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Como esperado, a extinção das ordens religiosas em 1834 abriu brechas no pequeno mundo paradisíaco desta paisagem monástica. “Vandalismos inauditos” é a expressão usada por Augusto Silva Pereira, o autor de Portugal Antigo e Moderno. O académico Vilhena Barbosa também se penalizou bastante com o que ali viu em 1886: “dói na alma, realmente […]” Mais tarde, o poeta simbolista Eugénio de Castro haveria de escrever, em 1900, que “apesar do bárbaro desbaste feito nos seus arvoredos” o jardim era ainda “um amável refúgio em dias de sol ardente”.
A autarquia adquiriu a parte recreativa da Quinta para que servisse de passeio público, mas só em 1885; a preocupação com o abastecimento da cidade com aquela água era tal, que logo de imediato foram encomendadas novas canalizações para as cascatas de Santa Cruz (p. 103).
Duas décadas depois, um Conselho de Arte e Arqueologia teve de se opor à sobrecarga de eventos de todo o tipo naquele espaço que considerava dever ser elevado a monumento nacional e como tal protegido. A perceção de que se trata de um lugar histórico detentor de uma “presença artística de grande fôlego” (p. 108) não terá sido suficiente para travar investidas para a instalação dos mais variados equipamentos ali.
“Planta do terreno da quinta de Santa Cruz com a planta de uma praça de touros […] com lotação para 10.000 pessoas”, datada de janeiro de 1899. Op.cit., pg.101
Quadras de ténis em 1885, campo de futebol da Associação Académica em 1914-17, eventualmente um coreto em 1923, são alguns exemplos, para já não falar da praça de touros para 10 mil lugares projetada em 1899 para a proximidade do grande lago, mas que felizmente nunca saiu dos papéis em que foi desenhada (pp. 101, 102) — ou da anacrónica instalação, em 1921, de um posto da GNR num dos belos torreões do pórtico, pintado com infinita exuberância rococó….
Projeto para o gradeamento do jardim de Santa Cruz, datado de 1905. Op.cit., pg. 104
Desenho de António Augusto Gonçalves, aprovado em 1906 e, provavelmente datado do ano anterior, para a grade a aplicar na vedação do Parque de Santa Cruz. AHMC. Repartição de obras municipais, pasta 43. Op.cit., 105
Grade projetada e executada para vedação do Parque de Santa Cruz, posteriormente aplicada num muro da rua P. António Vieira. Foto Rui Gonçalves Moreno. Op.cit., 103
A ideia de que o parque constituía uma “sala nobre da cidade” (p. 105) levou a autarquia a realizar sucessivos restauros nos azulejos e nas esculturas e, sobretudo, a precaver novas delapidações do seu património artístico — e que o entulho de construções particulares vizinhas ali continuasse a ser despejado (p. 113)… — mandando vedar o Parque com grade de ferro, em 1906-7 e 1908-9.
Desenho do par de lanternas criadas por Albertino Marques para serem aplicadas à entrada do Jardim de Santa Cruz, nos ângulos dos torreões. “Gazeta de Coimbra”, 17 de Setembro de 1945. Op.cit., pg. 108
No início da década de 1940, lanternas em ferro forjado e cinzelado, num estilo conhecido como revivalismo rocaille, serão instaladas nos torreões e arco principal da entrada principal, e em outros pontos estratégicos, como a Cascata e a Fonte do Tritão, e é feito reaproveitamento do gradeamento dos demolidos Liceu Feminino e Alameda de Camões.
Como Marco Daniel Duarte reconhece nas últimas páginas do seu livro, “o Jardim de Santa Cruz é um dos mais difíceis espaços públicos para gerir” (p. 143), como comprova uma história quase bicentenária de administração do Estado. Ainda assim, é curioso notar que a contestação duma comissão camarária ao projeto de remodelação do Parque de Santa Cruz apresentado pelo arquiteto paisagista A. Vianna Barreto em 1956, baseada no argumento de “não se afigurar possível conseguir a unidade introduzindo elementos modernos num ambiente monástico” (p. 123), choca de frente — meio século depois, é verdade — com a magnificência do programa escultórico de Rui Chafes, a quem o autor reconhece uma “modernidade e uma transconsciência que faz ecoar os níveis culturais dos ancestrais cónegos regrantes de Santo Agostinho” (p. 126) — fazendo do Parque de novo um “locus artístico” (pp. 133, 140), “não obstante as mazelas que o tempo lhe infligiu” (p. 143).
Rosa, V. Santa Cruz de Coimbra: uma floresta iluminada. In: Observador, edição de 4 de abril de 2018.
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