacal, foi vivido pelos cónegos regrantes de Santa Cruz como um especial lugar até ao apartamento destes do mosteiro. Continuou, nas datas seguintes, a ser vivido no meio de vicissitudes várias e, porque toda a obra de arte se faz eternamente presente, ele é arte de hoje, sustentando ainda significado para os que habitam o tempo presente.
Ao longo de um pouco mais de três séculos, sucessivas gerações de religiosos ali tomaram assento para cumprirem um dos fundamentais pilares da instituição conventual que, juntamente com o altar, dá o sentido litúrgico a uma vida de canonicato regular.
Pedro de Cristo, cónego regrante de Santa Cruz, compositor português do Renascimento. Ele é um dos mais importantes polifonistas portugueses dos séculos XVI e XVII. Acedido em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_de_Cristo
Segundo o rito vivencial do catolicismo monástico, mas também, “mutatis mutandis”, catedralício, o coro é, por excelência, o lugar do mais puro louvor, onde escorrem horas em repetições de orantes melopeias, substanciadas em cantochão simples ou em “alternativo” com as polifonias que, no caso de Santa Cruz, eram, inclusivamente, ali nascidas ou com a voz do órgão que, desde muito cedo, também naquele espaço religioso havia entrado.
Pereira, A. N. Do cadeiral de Santa Criz, 2.ª edição. Introdução de Mário Nunes. Abertura de Anselmo Ramos Dias Gaspar. Prefácio à segunda Edição, de Marco Daniel Duarte. 2007. Coimbra, Câmara Municipal.
Soube hoje através de As Beiras.pt que Carlos Santarém partiu.
Fica aqui a minha despedida publica de um Amigo.
Carlos
Já se passaram alguns anos sobre o tempo em que, todas as semanas, nos encontrávamos para procurar soluções e resolver problemas. Umas vezes acertávamos, outras vezes decidimos de forma que se veio a mostrar menos conseguida. Mas trabalhamos sempre com lealdade e estima um pelo outro.
Depois a vida separou-nos. Segui, sempre e de longe, o teu labor, o trabalho em que ias, pacientemente, procurando descobrir mais e mais da história da nossa Coimbra.
Agora partiste e muito ficou por dizer entre nós. Resta-me dizer-te: descansa, finalmente, em paz.
O velho amigo, Rodrigues Costa.
Carlos Santarém Andrade (Gouveia 1941-Coimbra 2023). Imagem acedida em www.asbeiras.pt/2023/01/faleceu-carlos-santarem-andrade/
É mais um Amigo que parte. As nossas vidas cruzaram-se quando ele era Chefe de Divisão da Biblioteca Municipal e eu Diretor de Departamento.
O trabalho em comum e o respeito mútuo geraram em nós uma amizade que persistiu mesmo quando a vida separou os nossos caminhos.
A Carlos Santarém ficamos a dever muitas entradas publicadas neste blogue, sobre trabalhos seus, nomeadamente os da série “Passear na Literatura”.
A parte final da sua vida, marcada pela doença, foi difícil, mas também foi um exemplo. Pesquisou e publicou quase até ao dia da partida.
Conimbricense por adoção foi Autor de uma vasta bibliografia que iniciou, ainda com estudante como redator da “Vértice”.
Dessa extensa bibliografia, em que Coimbra estava quase sempre presente, destacamos seis obras onde a mesma é ainda mais visível:
Coimbra na Vida e na Obra de Camilo Castelo Branco, capa. 1995
A Coimbra de Eça de Queirós, capa. 1995. Imagem acedida em www.wook.pt/livro/coimbra-de-eca-de-queiros-carlos-santarem-andrade/44831
A Envolvência Coimbrã de Régio e Nemésio, capa. 2001. Imagem acedida em https://www.bing.com/images/search?
Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação, capa. 2022, www.wook.pt/autor/carlos-santarem-andrade/8542/122
Obras a que juntamos: Os dias de Coimbra na Criação de Miguel Torga, 2003; e Coimbra à Minha Procura: O Percurso Coimbrão de Ruben A. 2005.
Para além das palavras do Senhor Vereador da Cultura, fica a faltar a homenagem que Coimbra e, nomeadamente, o seu Município lhe deve.
Nesta singela homenagem fica o clamor, na esperança de que Coimbra não continue a ser madrasta para aqueles que se destacaram no seu engrandecimento.
Até sempre Carlos Santarém Andrade.
Rodrigues Costa
O Arquivo da Universidade de Coimbra, dedicou este mês, a série “Documento do mês”, a um documento bastante curioso.
Trata-se de uma resolução do Claustro Pleno da Universidade, datada de 2 de janeiro de 1693, em que se decide sobre a receção da Rainha D. Catarina, viúva do Rei de Inglaterra D. Carlos II, regressada a Portugal.
PT/AUC/ELU/UC – Universidade de Coimbra (F); Livros dos Conselhos (SR), vol. 30, fl. 65v – cota AUC-IV-1.ªD-1-2-79
PT/AUC/ELU/UC – Universidade de Coimbra (F); Livros dos Conselhos (SR), vol. 30, fl. 65v – cota AUC-IV-1.ªD-1-2-79. Pormenor
Rainha D. Catarina de Inglaterra. Imagem acedida em https://www.bing.com/images/search?view=detail ..
O documento é assim descrito
Sob a presença do Reitor da Universidade D. Rui de Moura Teles, cuja assinatura figura em primeiro lugar, no final do registo, teve lugar o claustro pleno da Universidade, em que se decidiu “sobre a vinda da Senhora Rainha da Gram Bertanha e carta que Sua Magestade que Deus guarde escreveu à Universidade.”
O Rei D. Pedro II, irmão de D. Catarina, na carta dirigida à Universidade e que foi lida em claustro pleno, recomendava que se fizessem todas as demonstrações na receção de D. Catarina:” como se fora a sua própria pessoa”.
A Rainha D. Catarina, filha do Rei D. João IV e da Rainha D. Catarina de Gusmão, estivera casada com o Rei de Inglaterra D. Carlos II, desde 1662 até 1685, ano do falecimento do Rei. Permaneceu em Inglaterra até 1692, tendo regressado a Portugal em meados desse ano, mas só chegou a Lisboa em 20 de janeiro de 1693.
A sua presença em Coimbra teve lugar entre os dias 8 e 11 de janeiro de 1693, tendo ficado hospedada no Paço Episcopal, onde recebeu uma comitiva da Universidade, que lhe apresentou cumprimentos.
Paço Episcopal em finais do séc, IX, atual Museu Nacional Machado de Castro
No seu dote de casamento levava as possessões de Tânger e Bombaim que passaram assim para o domínio inglês. A sua presença em Inglaterra não agradou a todos, sobretudo por ser católica e por não ter podido dar ao Rei D. Carlos II um descendente. Mas a sua presença naquele país ficou marcada por hábitos que introduziu na corte, como a bebida do chá e a sua aceitação nos Estados Unidos da América, então ainda possessão inglesa, foi enorme tendo sido dado em sua homenagem o nome de Queens a um dos bairros de Nova Iorque.
No final do registo, do punho do escrivão da Universidade João Correia da Silva (cuja grafia tão particular levanta sempre dúvidas de leitura) podemos ver as assinaturas dos lentes de cada Faculdade: Frei Bento de São Tomás, Frei José de Carvalho, Dr. João Batista Soares, Manuel da Costa de Almeida, Valério Farinha e D. Nuno Álvares Pereira de Melo.
É necessária uma chamada de atenção para a grafia do ano que se apresenta no registo, como sendo 1692, mas que foi um lapso do já referido escrivão João Correia da Silva. Efetivamente, trata-se do ano letivo de 1692-1693 e o registo da folha seguinte é bem explícito, de 26 de janeiro de 1693, enquanto o registo da folha anterior era de 7 de dezembro de 1692.
Do documento é, ainda, apresentada a respetiva transcrição que para os mais interessados está disponível em: https://www.uc.pt/.../docs/documentodomesdejaneiro2023
AUC. Resolução do Claustro Pleno da Universidade, datada de 2 de janeiro de 1693. Quota PT/AUC/ELU/UC – Universidade de Coimbra (F); Livros dos Conselhos (SR), vol. 30, fl. 65v – C.
O Arquivo Histórico Municipal de Coimbra prossegue na sua meritória tarefa de divulgar os documentos mais relevantes do património à sua guarda.
Hoje damos nota de uma publicação subordinada ao título Escrita no Feminino no qual é divulgado um documento autografado por D. Joana, princesa.
Imagem acedido em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Joana,_Princesa_de_Portugal#/media/Ficheiro:Santa_Joana,_Princesa_de_Portugal.jpg
Na introdução da publicação pode se ler o texto que se transcreve.
As profissões femininas são geralmente entendidas como aquelas ligadas ao cuidado das crianças, ao sustento familiar, à limpeza e arrumação da casa.
A tecelagem, a confeção de roupas e dos alimentos são por isso as profissões mais comummente associadas ao género feminino ao longo dos séculos. A aprendizagem e exercício da escrita não lhe andam vulgarmente associadas.
Este ofício aparece ligado à religião cristã, para o estudo, oração e exercício da liturgia. É também associado ao registo de informação, para fins legais: fiscais/judiciais, diríamos hoje, sendo exercido pelos escrivães, oficiais régios e senhoriais, para administração de bens e património. Em ambas as situações os profissionais são homens.
Todavia, os séculos XV e XVI vão ser períodos de mudanças. Os homens saem para a guerra e é preciso continuar a assegurar a retaguarda. Pouco a pouco a necessidade de exercício de uma atividade vai obrigar também o género feminino a aprender a ler e a escrever.
Selecionámos alguns documentos do AHMC em que testemunhamos a escrita no feminino, quer sejam documentos elaborados pelas rainhas e princesas, quer sejam documentos onde nos surgem a assinar mulheres de outros estratos sociais.
A transcrição paleográfica destes documentos pode ser consultada em: https://www.cm-coimbra.pt/wp-content/uploads/2009/12/coimbra.old_joomlatools-files_docman-files_Catalogo_da_Coleccao_do_AHMC_Cartas_Originais_dos_Infantes_1418-1485.pdf?fbclid=IwAR3hQec1UgCtm9jg6oWgvC_A3IUrH58XoxvsA7jJIVWCpvSnC7uOe4Nn-3Q
O documento referido integra a coleção das Cartas Originais dos Infantes.
Anverso do documento
Verso do documento.
Escrito em Lisboa e datado de 7 de novembro de 1471, está registado como PT/AHMC/COI/ nº 77 [1471]. Do mesmo, em https://www.cm-coimbra.pt/wp content/uploads/, é feita a seguinte descrição.
Carta da infanta D. Joana, filha de D. Afonso V, aos juízes, vereadores, procurador, fidalgos, cavaleiros e povo da cidade de Coimbra informando da tomada das praças de Arzila e Tânger aos mouros, e da satisfação do rei e do príncipe D. João e recomendando também aos povos que fizessem preces e estivessem preparados para a guerra.
Suporte: papel, sem marca de água dimensão: 210 x 292 mm selo: selo de chapa com a divisa da infanta escrivão: a própria infante assinatura autógrafa: Infante remetente: por a infante destinatário: Aos juízes vereadores procuradores fidalgos e cavaleiros e escudeiros e povo da mui nobre e leal cidade de Coimbra Obs.: Tem restauro antigo com tiras de papel de cor azul, para reforço do suporte. Registado a tinta ferro-gálica escura, Nº 19. Escrito por mão posterior: da Princesa Santa Joanna, filha de D Affonso V.
Arquivo Histórico Municipal de Coimbra. Escrito no Feminino. Acedido a partir de:
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