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Armando Sampaio, publicou em 1974, o livro Coimbra onde uma vez … Recordações de um antigo estudante, no qual conta momentos significativos, não só da sua vivência académica, mas de tempos anteriores.
Obra citada, capa
ANTIGAMENTE ERA ASSIM
Coimbra, quando há quase cinquenta anos fui frequentar a sua Universidade, diferia um pouco do que fora antes; e muito, muitíssimo mesmo, do que é hoje.
Contava meu pai, que andara por lá mais de meio século atrás, que no seu tempo, quando não havia ainda ligação ferroviária entre a Estação Velha e a cidade,
Estação Velha, primitiva
os passageiros desembarcados naquela faziam-se transportar para esta em burros de aluguer, mais ou menos lazarentos.
Os seus proprietários, colocados em fila à saída da gare ao lado dos jumentos, apontavam com o dedo indicador para os viajantes que chegavam, gritando com quanta força tinham:
-Burro, sr. doutor!... Burro, sr. doutor!...
(Já nessa época distante eram apodados de doutores quantos passavam pela velha cidade universitária!)
Claro que os homenzinhos não pretendiam insultar fosse quem fosse. O gesto e a fala eram a forma usual de oferecerem a «mercadoria» ...
Com o rolar dos anos - de muitos anos – estenderam a linha do caminho de ferro um pouco mais, construíram a Estação Nova (conheci-a em três edições e três localizações, qual delas a menos feliz!) e quando um dia fui matricular-me nos preparatórios médicos (F. Q. N., assim se dizia) já me apeei nesta, então implantada de costas para o Mondego, talvez porque sendo muito feia tinha vergonha de olhar o rio e o choupal, ambos cheios de beleza … E os burros, que tantas celebridades teriam transportado em seus dorsos, já haviam desaparecido. É evidente que me refiro aos burros propriamente ditos. Os outros não são para aqui chamados; hão de existir sempre!
Ao desembarcar na Lusa Atenas, apesar da ausência dos jericos e da existência do comboio que até atravessava (e atravessa) perigosamente a cidade, o chamado progresso ainda lá não assentara arraiais.
Estação Nova, o barracão inicial. Finais do séc. XIX
Os universitários que iam de longe para tirar seus cursos instalavam-se quase todos em modestos quartos que alugavam na Alta pela módica quantia de trinta a cinquenta escudos mensais – alguns sem janela! – onde, à luz tosca de um candeeiro de petróleo ou, de uma vela, estudavam pela noite fora as matérias que lhes diziam respeito.
Quarto de estudante
As velas de estearina, para alguns, até faziam serviço de relógio:
- «Já estudei meia vela»! «Já lá vai vela e meia, deve ser tarde», eram frases em voga quando, há cerca de 50 anos, ainda não se usavam relógios de pulso e os despertadores constituíam objetos de luxo...
Contavam-se pelos dedos os automóveis que circulavam pelas ruas, incluindo os dois ou três «Fords calças arregaçadas» do «Paleta», então o maior industrial de carros de aluguer do velho burgo, e os «espadas» do Ginja Brandão e do Biel, se bem me lembro, únicos estudantes que naquele tempo gozavam do raro privilégio de possuir automóvel próprio. O comboio e os autocarros de carreira (aliás raros) eram o transporte utilizado por todos nas suas deslocações, excluindo, claro está, os poucos que ainda faziam uso das velhas e ultrapassadas bestas de carga...
Não existiam as placas de direção proibida, não havia problemas de trânsito ou de estacionamento, nem se sonhava ainda com poluição. Eram desconhecidas as modernas expressões: «descontração», «despiste, «contestação, «na medida em que, «em ordem a, «pois, «pá, «quer dizer», etc., que hoje se usam e de que se abusa escandalosamente. No entanto, todos os académicos viviam descontraídos, alguns se despistavam e muitos contestavam já. Mas faziam-no por graça, por irreverência que nunca era desrespeitosa. . .
Imperava, ao tempo, um certo grau ide aparente infantilidade entre a juventude estudantil coimbrã. Infantilidade até certo ponto salutar, que a levava a preencher aquilo a que modernamente se chama tempos livres (horas vagas se dizia então) com brincadeiras inocentes que raras vezes ofendiam a sensibilidade dos mais sisudos ou molestavam terceiros. Brincadeiras que, repetidas hoje, seriam apodadas de estúpidas; mas que não obstavam a que, mais tarde, os seus autores viessem a ser homens notáveis nas ciências, nas artes, na política ou nas letras...
Note-se que não estou a criticar o presente. Recordo, simplesmente, o passado...
Sampaio, A. Coimbra onde uma vez… Recordações de um antigo estudante. 1974. Portalegre
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