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GIL VICENTE E O SIMBOLISMO DAS ARMAS DE COIMBRA [Cont.]
O leão
O ataque do Leão a Monderigón é a justificação vicentina para o aparecimento deste importante animal heráldico no brasão da cidade de Coimbra3. Há várias possibilidades de leituras simbólicas para o leão em termos heráldicos e não só, normalmente bem diversas da proposta vicentina. Este pode representar simultaneamente o mal e a sua destruição, nomeadamente em toda a tradição cristã, onde é muitas vezes associado a Cristo, pelo Leão de Judá que venceu para abrir o livro e os sete selos. O marquês de Abrantes afirma que "O leão pode ser considerado o segundo mais importante elemento do bestiário heráldico medieval, logo depois da águia, tão vulgarmente ele nos surge dominando conjuntos heráldicos dessa época." Pastoreau contrapõe e prova que este animal é o animal mais representado nos escudos de armas. Apesar de ser um móvel fundamental para a compreensão do brasão de Coimbra, o dramaturgo atribui-lhe um papel menoríssimo, uma figuração, certamente desempenhada por algum acetor que já tinha um outro papel, limitando-se este a ocorrer a Celipôncio quando este o chama para o ajudar na luta contra Monderigón, matando-o.
No fim fará parte do tableau vivant que dá a ver ao público o brasão da cidade.
Figura 9 - Leão, detalhe das armas da cidade de Coimbra que figuram na sala dos reis no palácio da Regaleira, Sintra. Fotografia de Paulo Morais-Alexandre
A serpente que é uma serpe ou a serpe que é uma serpente
Os dicionários de português não estabelecem a diferença entre "serpe" e serpente" … Bluteau descreve da seguinte forma este animal do reino dos répteis: "SERPENTE. Animal sem pés, ou com eles muyto pequenos a modo de lagarticha. He comprido, roliço, anda de rasto, & se enrosca", nada referindo das suas características enquanto animal heráldico. Gil Vicente no texto em escrutínio usa quatro vezes o termo "serpe" e apenas uma o termo "serpente", podendo-se depreender que os usa como sinónimos. Em Heráldica trata-se de figuras completamente diversas, como o estabelece A. de Mattos no "Vocabulário Heráldico", pelo que se pode afirmar que mestre Gil faz confusão entre dois animais heráldicos bem diversos, um que faz parte do reino animal, um réptil, a serpente e uma figura fantástica que é a serpe, sendo a sua representação inconfundível. Não terá sido, no entanto, este dramaturgo o único a fazer esta confusão, tal sucede na Heráldica em geral e até na representação das armas de Coimbra em particular, algo que se espelha na sua própria evolução do brasão de armas desta cidade. Na forma que depois viria a ser consagrada, desde a representação medieval no arco do Almedina, até à ilustração do foral, é maioritariamente representada a serpe, embora existam, pelo menos, duas pedras-de-armas onde surge representada uma serpente.
Figura 10 — Pedra-de-armas com a heráldica de Coimbra pertencente ao Arquivo Histórico Municipal / Torre de Almedina, Coimbra. Publicada por Mário Nunes (Nunes, 2003, p. 141)
Figura 11 — Detalhe de pedra-de-armas com a heráldica de Coimbra pertencente ao Museu Nacional Machado de Castro de Coimbra. Publicada por Málio Nunes (Nunes, 2003, p 57)
A razão das representações acima citadas pode ser justificada por ignorância do canteiro, embora haja antecedentes que o possam justificar, nomeadamente na sigilografia e na própria escultura. Duas das mais antigas representações relacionadas com as armas de Coimbra estão implantadas no arco de Almedina. Trata-se de duas pedras, a da esquerda com uma serpente ondulada em faixa voltada à sinistra, a da direita com um leão passante voltado à dextra.
Figura 12 - Pedra com escultura de Serpente implantada no Arco de Almedina, Coimbra. Publicada por Sidónio Simões (Simões, 2012, p. 34)
Figura 13 - Pedra com escultura de Leão passante implantada no Arco de Almedina, Coimbra. Publicada por Sidónio Simões (Simões, 2012, p. 34)
Não estão datadas mas serão certamente anteriores aos já referidos escudos que estão na mesma parede. visibilidade, isto é, a sua transcrição para uma forma plástica.
A serpente aparece também na sigilografia medieval de Coimbra, nomeadamente em dois selos que o marquês de Abrantes publicou no seu importante estudo Sigilografia Medieval Portuguesa. É exatamente desta matriz que será gravado um terceiro selo, datado de cerca de um século depois, que entre outros, regista a aclamação de D. João I em Coimbra no ano de 1385 e que Ribeiro Christino reproduziu.
Figura 14 - Desenho de Christino da Silva reproduzindo um selo usado pelo concelho de Coimbra, datado de 1385. Publicado por Augusto Mendes Simões de Castro (A. S. Castro, 1895, p. 598)
Alexandre, P.M. Uma patranha heráldico-genealógica de Gil Vicente: «A comedia sobre a devisa da cidade de coimbra» e o brasão-de-armas de Coimbra. In: Alicerces. Revista de Investigação, Ciência Tecnologia e Arte. Ano VI, n.º 6. 2016, julho. Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa. Pg. 65-88. Acedido em https://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/8644/1/revista_alicerces6_2016_pv.pdf.
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