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A' Cerca de Coimbra



Quinta-feira, 23.06.22

Coimbra: Mantilha Coimbrã 2

A muito divulgada água-tinta de G. Vivian, que é o n.º XVI de Scenery of Portugal & Spain, editado em Londres, em 1839, e de que apresentamos um pormenor na Fig. 3, é um manancial de informações sobre o trajo popular em Coimbra, na época, já que junto à fonte de Santana se agrupam diversas figuras citadinas que vão desde os estudantes, à esquerda, às senhoras de mantilha, à direita. Ali as vemos, conversando, uma de frente outra de costas, amantilhadas com a extraordinária coca armada em papelão e barbas de baleia.

Fig. 3.jpg Fig. 3 - Pormenor da estampa XVI da obra de G. Vivian, “Scenery of Portugal & Spain”, Londres, 1839, vendo-se, à direita, duas mulheres de mantilha

O desenho é em tudo coincidente com a descrição de António Cândido Borges de Figueiredo que, recordando com certa saudade as senhoras, que conheceu, de mantilha, não se abstém de ridicularizar esse trajo feminino:

«Quando eu era pequeno, quando eu usava calcinhas curtas, [...] nesse tempo, aí de 1858 para 1859, lembro-me perfeitamente de ter visto ainda algumas senhoras de mantilha, principalmente na semana santa. Conquanto eu então apreciasse muito o cortar bonecos de livros e colá-los em papel, para desassombrar as figuras das letras, confesso que, todas as vezes que percebia que íamos à missa ao Salvador, não cabia em mim de contente. É que, naquela igreja encontrávamos sempre as senhoras S., a casa de quem íamos depois da missa. Ora a casa das senhoras S., e as donas dessa casa tinham a arte de me atrair. A casa atraía-me, porque na sala havia sobre as mesas um papagaio e um gato empalhados, e uma recova de cavalinhos de vidro, e um pavão também da mesma matéria cuja cauda era composta de vidro em cabelo. [...] Quanto às senhoras S., essas atraíam-me, porque me davam uns certos bolinhos, muito melhores que especiones [...].

«Devo ser – e sou – grato à memória daquelas excelentes criaturas, que me deram tantas gulodices; todavia não posso deixar de rir-me ainda hoje do aspecto que as três senhoras – mãe e filhas – apresentavam quando iam à missa. As suas tradições de família, o seu recato, a sua devoção, não lhes permitiam adop- tar a moda. Nada direi da saia, ou vestido, preto quasi sempre, e, quando não preto, então da cor da túnica do senhor dos passos; mas a mantilha...

«Creio que ainda nalgumas partes do nosso Portugal se vêm as clássicas mantilhas; mas a mantilha de Coimbra era muito diferente das outras, – pelo menos não me consta que em outras partes se usassem do feitio daquelas. Compunha-se de uma tira de papelão grosso arqueada e convenientemente coberta de fazenda preta; colocada sobre a cabeça e segura sob o queixo por fitas, caía o pano preto exterior pelas costas e peito a modo de mantéu: até aqui não há nada de extraordinário; mas de diversos pontos do papelão que cobria a cabeça partiam algumas barbas de baleia que a distância de dois palmos da testa se uniam formando vértice, tudo isto coberto de fazenda igual à restante e apresentando a figura da maxila superior do ranforincho, ou, melhor, do pterodáctilo... E que lindos rostos, que rosadas e mimosas faces se escondiam sob esse hediondo e ridículo trajo!

«Mas foi o que usaram as damas do high-life de outrora; quem não trajava de mantilha, tinha de pôr o capote de cabeção e o lenço de cambraia muito branco c muito gomado. O bico formado atrás da cabeça pelo lenço era a perfeita antítese do bico da mantilha. As senhoras S. foram, creio eu. as últimas damas que usaram mantilha.»

Ainda um outro desenho, certamente de artista nacional, mas de autor desconhecido e que deverá datar do segundo quartel do século passado, vem de encontro aos testemunhos anteriores. Nele se vê uma cena matutina (Fig. 4). O desenho é desagradável, mas elucidativo. O garotito e a manteigueira, descalços, contrastam com a senhora de mantilha que se dirige, certamente, para a igreja.

 

Fig. 4.jpg

Fig. 4 - Cena matinal, com senhora de mantilha. Desenho de autor desconhecido

E eis, suficientemente caracterizada, a mantilha coimbrã.

Borges, N. C. A Mantilha e o seu uso em Coimbra, In: “Munda”, 7, Coimbra, Revista do Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, 1984, p. 60-71.

 

 

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por Rodrigues Costa às 10:37


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