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O processo de fixação e estruturação do território não foi espontâneo nem casual, uma vez que obedeceu à lógica da implantação das Ordens e Comunidades religiosas e fixação das suas agregações em porções de terreno delimitados por cercas.
A regra de localização das capelas e igrejas foi ditada ao longo da via principal, aquela pela qual “todos” passavam, podendo assim fazer cumprir as suas obrigações de assistência no apoio aos peregrinos e de quem mais precisasse. Assim, o arrabalde passou a ser definido pela colocação de igrejas ao longo do eixo viário, direcionando todo o espaço urbano. Implantaram-se quatro templos: Santa Justa, S. Tiago, S. Bartolomeu e o convento Crúzio.
Os conventos foram as grandes estruturas organizadoras do arrabalde, tendo a sua fundação gerado importantes aglomerações, dentro de novas circunscrições religiosas. O casario crescia de forma compacta em torno dessas igrejas paroquiais.
Planta de Coimbra dos finais do século XVIII. Autor não identificado.. Fonte: “a Sofia. Primeiro episódio da reinstalação moderna da Universidade portuguesa”, Walter Rossa in Monumentos. Nº25. Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Setembro 2006. p.16. Op. cit., pg. 31
Destes espaços abertos nasceu uma tipologia urbanística que vive ainda nos nossos dias: o terreiro e o adro sempre foram espaços ancestrais de encontro e troca na cidade medieval. Poder-se-á dizer que são um elemento espacial identificador da cultura citadina. Os aglomerados populacionais reuniam-se à volta de uma paróquia como suporte institucional e espiritual da vida em comunidade. Atualmente, os largos fronteiros das igrejas ainda são palco de manifestações religiosas e culturais.
Largo de Sansão, hoje Praça 8 de Maio. Inícios do séc. XX
Praça do Comércio actual, após a remodelação em 2002. Fonte: BOOKPAPER – Publicidade e Artes Gráficas, Lda. in Coimbra Através dos Tempos, 2004, p.151. Original existente na Imagoteca da Biblioteca Municipal de Coimbra.
Dentro do sistema urbano, as Ordens religiosas dividiam-se e tinham funções bem específicas. A Ordem dos Agostinhos, implantada na parte alta da cidade, dava um apoio importante do poder real no processo da Reconquista e servia como referência dessa organização espacial. Posteriormente, deu-se a explosão urbanística fora das muralhas e o auge do processo de consolidação territorial, onde as ordens mendicantes – Dominicanos e Franciscanos – reforçariam o vigor e o entusiasmo burguês no desenvolvimento comercial das cidades. As ordens revelaram-se uma instituição que regrava toda a “política comunal das cidades”.
Enquanto arrabalde, a zona da Baixinha era considerada um bairro fora de portas, pertencente ao subúrbio da povoação da cidade alta, fora dos limites administrativos, mas com forte vocação mercantil. Situado entre a calçada romana e o rio, a zona fixava todas as atividades relacionadas com o comércio. Os mercadores instalavam-se ao longo da via, fora do perímetro amuralhado, onde os produtos não estavam sujeitos a taxas e onde havia espaço mais amplo, mais barato e de maior acessibilidade. O percurso mais direto entre a ponte e a porta da cidade foi o ponto propício ao início do fluxo de atividade comercial, donde resultou a chamada Rua dos Francos. Era o local onde se cobravam os direitos de “portagem”, quando as mercadorias ficavam dentro da cidade, ou de “passagem” quando estas apenas transitavam dentro dela Daí resultar a conformação de um “Largo da Portagem” com continuação da rua a que, hoje, designamos de Ferreira Borges.
Rua Ferreira Borges. Meados do século XX.
Durante toda a época medieval houve um progressivo desenvolvimento comercial da zona ribeirinha, potenciando a sua definição e consolidação urbana.
Ferreira, C.C. Coimbra aos pedaços. Uma abordagem ao espaço urbano da cidade. Prova Final de Licenciatura em Arquitectura pelo Departamento da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, orientada pelo Professor Arquitecto Adelino Gonçalves. 2007, acedido em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/13799.
Da observação ao tecido urbano da Baixinha, são detetados alguns padrões morfológicos das cidades medievais, formalizados segundo percursos, largos, praças e quarteirões irregulares. Todos estes elementos de composição urbana possuem forte interdependência, originando um tecido coeso e destacado da restante morfologia.
A sua análise ilustra as características específicas de um modelo fundador da morfologia urbana que continuou a assegurar a unidade e continuidade no espaço e no tempo. O seu aspeto formal reflete as dinâmicas do urbanismo medieval, onde o espaço sempre teve funções de encontro, de troca e de circulação de bens e ideias. O carácter multifuncional, dado na altura, contribuiu para que os elementos estruturadores do espaço fossem agregadores de todas as atividades sociais, económicas, políticas e religiosas da urbe. A rua e a praça eram por isso, os elementos principais do sistema, assumindo o carácter central e identificador para cidade.
Planta reproduzindo a morfologia urbana do arrabalde de Coimbra do século XIII. A colina da cidade alta está representada só pelos limites físicos da muralha.. Fonte: Imagem trabalhada graficamente a partir de desenho de Maria Raquel de Brito e Penha in Coimbra: caminhos de uma cidade. Evolução morfológica da cidade do Mondego. Prova Final do Departamento de Arquitectura da FCTUC. Setembro de 2005. p.37
Como primeira etapa de análise ao tecido urbano deste caso/cidade, procurei esclarecer e anotar algumas etapas do seu processo de formação e consolidação, desde o período romano até aos projetos atuais de intervenção e remodelação da morfologia inicial.
Assim, o sistema topográfico inicial era composto por uma colina e um rio navegável, contribuindo como elemento importante de circulação e ligação às zonas envolventes. Jorge Alarcão faz uma descrição das vantagens topográficas do sítio com “dois vales profundos” que, “cavam um fosso natural em redor da colina”. O primeiro assentamento humano iniciou o processo urbanístico da atual cidade no topo da colina, por razões de controlo territorial e defensivas. Por isso, aqui se implantou o primeiro núcleo citadino que herdou e deu continuidade às preexistências romanas, visigóticas e muçulmanas. O núcleo da Baixinha desenvolveu-se precisamente na borda Poente da colina em contacto direto com a via fluvial.
O local estava inserido numa rede viária de comunicação terrestre, criada na altura de expansão e difusão do Império Romano, funcionando para que todo o tipo de informação, acontecimentos e bens materiais fossem difundidos pelo território peninsular. O poder relacional da via tornou-a no principal agente de divulgação e consolidação urbanas. Assim, a via litoral da Península Ibérica Olissipo-Bracara Augusta foi uma ferramenta do sistema urbano nacional, importantíssima para o processo de assentamento e aglomeração urbanística, pois funcionou como um canal de ligação e como ponto de encontro junto dos aglomerados e promoveu o suporte às relações urbanas.
Estrutura urbana da Baixinha. Em sequência (de baixo para cima): o Largo da portagem; a rua Ferreira Borges e Visconde da Luz; a meio, a Praça do Comércio com as igrejas de S, Bartolomeu e S. Tiago; a Praça 8 de Maio como a igreja de Santa Cruz.
Neste sentido, a Baixinha, é o reflexo formal da aglomeração implantada em torno de uma via de passagem às portas de entrada da muralha da cidade propriamente dita.
Ferreira, C.C. Coimbra aos pedaços. Uma abordagem ao espaço urbano da cidade. Prova Final de Licenciatura em Arquitectura pelo Departamento da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, orientada pelo Professor Arquitecto Adelino Gonçalves. 2007, acedido em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/13799.
Em relação às políticas públicas de habitação, o Estado promove um Programa das Casas Económicas com vista à construção de habitações para alojamento da população sem capacidade de fazer frente à lógica do mercado imobiliário. A campanha visava atrair e fixar pessoas, oferecendo condições de estabilidade familiar e de emprego, contribuindo para desencorajar os conflitos laborais.
Dentro deste contexto, nasce em Coimbra o bairro de habitação, englobado no projeto de Planeamento geral da cidade, marcando um novo polo de expansão territorial. Atualmente, chamado de Bairro Norton de Matos, assinala uma das centralidades da rede urbana e marca morfologicamente a ação e convicções de desenho do período pelo qual foi construído.
Bairro Norton de Matos e igreja de S. José, anos 50
Nas décadas de 50 a 70, deste mesmo século, é de assinalar o aparecimento de uma nova geração de arquitetos portugueses, nascida pela revolta às convicções urbanísticas impostas pelo regime estadonovista e pela divulgação teórica que saía dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna europeus.
… Em Coimbra, a ânsia de construir a Cidade Moderna está presente nas experiências realizadas na Solum, uma zona multifuncional da cidade com um modelo reconhecível e delimitado.
Bairro da Solum. Na parte superior da imagem à direita, vislumbra-se o início da sua construção
Juntamente com Celas e com o Bairro Norton de Matos, desenha-se uma faixa Nascente de núcleos direcionais do crescimento e consolidação urbana.
Assim, tendo como referência a cidade alta, a expansão de Coimbra foi direcionada em três zonas. A zona Nordeste de Celas
Hospital da Universidade de Coimbra inserido na área do Pólo III. Urbanização dispersa. O somatório de construções de diferentes escalas, cria vazios desconexos para o conjunto urbano. As formas fragmentadas da urbanização foram conduzidas pelo traçado dos eixos viários. Fonte: Filipe Jorge, 2003, in Coimbra Vista do Céu, p.59.
e Sudeste do Bairro Norton de Matos e Solum.
Construção do Pólo II da Universidade de Coimbra. Ocupa a área do antigo Pinhal de Marrocos que circundava o território consolidado. “O campus universitário (…) produz novas polaridades monofuncionais que ainda se articulam mal com a morfologia e o quotidiano da cidade.” (DOMINGUES, 2006: 31) Fonte: Filipe Jorge, 2006, in Cidade e Democracia. 30 Anos de Transformação Urbana em Portugal. Coordenação de Álvaro Domingues. p.31.
Cada núcleo com características bem diferentes, são uma referência importante para o processo de crescimento urbano da cidade. Assinalam uma marca tipológica e ideológica gerando diferentes “modelos de cidade” e por isso, cabendo nos seguintes capítulos como uma mostra de cidade autónoma e singular. Contribuem para a diversificação e polarização do conjunto urbano.
Conceitos como limite, fragmentação, continuidade, dispersão e coesão foram importantes para perceber toda a dinâmica que o desenho urbano gera na realidade, ou na chamada dinâmica urbana – aquela onde contribuem todos os domínios da polis.
Ferreira, C.C. Coimbra aos pedaços. Uma abordagem ao espaço urbano da cidade. Prova Final de Licenciatura em Arquitectura pelo Departamento da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, orientada pelo Professor Arquitecto Adelino Gonçalves. 2007, acedido em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/13799.
Com a presente entrada iniciamos a divulgação de uma interessante prova final da Licenciatura em Arquitetura, apresentada em 2017, por Carolina Conceição Ferreira, intitulada Coimbra aos pedaços: uma abordagem ao espaço urbano da cidade.
Op. cit., capa
Coimbra implantou-se no monte a 90 metros de altura sobre um rio navegável – o Mondego.
A estrutura urbana teve início no período romano e o sistema principal para a formação do castro era simples: uma elevação, para maior controlo do restante território, um rio e a via Olissipo-Bracara Augusta, que estabelecia a comunicação terrestre com o restante território peninsular.
Estava, assim, iniciado o processo de conformação da polis com seus órgãos de poder residentes no Fórum.
A fixação inicial não demorou até extravasar os limites em direção à zona mais baixa, junto do rio e ao longo da via romana. As razões defensivas deixaram de fazer sentido e, passado o período das reconquistas e da fixação da nacionalidade, despoletaram outras vontades e outras dinâmicas para o desenvolvimento do castro inicial.
A vida urbana foi-se estabelecendo ao longo da via romana, por ser o sítio de passagem propício a trocas e a todas as atividades relacionais que a caracterizam. A pouco e pouco a aglomeração da edificação foi construindo a via que, mais tarde, passou à designação de rua. Foi o lugar privilegiado para a ação e prática da cidadania.
O limite imposto pela muralha assinalou o zoneamento de duas áreas urbanas distintas: a “alta” e a “baixa”. O desenvolvimento da cidade medieval, na parte baixa, caracterizou-se basicamente pela consolidação do núcleo arrabaldino, como uma área de intensa atividade mercantil e social.
Mais tarde chamada de Baixinha, esta zona prevalece o centro da cidade durante longo tempo, depois da cidade alta.
As marcas do tempo foram-se acumulando e persistiram, na memória, até aos nossos dias. A sua carga simbólica na cidade atual faz, deste núcleo, um centro cheio de referências históricas com características tipo-morfológicas que identificam o espaço urbano medieval. Foi o primeiro grande tema da expansão e crescimento da cidade.
Fotografia aérea vertical da cidade com os núcleos destacados no território. Fonte: Fotografia aérea vertical. Agosto 2001. Socarto. in Coimbra Vista do Céu p.6. Original da METRO-MONDEGO SA.
Uma segunda grande ação de expansão territorial marcou a história do século XIX, corresponde ao nascimento da urbanística como disciplina de planeamento urbano.
…. Em Coimbra, foi rasgada uma Avenida à imagem de boulevard parisiense ligando a parte baixa à parte alta da cidade e projetando-a a novas extensões de território englobando os restantes burgos periféricos no seu perímetro.
Esta ação urbanística foi grandiosa, na medida que introduziu elementos inovadores no projeto urbano - redes de saneamento, abastecimento e iluminação públicas – e conseguiu, numa grande extensão de terreno “vazio”, planear e regular toda a edificação e infraestruturação a longo prazo do território. O resultado visível revela uma estrutura sólida e funcional capaz de suportar as mudanças programáticas e morfológicas normais da cidade.
Fotografia vertical do Bairro de Santa Cruz em 1934. Arquivo Histórico das Forças Armadas.
Este modo de planeamento concilia o investimento público e privado, controlando e delimitando as formas edificadas de cada parcela. O desenho de projeto era utilizado em complemento com a regulamentação logística de atuação para aquele plano. O cenário urbano alterou-se radicalmente, abrindo a “cidade e os cidadãos a novas conceções políticas, sociais e estruturais.” Surgiram novas tipologias e novas relações espaciais para a vivência e organização urbana de Coimbra. O peso infraestrutural da Avenida Sá da Bandeira lançou as bases das novas formas de conexão espacial da cidade.
Noutra etapa, o Estado Novo, regime político vigente entre 1933 e 1974, marcou toda a cultura urbanística portuguesa do século XX. Caracterizou-se pelas suas políticas autoritárias e de acentuado controlo social e ideológico. Essas convicções deixaram marcas no território urbano e no desenho da cidade, acentuando a baixa densidade, o uso de tipologias unifamiliares, estruturas viárias hierarquizadas e regulamentação higienista.
A ação estratégica de urbanizar o território segundo planos e métodos uniformizadores, foi concretizada através de Planos Gerais de Urbanização para as várias cidades do país, utilizando-os para a expressão da ação e controlo do Estado sobre o espaço social.
Antevisão da Avenida de Santa Cruz, construída à custa da demolição das construções localizadas entre as Ruas da Moeda e Bordalo Pinheiro, do desaparecimento de alguns largos medievais típicos e da destruição da Estação Nova de Caminhos-de-ferro. Fonte: Ante-projecto de urbanização da cidade de Coimbra. Étienne De Groer. 1948
… Foi o caso de Etienne De Gröer, urbanista parisiense, que elabora o plano para Coimbra e lança as bases orientadoras do processo de expansão urbana da atual cidade. Com palavras do urbanista é mostrada a intenção geral deste «Plano de Extensão e Embelezamento de Coimbra».
Ferreira, C.C. Coimbra aos pedaços. Uma abordagem ao espaço urbano da cidade. Prova Final de Licenciatura em Arquitectura pelo Departamento da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, orientada pelo Professor Arquitecto Adelino Gonçalves. 2007, acedido em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/13799.
O Arquivo da Universidade de Coimbra, dedica o Documento do Mês a um pequeno livro datado de 1748, escrito sob o pseudónimo, Paulo Moreno Toscano e, como era uso da época, com o longo título (sic) Concelhos para os Novatos. Occuparem o tempo das Ferias, com a utilidade do seu adiantamento; e dictames para devorarem o «Mino-Tauro» de hum engano enserrado no «labyrintho» de inumeraveis lograções, o qual à instancia do «Minos» de hum Veterano, tributario do mesmo monstro na «Creta» Conimbricense, fabrica o «Dedalo» de hum depravado gosto.
Capa do livro. PT/AUC/PFM/JV – Jardim de Vilhena (F) – VI-3.ª- 2-3-12.
O livro é assim descrito.
Neste mês trazemos à divulgação um raro opúsculo, de oito páginas, impresso por Francisco de Oliveira, impressor da Universidade e também do Santo Ofício. Pouco se conhece do seu autor, a não ser o que ele próprio nos diz no citado opúsculo. Era, certamente, estudante da Universidade, como afirma. “E a Deus que se faz tarde, outro dia te contarei o mais que passei no anno de Candieiro”. E logo nesta frase nos dá a conhecer o jargão dos estudantes de Coimbra, pois a designação de candeeiro aplicava-se, como em outra parte do texto refere, aos estudantes do quarto ano, por ser esse ano, “aquele em que os Estudantes com as luzes da Ciencia, costumaõ resplandecer, e luzir...”.
No entanto, o nome deste autor, Paulo Moreno Toscano, não figura no ficheiro de alunos da Universidade, levando a supor que terá utilizado um pseudónimo.
Todo o texto é escrito com humor, não faltando alguma sátira a costumes da academia, os quais só com uma leitura atenta podemos descortinar, tal é a verbosidade do autor. Mas não pode deixar de citar-se a alusão às tradições gastronómicas e à toponímia, com alguns dos locais tradicionais de Coimbra, onde acorriam os estudantes de fora da cidade, mal aqui chegavam, como a Fonte dos Amores ou Santo António dos Olivais. É bem elucidativo o texto, quando se lê (atualizando a grafia): “levando-me a Santo António dos Olivais me fizeram pagar um tabuleiro de tigelinhas de manjar branco, que uma mulher tinha para vender, não me dando mais que duas para provar. Bem via eu que havia de pagar as favas que o asno comeu, por alto preço e agora alcanço que é bem louco o Novato que crê em palavras de veteranos...”.
Os códigos de praxe estavam já instalados e este opúsculo é fértil nos testemunhos do que se passava com todos os estudantes, fossem eles um novato, semiputo, candeeiro ou veterano. Este opúsculo virá a ter sequentes edições, três anos depois, em Lisboa, na oficina do impressor Domingos Gonçalves, em 1751 e uma outra, também em Lisboa, pelo
impressor Inácio Nogueira Xisto, em 1765, estando já nestas edições corrigida a grafia Conselhos.
Esta obra, em toda a sua escrita satírica e jocosa, juntamente com outros títulos como Palito Métrico e a Carta de Guia para os Novatos, são essenciais para conhecer as antigas tradições académicas, a sociabilidade estudantil e tantas outras circunstâncias da vida dos académicos em Coimbra que hoje são desconhecidas de muitos.
Concelhos para os novatos… / intimados por Paulo Moreno Toscano. Coimbra: Na Officina de Francisco de Oliveira, Impressor da Universidade e do S. Officio, 1748. Acedido em https://www.uc.pt/.../docs/documentodomesdeoutubro2022
No alçado anterior do edifício é bem notória a força de uma gramática classicizante de sabor italiano, mas embora se encontrem aqui as linhas dominantes, não podemos deixar de lhe chamar eclética, no total sentido do termo; é que o ecletismo deixou de ser interpretado como uma posição de incerteza para se transformar numa proposta de liberdade, onde não cabe mais o formulário unilateral .
…. Em arquitetura, mais do que em qualquer outra disciplina artística, os orçamentos são determinantes e a Universidade não dispunha, ao tempo, de verbas vultuosas que fizessem face a um imóvel luxuoso, no entanto queria, certamente, um edifício digno.
Fachada anterior da Faculdade de Letras, projetada pelo Arquiteto Silva Pinto
É dentro destes parâmetros que se apresenta a proposta do arquiteto. Bem ritmado, com o piso térreo de silharia de junta fendida e torreões marcados nas extremidades, a zona central do primeiro andar apresenta as aberturas vazadas no paramento e separadas por pilastras adossadas à parede ou por colunas duplas. A parte superior do vão das janelas oscila entre o arco de volta perfeita e o frontão triangular, para, numa liberdade criativa total, mostrar o lado inferior das ventanas colocadas nos pseudotorreões a acompanhar os degraus da escada interior.
Remata o edifício uma platibanda que faz lembrar os coroamentos tipo Adam's, com um baixo-relevo central, maqueta de Costa Mota (sobrinho), levado a cabo já em 1929.
[O relevo, que media 6x4,5 metros, ostentava na parte superior uma esfera armilar, ao centro a esfinge e na base folhas de louro, uma joeira e livros representando a ciência. Manuel de Jesus Cardoso passou à pedra o projeto apresentado pelo escultor. A imprensa local não regateou elogios ao arquiteto Silva Pinto, a Costa Mota, que já no ano anterior estivera em Coimbra, a fim de se inteirar do contexto onde seria colocada a peça e ao mestre de obras João dos Reis].
Lamentavelmente o projeto não se realizou tal como havia sido concebido. Construído ao longo de duas dezenas de anos, cedo mostrou a exiguidade de espaço. O arquiteto viu-se na necessidade de, no decorrer das obras, criar uma área maior dentro da estrutura prevista. As modificações cifraram-se no acrescento de um piso, o que obrigou os torreões a subir e a dar lugar, em cada um, a três frestas, de pés direitos lisos, coroados por uma balaustrada.
Na platibanda foram suprimidos os graciosos remates hemicirculares, os pilaretes alteados e transformados apresentavam-se agora num “resolve situações” que não eram nem colunas, nem pilastras. O local destinado ao relevo, de levemente arredondado, mudou-se para desproporcionado frontão triangular. Este novo andar, do ponto de vista gramatical, nada tem a ver com o restante edifício, e foi pena, pois o imóvel possuía uma marca de sobriedade, elegância e harmonia.
Além da fachada principal, referida detalhadamente, a construção continha ainda mais três faces a confinar lateralmente com as ruas de S. Pedro, de Entre Colégios e na zona posterior com a das Parreiras.
Fachada posterior da Faculdade de Letras, projetada pelo Arquiteto Silva Pinto
Desta, sobressaem os três grandes janelões rasgados no paramento, a fim de iluminar a sala que se destinava a Museu. Eram coroados por um frontão triangular sobre o qual se destaca a cúpula de ferro e vidro a cobrir o recinto.
Estes alçados, embora mais modestos, não destoavam do conjunto.
Ainda quase por acabar, quando se davam os derradeiros retoques, o camartelo bramido por ordem lisboeta, embora com a aprovação (talvez implicitamente forçada) do Senado da “velha” Universidade, agora a completar sete séculos, arrasou-lhe a fachada, esventrou-lhe as entranhas e desbaratou-lhe parte da decoração.
De qualquer forma, a primeira Faculdade de Letras, no seu conjunto, expressava um maior gabarito do que a atual fachada da Biblioteca Geral, que, ao fim e ao cabo e despudoradamente, ainda se apoderou de grande parte das estruturas interiores. O amplo salão de leitura e a cúpula elíptica, de arrojado traçado, que o encimava, foram reaproveitados, embora a contextura de um mal-amanhado teto disfarce aquela composição; o mesmo aconteceu com o elegante vestíbulo e escadas de acesso.
Portão que fechava uma das portas da Faculdade de Letras, sem a bandeira, e atualmente instalado na entrada poente da cerca do Jardim Botânico.
Nem sequer tiveram dó dos belos portões de ferro forjado, dos magníficos lustres do mesmo material, dos lindos artefactos de talha que se encontravam portas a dentro e do grande vitral de manufatura italiana existente na vasta sala do Museu.
Mas “no reinado dos bota abaixo” o que se poderia esperar de quem não se compadeceu com o derrubar da maior parte do centro histórico da cidade e nem compreendeu o diálogo travado entre o complexo cultural e a malha urbana envolvente, bem como as relações daqueles com a massa humana que ali se movimentava e habitava?
A zona do Paço das Escolas continha em si muito mais do que meras construções, era a memória coletiva de todo um passado que não interessa renegar, mas sim compreender, até para nos abrir a porta do futuro; era o cenáculo da cultura, mas era também o local por onde haviam passado gerações e gerações de estudantes, de frades, de professores, de funcionários; era ainda ali que o saber e os artífices se abraçavam ou se digladiavam, ficando uns no cimo da colina e estendendo-se os outros pela parte baixa da urbe. Com o derribar dos edifícios, lançaram também por terra toda esta vivência.
A personalidade e os conhecimentos do arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto ressaltam dos muitos projetos que elaborou durante a vida. O edifício da Faculdade de Letras, sobretudo na sua versão original, comprova-o.
Anacleto, R.; Poilicarpo, I.P.L. O arquitecto Silva Pinto e a Universidade de Coimbra, em Universidade(s). História. Memória. Perspectivas, vol. 2, Congresso História da Universidade. 7.º centenário. Coimbra, 1991, p. 327-346.
O Dr. Mário Araújo Torres, prosseguindo na sua senda de reeditar livros da bibliografia coimbrã, esquecidos pelo tempo, acaba de dar à estampa mais uma obra, esta dedicada aos Batalhões Académicos e, nomeadamente ao de 1846-1847.
O livro leva o seguinte título: O Batalhão Académico de 1846-1847. Notas por António dos Santos Pereira Jardim. Publicadas com aditamentos por António João Flores. Recolha de textos, introdução e notas por Mário Araújo Torres.
O Batalhão Académico de 1846-1847, capa
O Batalhão Académico de 1846-1847, contracapa
O original foi editada em 1888, pela Imprensa da Universidade com o título Noticia Historica do Batalhão Academico de 1846-1847. Notas do Dr. António dos Santos Pereira Jardim.
O Batalhão Académico de 1846-1847, pg. 72
Na Introdução, Mário Araújo Torres faz uma breve bosquejo dos diversos Batalhões Académicos que ao longo dos tempos foram constituídos, identificando os seguintes:
- 1644-1645, no âmbito da «Guerra de Restauração»;
- No decurso das invasões francesas, por três [vezes] se organizaram … em 26 de Junho de 1808, … em 2 de janeiro de 1809 … em 9 de novembro de 1810;
- A eclosão das «lutas liberais … em 1826, foi formado um Batalhão de estudantes liberais, … na sequência da revolta do Porto, de 16 de maio de 1828, contra o Governo de D. Miguel;
- Face à Revolta dos Marechais … de julho de 1837; e
- Aquando da eclosão, em abril de 1846, da «Revolta do Minho (Maria da Fonte)».
De salientar que no texto do livro ora reeditado, nas páginas 34 e 35, é descrita a ação do Alto do Viso, do dia 1 de maio de 1847. Nessa ação se bateram com a maior bravura os 31 académicos, que nela se acharam, formando a linha de atiradores. Depois de enumerar os académicos que participaram na ação, acrescenta: Destes faleceram quatro, sendo no campo da batalha o Tenente Manuel Fialho de Abreu Simões e o Voluntário José António Carlos Madeira Torres; e depois da batalha Aires de Araújo Pereira Negrão e Domingos António Ferreira.
O Batalhão Académico de 1846-1847, pg. 72 . Notas manuscritas do discurso proferido pelo Visconde de Sá da Bandeira, por ocasião do funeral de José António Carlos Madeira Torres, em 3 de maio de 1847.
Discurso que concluía com a seguinte frase. «Durante o combate todos [os académicos] se portaram com admirável valor.
Nota: Com esta entrada, mais uma vez, se chama a atenção de todos os conimbricenses e, nomeadamente, da Câmara Municipal para a obra de grande valor cultural e histórico que, a expensas suas, Mário Araújo Torres, vem realizando. Tenho esperança que na conferência inaugural do recomeço das Conversas Abertas, que irá proferir no dia 27 de janeiro, do próximo ano, subordinada ao tema Autodidatas ilustres de Coimbra, na segunda metade do séc. XIX, seja o momento em que, quantos amam a nossa Cidade, ao menos, lhe possam dizer de viva voz: OBRIGADO.
Rodrigues Costa
Jardim, A.S.P. e Flores, A.J. O Batalhão Académico de 1846-1847. Notas por António dos Santos Pereira Jardim. Publicadas com aditamentos por António João Flores. Recolha de textos, introdução e notas por Mário Araújo Torres. 2022. Lisboa, Edições Ex-Libris
Depois da implantação da República, as diversas conjunturas nacionais sofreram fortes mutações e a instituição universitária não escapou ao embate; suprimiram-se algumas faculdades e criaram-se outras em sua substituição, ou a preencher lacunas há muito reconhecidas. É neste contexto que o Decreto com força de lei de 19 de abril de 1911 funda a Faculdade de Letras.
… O problema das instalações colocou-se de imediato à nova direcção; como consequência solicitou ao governo a cedência do terreno onde se andava a construir o edifício destinado ao Teatro Académico e que ocupava o sítio do antigo Colégio S. Paulo.
A Faculdade de Letras foi construída no local onde outrora se erguia o Colégio de S. Paulo Apóstolo
Fachada do lado Nascente do Colégio de S. Paulo Apóstolo
A entrega deste espaço, onde atualmente se encontram erguidos, grosso modo, a Biblioteca Geral e o Arquivo da Universidade, verificou-se através da sua concessão outorgada pelo ministro do Fomento, António Aurélio da Costa Ferreira e foi festivamente noticiada pela imprensa local.
Para riscar a nova casa universitária encarregaram o arquiteto Augusto de Carvalho da Silva Pinto, professor na Escola Industrial de Brotero e que já prestava esporadicamente o seu concurso àquela instituição. O Conselho da Faculdade aprovou as plantas e alçados do novo edifício a 31 de julho de 1913.
O profissional, dada a grande envergadura do imóvel, viu aqui a possibilidade de projetar um edifício capaz de comportar os conhecimentos adquiridos na escola lisboeta e aprofundados no estrangeiro, até porque a especificidade do arquiteto reside na liberdade de escolher entre as diversas formas arquitetónicas; trata-se de uma prerrogativa individual, que brota do sentimento e não é filha da razão.
Silva Pinto projetou uma fábrica que patenteava uma fachada equilibrada e harmónica, onde os volumes e o movimento provocado pelas aberturas, pilastras e colunas jogavam com a luz.
Faculdade de Letras primitiva, construção da cúpula
O espaço exterior do edifício apresentava uma forma entre o retangular e o trapezoidal; quanto ao interior, embora ajustando-se ao fim a que se destinava, aproveitava algumas fundações do inacabado, ou melhor, mal começado, Teatro Académico.
O então Diretor da Faculdade de Letras, Doutor António de Vasconcelos, a 12 de dezembro de 1914, escreveu-lhe uma carta a comunicar “que o Conselho da Faculdade de Letras, (...) em sessão hoje celebrada para inauguração da parte já concluída do seu edifício em construção, resolveu por unanimidade que se lançasse na acta um voto de louvor pelo “zelo, saber, competencia e desvelado carinho com que VEx.ª fez o estudo da modificação e adaptação, para instalação da Faculdade de Letras, do antigo projécto do teatro académico, aproveitando quasi toda a obra que já se achava realizada; e com que tem dirigido superiormente os trabalhos de construção do mesmo edifício.
Fazendo esta comunicação a VEx.cia junto aos louvores oficiais a expressão dos meus sentimentos pessoais de grata admiração.
“Saúde e Fraternidade.”
Anacleto, R.; Policarpo, I.P.L. O arquitecto Silva Pinto e a Universidade de Coimbra, em Universidade(s). História. Memória. Perspectivas, vol. 2, Congresso História da Universidade. 7.º centenário. Coimbra, 1991, p. 327-346.
A primeira notícia conhecida e que nos fala da possibilidade de criar uma Faculdade de Letras na Universidade de Coimbra remonta ao tricentenário da morte de Camões, ocorrido em 1880. Este organismo e a academia não se mantiveram passivos frente a um acontecimento de tamanha monta.
Coimbra, inauguração do monumento a Camões
O final do século XIX foi fértil em comemorações que iam sendo aproveitadas pelos partidos, pela monarquia ou pelas sociedades secretas. O camoniano, bem inserido no espírito romântico e imbuído de nacionalismo, em virtude da incúria real, acabou por servir os republicanos.
Procissão cívica da comemoração do centenário camoniano. Lisboa. In: “O Occidente”
Reunido o colégio universitário conimbricense em Claustro Pleno no dia 17 de abril de 1880, foram apresentadas várias propostas tendentes a comemorar condignamente a efeméride. O Dr. Augusto Filipe Simões, entre outras medidas, apontou para a necessidade de instituir uma Faculdade de Letras, que, simultaneamente, celebrava o tricentenário e preenchia uma lacuna já sentida no quadro das faculdades vigentes.
Este alvitre veio a transformar-se em reivindicação, porque em 1888 na sessão solene da abertura da Universidade, o Reitor Adriano de Abreu Cardoso Machado, prometeu empregar todos os esforços, a fim de atingir esse objetivo e em 1907, uma comissão de professores das diversas faculdades empenhou-se para conseguir fins idênticos.
As propostas quedaram-se pelas intenções e só trinta anos após a primeira tentativa, já então num quadro político e mental bem diverso, se veio a concretizar aquilo que o Doutor António Ribeiro de Vasconcelos considerava “uma necessidade urgente e inadiável”.
Faculdade de Letras, localizações.
Depois da implantação da República, as diversas conjunturas nacionais sofreram fortes mutações e a instituição universitária não escapou ao embate; suprimiram-se algumas faculdades e criaram-se outras em sua substituição, ou a preencher lacunas há muito reconhecidas. É neste contexto que o Decreto com força de lei de 19 de abril de 1911 funda a Faculdade de Letras.
Este alvitre veio a transformar-se em reivindicação, porque em 1888 na sessão solene da abertura da Universidade, o Reitor Adriano de Abreu Cardoso Machado, prometeu empregar todos os esforços, a fim de atingir esse objetivo e em 1907, uma comissão de professores das diversas faculdades empenhou-se para conseguir fins idênticos.
As propostas quedaram-se pelas intenções e só trinta anos após a primeira tentativa, já então num quadro político e mental bem diverso, se veio a concretizar aquilo que o Doutor António Ribeiro de Vasconcelos considerava “uma necessidade urgente e inadiável”.
Anacleto, R.; Poilicarpo, I.P.L. O arquitecto Silva Pinto e a Universidade de Coimbra, em Universidade(s). História. Memória. Perspectivas, vol. 2, Congresso História da Universidade. 7.º centenário. Coimbra, 1991, p. 327-346.
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