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Há, pois, além do corpo central, mais uns quatro.
E todo esse encontrado jogo de cobertos e de faces, todos esses ângulos vivos e arestas livres de paredes aprumando fortes imprimem, na verdade, à velha morada, vista dessas bandas da barreira, uma feição original, vigorosamente pitoresca, de casa acastelada — feição ainda acentuada pela grande altura a que, para este lado, o edifício inteiro se levanta.
O corpo principal, cujo centro corresponderá ao meio da fachada da rua, está erguido, assim como o terraço que se lhe segue a sudoeste, sobre a grossa alvenaria da primitiva muralha da cidade. É na face que, sobre a vertente, forma ângulo com a torre, e na que liga ao terraço, que se vêm as melhores janelas deste lado da casa. São emolduradas de cordões torcidos arqueando em conopial, a rematarem no fecho por cogulhos, estróbilos enfolhados e bustos.
Também assentou sobre a antiga muralha, no extremo norte, a manga de comunicação a que já me referi.
A torre, que a princípio me ocorreu identificar com a primitiva, deve estar edificada sobre os seus alicerces.
A casa de sub-Ripas – A torre vista do poente. Pg. 271
E quando avistada de poente, a dominar a escarpa, ela é que parece a parte central de todo o edifício, o tronco de ondo bracejam, a um lado o terraço livre, a outro a manga do norte. Vista deste lado, então, avança ainda, de aresta viva, a impor-se numa dureza altiva de quina de menagem, sob o elmo escuro do seu telhado amoriscado.
Construída toda de cantaria, ainda daí reforça aos nossos olhos a impressão de solidez maciça entre os outros corpos, em que. desta banda da escarpa, predominam a alvenaria argamassada e os panos de tijolo e cal.
A janela saliente, de beiral livre, suspensa sobre grossos cachorros golpeados, a lembrarem machicoulis medievais, acaba de dar-lhe, com a sua cor sombria, louro-broa, um ar brusco e caprichoso, de individualidade anacronicamente esquiva.
E sente-se que o seu aspeto, como o de todas estas fachadas da casa, quase briga com o tipo e corte das janelas lavradas, já do sazão da nossa Renascença; pois aquelas massas, de fortaleza, ainda parecem resistir, teimar no passado, afirmar tradição de vida pré-quinhentista.
Casa do Arco (a Sub ripas) – Muro brasonado do pátio de entrada. Pg. 268
Em mais de um ponto exterior da casa encontraremos detalhes sugestivos; aqui — um alegrete saliente, sustentado em cachorros de pedra; logo perto, um pilar de argamassa a dissimular um recanto baixo, e que dava pé a um vaso de craveiros; além, uma folha lavrada anima qualquer quebra de aresta; deste lado, um escudo de Cristo corta a linha monótona de um cunhal: tudo a revelar ainda a livre e tocante colaboração de artistas obscuros e a manter a graça própria. individualizante, de todas as construções das grandes épocas vivas!
A casa de Sub-ripas, vista do norte – Torre e manga de comunicação com a “Torre do Prior do Ameal”. Pg. 269
Dentro — temos de o confessar — a casa não apresenta grande interesse. Excetuando o teto, certamente manuelino, da sala próxima ao terraço aberto, e a passagem interior da manga do norte — nada aparece digno de maior nota.
A casa do arco, que comunicava por este com a do Sub-Ripas, devo ser um pouco mais moderna — talvez do tempo de D. João III. Interessante pelos painéis e aventais das janelas — Renascença manuelina — só tem de notável, afinal, o pequeno pátio a que dá entrada um portão ostentando o brasão dos Perestrellos, pedra evidentemente mais recente do que o resto. Esse pátio é, realmente, um dos mais curiosos cantos de Coimbra.
Entrando o portão, veremos à esquerda uma cisterna de janela, coberta de alpendre avançado em arco, que logo nos prende os olhos, como tudo quanto representa uma adaptação feliz de utilidade e de arte.
E sem dúvida a cisterna o quo ali há de mais interessante.
Mas por quase todos os lados do pátio veremos medalhões embutidos nas paredes — prejudicadas, como a da fachada manuelina, pela obra recente de rebocos menos felizes.
A profusão desses medalhões, dentro e fora do pátio, por vários pontos sobretudo da casa do arco; a grande diversidade deles, tanto nos motivos como na execução — pois os há dos mais absurdos e dos mais toscos entre outros já do melhor corte e garbo —; finalmente, o próprio capricho e arbitrariedade da sua insignificativa distribuição e colocação — por muito tempo intrigaram os que atentavam nesse conjunto, tão curioso, das casas de Sub-ripas, entre si ligadas pelo arco — passadiço de João Vaz. E tentavam explicar.
No entanto, de todas as explicações e alvitres — é a hipótese apresentada pelo meu amigo António Augusto Gonçalves a que me parece admissível.
Ao tempo da construção de uma o da outra casa, era terreiro livre grande parte do chão onde mais tarde, em 1593, foi edificado o atual Colégio-Novo, o colégio da Sapiência — pertencente aos crúzios.
Nesse terreiro tinha o arquiteto João de Rouen, ou de Ruão, um telheiro de trabalho, onde se amestravam lavrantes e escultores — seus discípulos e seus operários. À falta de lugar ondo expusessem e guardassem os seus ensaios e provas — os novos artistas vinham pregá-los nas paredes das casas em construção, dando assim a estas um aspeto vivamente pitoresco no gosto da época, embora esses detalhes decorativos não fossem coisas de real valor.
Serão as construções do Sub-ripas, e em especial a casa manuelina de jeito a poderem sofrer comparação com vivendas senhoriais o com edificações de puríssima arte tão numerosas lá fora, como na Itália e na França?
Certamente quo não. Simples vivendas particulares, devidas ao caprichoso bom gosto de um licenciado rico ou do arquiteto por ele chamado, não excedem, em proporções e detalhes, algumas outras moradas da época, mesmo em Portugal.
Contudo, a sua excecional situação, o relevo e carácter do seu conjunto, o desvelo de arte — hoje tão apagado, ou tão postiço — que nos revelam ainda, e a raridade do género neste país de extremos — miserável ou sumptuoso — dão-lhe direito à nossa enternecida contemplação, e teriam justificado amplamente a sua aquisição pelo Estado.
Gaio, M.S. Palácios, castelos e solares de Portugal. IV – A casa de sub-Ripas, In: “Illustração Portugueza”, 9, Primeiro semestre, 2.ª série. Lisboa, 1906, p. 265-272.
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