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A' Cerca de Coimbra



Quinta-feira, 28.04.22

Coimbra: Casa de Sobre Ribas 4

Há, pois, além do corpo central, mais uns quatro.

E todo esse encon­trado jogo de cobertos e de faces, todos esses ângulos vivos e ares­tas livres de paredes aprumando fortes im­primem, na verdade, à velha morada, vista dessas bandas da barreira, uma feição ori­ginal, vigorosamente pitoresca, de casa acastelada — feição ainda acentuada pela grande altura a que, para este lado, o edifício inteiro se levanta.

O corpo principal, cujo centro corresponderá ao meio da fachada da rua, está erguido, assim como o terraço que se lhe segue a sudoeste, sobre a grossa alvenaria da primitiva muralha da cidade. É na face que, sobre a vertente, forma ângulo com a torre, e na que liga ao terraço, que se vêm as melhores janelas deste lado da casa. São emolduradas de cordões torcidos arqueando em conopial, a rematarem no fecho por cogulhos, estróbilos enfolhados e bustos.

Também assentou sobre a antiga muralha, no extremo norte, a manga de comunicação a que já me referi.

A torre, que a princípio me ocorreu identifi­car com a primitiva, deve estar edificada sobre os seus alicerces.

CSR. Torre vista do poente. Pg. 271.jpg

A casa de sub-Ripas – A torre vista do poente. Pg. 271

E quando avistada de poente, a dominar a escarpa, ela é que parece a parte cen­tral de todo o edifí­cio, o tronco de ondo bracejam, a um la­do o terraço livre, a outro a manga do norte. Vista deste lado, então, avança ainda, de aresta vi­va, a impor-se numa dureza altiva de quina de menagem, sob o elmo escuro do seu telhado amoriscado.

Construída toda de cantaria, ainda daí reforça aos nossos olhos a impressão de solidez maciça entre os outros cor­pos, em que. desta banda da escarpa, predominam a alve­naria argamassada e os panos de tijolo e cal.

A janela saliente, de beiral livre, suspensa sobre grossos cachorros golpeados, a lembrarem machicoulis medievais, acaba de dar-lhe, com a sua cor sombria, louro-broa, um ar brusco e caprichoso, de indivi­dualidade anacronicamente esquiva.

E sente-se que o seu aspeto, como o de todas estas facha­das da casa, quase briga com o tipo e corte das janelas la­vradas, já do sazão da nossa Renascença; pois aquelas massas, de fortaleza, ainda parecem resistir, tei­mar no passado, afirmar tradição de vida pré-quinhentista.

CSR. Muro brazonado. Pg. 268.jpg

Casa do Arco (a Sub ripas) – Muro brasonado do pátio de entrada. Pg. 268

Em mais de um ponto exterior da casa encontraremos detalhes sugestivos; aqui — um alegrete saliente, sustentado em cachorros de pedra; logo perto, um pilar de argamassa a dissimular um recanto baixo, e que dava pé a um vaso de craveiros; além, uma folha lavrada anima qualquer quebra de aresta; deste lado, um escudo de Cristo corta a linha monótona de um cunhal: tudo a revelar ainda a livre e tocante colaboração de artistas obscuros e a manter a graça própria. individualizante, de todas as construções das grandes épocas vivas!

CSR. Torre e manga de comunicação. Pg. 269.jpg

A casa de Sub-ripas, vista do norte – Torre e manga de comunicação com a “Torre do Prior do Ameal”. Pg. 269

Dentro — temos de o confessar — a casa não apresenta grande inte­resse. Excetuando o teto, certamente manuelino, da sala próxi­ma ao terraço aberto, e a passagem interior da manga do norte — nada aparece digno de maior nota.

A casa do arco, que comunicava por este com a do Sub-Ripas, devo ser um pouco mais moderna — talvez do tempo de D. João III. Interessante pelos painéis e aventais das janelas — Renascença manuelina — só tem de notável, afinal, o pe­queno pátio a que dá entrada um portão os­tentando o brasão dos Perestrellos, pedra evi­dentemente mais re­cente do que o resto. Esse pátio é, realmen­te, um dos mais curiosos cantos de Coimbra.

Entrando o portão, veremos à esquerda uma cis­terna de janela, coberta de alpendre avançado em arco, que logo nos prende os olhos, como tudo quanto representa uma adaptação feliz de utilidade e de arte.

E sem dúvida a cisterna o quo ali há de mais interessante.

Mas por quase todos os lados do pátio veremos medalhões embutidos nas paredes — prejudicadas, como a da fachada manuelina, pela obra recente de rebocos menos felizes.

A profusão desses medalhões, dentro e fora do pátio, por vários pontos sobretudo da casa do arco; a grande diversidade deles, tanto nos motivos como na execução — pois os há dos mais absurdos e dos mais toscos entre outros já do melhor corte e garbo —; finalmente, o próprio capricho e arbitrariedade da sua insignificativa distribuição e colocação — por muito tempo intrigaram os que atentavam nesse conjunto, tão curioso, das casas de Sub-ripas, entre si ligadas pelo arco — passadiço de João Vaz. E tentavam explicar.

No entanto, de todas as explicações e alvitres — é a hipótese apresentada pelo meu amigo António Augusto Gonçalves a que me parece admis­sível.

Ao tempo da construção de uma o da outra casa, era terreiro livre grande parte do chão onde mais tarde, em 1593, foi edificado o atual Colégio-Novo, o colégio da Sapiência — pertencente aos crúzios.

Nesse terreiro tinha o arquiteto João de Rouen, ou de Ruão, um telheiro de trabalho, onde se amestravam lavrantes e escultores — seus discípulos e seus ope­rários. À falta de lu­gar ondo expusessem e guardassem os seus ensaios e provas — os novos artistas vinham pregá-los nas paredes das casas em construção, dando assim a estas um aspeto viva­mente pitoresco no gos­to da época, embora esses detalhes decora­tivos não fossem coi­sas de real valor.

Serão as construções do Sub-ripas, e em especial a casa manuelina de jeito a po­derem sofrer compa­ração com vivendas senhoriais o com edi­ficações de puríssima arte tão numerosas lá fora, como na Itália e na França?

Certamente quo não. Simples vivendas par­ticulares, devidas ao caprichoso bom gosto de um licenciado rico ou do arquiteto por ele chamado, não excedem, em proporções e de­talhes, algumas outras moradas da época, mesmo em Portugal.

Contudo, a sua excecional situação, o relevo e carácter do seu conjunto, o desvelo de arte — hoje tão apagado, ou tão postiço — que nos revelam ainda, e a raridade do género neste país de ex­tremos — miserável ou sumptuoso — dão-lhe direito à nossa enternecida contemplação, e teriam jus­tificado amplamente a sua aquisição pelo Estado.

Gaio, M.S. Palácios, castelos e solares de Portugal. IV – A casa de sub-Ripas, In: “Illustração Portugueza”, 9, Primeiro semestre, 2.ª série.  Lisboa, 1906, p. 265-272.

 

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por Rodrigues Costa às 14:52


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