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A' Cerca de Coimbra



Quinta-feira, 27.05.21

Coimbra: Alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. 21

O Theatro-Circo

Na Avenida Sá da Bandeira, um pouco mais acima da escola primária, erguia-se o edifício do Teatro Avenida, hoje substituído por um ‘magnífico’ shopping.

Teatro Avenida. Exterior.jpg

Teatro Avenida, exterior

Teatro Avenida. Demolição. Foto NCB.jpg

Teatro Avenida, demolição. Foto NCB

No século XIX, aquando das intervenções levadas a cabo sobretudo na zona das catedrais, destruíram-se as construções que as rodeavam, quebrando todo o diálogo com a malha urbana, a fim de abrir praças capazes de possibilitar a inclusão dos templos nas máquinas fotográficas dos turistas ou então para que, como refere causticamente Alexandre Herculano “a vadiagem possa estirar-se regaladamente ao sol”.

Nem a igreja de Santa Cruz escapou ao desejo, felizmente não concretizado, de ser destruída para dar lugar a uma praça; quem no-lo dá a saber é também Alexandre Herculano quando escreve em O Panorama: “Levaram-nos a Coimbra no anno de 1834 obrigações de serviço publico: ahi residiamos quando foi supprimido o mosteiro de Sancta-Cruz. Correu então voz pública de que houvera quem se lembrasse de pedir que este bello edificio fosse entregue á municipalidade. Ninguem imaginará para que. Era para esta o mandar arrazar, e fazer uma praça. Não veio a lume este projecto nefando, mas não foi por mingoa de bons desejos. Uma praça no logar onde estivera Sancta-Cruz; uma praça calçada com os umbraes esculpidos do velho templo, com as lagens quebradas dos tumulos de D. Afonso Henriques, de D. Sancho 1.º, e de tantos varões illustres que alli repousam!”.

Mas se, no século XIX, a ideia chave passava pela construção de praças, no XX transferiu-se para a instalação de shoppings e o camartelo da incúria e da ignorância passou a derrubar edifícios carismáticos para satisfazer interesses que, sob a capa de modernidade, não passam de puramente economicistas ou demagógicos.

Ultrapassemos este espírito destruidor para recordar os passos empreendidos pelos homens do final de Oitocentos, a fim de conseguirem dotar a cidade com uma sala de espetáculos equestres digna.

No dia 27 de novembro de 1890 a Câmara Municipal de Coimbra levou à praça uma série de 21 lotes, quase todos sitos na atual Avenida Sá da Bandeira; entretanto, como vinte cidadãos da terra expressassem o desejo de construir, naquele local, um Teatro-Circo, foram excluídas da hasta pública três parcelas. Os interessados pretendiam a cedência dos terrenos mediante a outorga de certas facilidades, por isso, dado tratar-se de um empreendimento notável que envolvia, de uma forma ou de outra, toda a comunidade, o assunto foi discutido na sessão camarária de 04 de dezembro.

Fig. 36. O Theatro-Circo (Teatro Avenida) erguia-s

Fig. 36 – O Theatro-Circo (Teatro Avenida) erguia-se na Av. Sá da Bandeira. [AHMC. Diversos, maço 3, documento 2].

Terminou por lhes ser cedida uma área de 1602 m2, ao preço de 300 réis por unidade, benefício notório, visto que, em média, naquela zona, o terreno estava a ser vendido por 680 réis. A autarquia favoreceu os concessionários, mas, não o fez sem imposições, porque, na escritura pública de venda, lavrada a 14 de fevereiro de 1891, ficaram estipuladas, entre outras, as seguintes cláusulas:

“Condição 4.ª – O terreno não pode ser aplicado a outro fim, voltando nesta hipótese para a posse do município.

“5.ª – Se, depois de construído o Theatro-Circo, houver de se lhe dar outra aplicação por motivo de força maior, os possuidores do referido Theatro serão obrigados a indemnizar a câmara...”.

Encarregou-se de riscar o projeto do novo Teatro-Circo o arquiteto Hans Dickel, também responsável pelo delineamento de muitas das casas que então iam povoando o novo Bairro de Santa Cruz.

A fachada do edifício apresentava-se muito simples, até mesmo pouco elaborada, mas a estrutura do conjunto unia a alvenaria ao ferro, entrando no âmbito de uma certa modernidade.

Em dezembro de 1891 “activam-se os trabalhos para que se possam dar alli epectaculos equestres já em Janeiro proximo. O palco é que ainda se acha atrazado, devendo ser concluido em Março ou Abril. Andam a trabalhar no theatro Circo aproximadamente 100 operarios. O estuque está entregue ao habil industrial sr. Francisco Antonio Meira. As grades dos camarotes, as columnas que os sustentam, e as numerosas cadeiras para a plateia, tudo foi fundido na acreditada officina do sr. Manoel José da Costa Soares. (...) Consta-nos que se encarrega da pintura do panno de bocca, o distincto professor o sr. Antonio Augusto Gonçalves”.

A capacidade da sala, onde se podiam realizar espetáculos equestres, de declamação e de canto orçava pelos 1700 lugares, tendo o seu custo ultrapassado os 20 000$000 réis.

Fig. 37. Theatro-Circo (Teatro Avenida) [Bilhete P

Fig. 37. Theatro-Circo (Teatro Avenida) [Bilhete Postal].

O teatro, depois de inaugurado, a 20 de janeiro de 1892, com a atuação de uma “companhia equestre, gymnástica, acrobática, cómica e mimíca, do Real Coilyseo, de Lisboa, de que é director o sr. D. Henrique Diaz”, permitiu que Coimbra passasse a ter “uma casa de espectaculos em muito boas condições, e digna de uma terra civilizada”.

Em junho daquele mesmo ano, por ocasião das festas da Padroeira de Coimbra, a família real deslocou-se à cidade e, por decisão assinada pelo rei D. Carlos no Paço das Escolas a 23 de junho, a sala passou a denominar-se “Theatro-circo Principe Real”.

Mas não foi esta a última vez que a casa de espetáculo alterou o seu nome ao sabor das correntes políticas, porque, em 1910, depois da implantação da República, transmutou-se para Teatro Avenida, não sem que algumas pessoas se insurgissem pelo facto, pois entendiam que a estrutura devia adotar o nome de Teatro Sá de Miranda.

Esqueçamos as transferências de dono acontecidas após a inauguração, para recordar o desempenho do Teatro Avenida na cultura das gentes da cidade e, sobretudo o papel de relevo que representou na vida académica.

Dotar a cidade com um auditório condigno passou a ser um pressuposto que integrava todos os programas dos candidatos à presidência da Câmara de Coimbra dos anos 70 e 80 do século XX; também o foi daquele que ocupava a cadeira máxima da edilidade quando a vereação, em 1983, aprovou a entrada do camartelo no edifício do teatro. A promessa ficou por cumprir e perdeu-se, nessa altura, uma boa oportunidade de a concretizar, até com custos reduzidos, porque, penso, apesar das contantes alterações legislativas, que as cláusulas arroladas numa escritura não serão modificadas nem prescrevem com o tempo.

Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia  Nacional de Belas ArtesLisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf

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por Rodrigues Costa às 19:20

Terça-feira, 25.05.21

Coimbra: Pestes ao longo dos séculos

No Arquivo Histórico Municipal de Coimbra encontra-se patente ao público uma pequena exposição que tem por tema «D’este mal de peste, que Deus nos livre».

A mostra impõe-se por si e, embora refletindo as limitações do exíguo espaço disponível, afirma-se, sobretudo, pelo excelente Catálogo que insere ainda um belíssimo estudo relacionado com a documentação encontrada e exposta.

Tanto o catálogo, como a exposição resultam do trabalho levado a cabo pelas funcionárias daquele departamento municipal.

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D’este mal de peste, que Deus nos livre.

Capa. Letra T.jpg

D’este mal de peste, que Deus nos livre. Capa, pormenor.

O título que é uma citação tirada da página 35, do Livro dos Acordos e Vereações da Câmara de Coimbra, do ano 1598.

Documento. p. 35.jpg

D’este mal de peste, que Deus nos livre. Pg. 35

Profusamente ilustrado é o seguinte o teor da sua apresentação.

Os tempos extraordinários que estamos a viver, determinaram o confinamento em Março de 2020, devido à pandemia de COVID-19, que afectou o nosso país. O AHMC, como outros serviços da administração pública, teve que encerrar ao público.

Readaptando o nosso trabalho arquivístico a estas circunstâncias, encetámos uma pesquisa sobre o tema das doenças, ao longo da história: como é que a cidade de Coimbra, vivera estas situações ao longo dos séculos, como se organizara, que medidas tomara para proteger a população, e assegurar a sobrevivência, como enfrentara a adversidade e gerira o bem comum.

O objetivo seria divulgar essa informação, quando pudéssemos reabrir novamente, através da organização de um projecto expositivo, num formato físico, no espaço da sala do Arquivo que pudesse ser visitável, ou num formato digital (pdf), para divulgar através do espaço do Arquivo Histórico no site do Município.

Assim sendo, que tipo de documentos nos forneceriam as melhores informações sobre este assunto, no nosso Arquivo, e noutros arquivos, que tipo de fontes históricas devíamos analisar?

O primeiro passo desta investigação, para os que conhecem os nossos instrumentos de descrição documental, seria através da consulta do Catálogo do AHMC, e do inventário antigo de Ayres de Campos.

Numa segunda etapa, pesquisámos também os Anais do Município de Coimbra de, 1640-1668 e de 1840 até 1959, a melhor forma de referência para encontrar deliberações do executivo municipal, ao longo do tempo.

Encontrámos bastantes referências: do século XIV até ao século XX. O difícil iria ser, ter de selecionar.

Letra E. p. 15.jpg

D’este mal de peste, que Deus nos livre. Pg. 15. Extraído de Tractado repartido en cinco partes principales que declaran el mal que significa este nombre peste […], Ambrosio Nuñez, em Coimbra, na Officina de Diogo Gomez Loureyro, 1601.

Uma recomendação: trata-se de uma exposição para ver e de um catálogo para ler e analisar. Espero, proximamente, voltar a este tema.

Rodrigues Costa

 

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por Rodrigues Costa às 10:42

Quinta-feira, 20.05.21

Coimbra: Alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. 20

Particularismo revivalista aeminiense: o neorrenascença

Na esquina oposta àquela em que se levanta a casa da viscondessa de Seabra, isto é na confluência da Rua Alexandre Herculano com a Castro Matoso, em pleno Largo João Paulo II, deparamo-nos com a casa dos Martas, posterior sede da AAC/OAF.

O risco encontra-se atribuído ao arquiteto Silva Pinto e as cantarias, que utilizam uma linguagem neorrenascença, saíram do cinzel de João Machado, um dos mais representativos artífices da Escola Livre.

Não se podem deixar de referir as causas que estiveram no surgimento do gosto neorrenascentista na arquitetura da cidade, nem o lugar sui generis que ele veio a ocupar na conjuntura arquitetónica nacional.

Em Portugal, as arquiteturas nacionalistas do período ligado ao romantismo assumiram-se no contexto do neomanuelino e do neorromânico, mas, no microcosmo conimbricense, o neorrenascença veio a ocupar um espaço peculiar que ombreou ou mesmo suplantou aqueles.

O facto explica-se, porque na cidade e no período renascentista, havia ali trabalhado uma plêiade de escultores notáveis, de entre os quais se destacam Diogo Pires, o Moço, João de Ruão e Nicolau Chanterene, homens que espalharam a sua arte por Coimbra, S. Marcos, Tentúgal, Varziela, Cantanhede, etc.

Eram estes os modelos com que os homens conimbricenses da ELAD mais facilmente lidavam e, consequentemente, foram eles que passaram a fornecer-lhes as bases de algo muito próprio, muito seu, que facilmente destronou o neomanuelino e o neorromânico, até porque, na urbe, os edifícios, sobretudo os manuelinos, não se encontravam tão presentes ou, se assim se entender, não possuíam um carisma tão forte. Compreende-se, por isso, que para estes artistas, homens do romantismo, o neorrenascença passasse a funcionar como “o seu próprio estilo nacional”.

Estamos, no nosso país, perante um autêntico particularismo arquitetónico, específico até, que se dissemina, maioritariamente, pela urbe mondeguina, por Condeixa, pelo Buçaco e por Sintra.

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Fig. 33 – Casa dos Martas. Foto RA.

A Casa dos Martas assume-se, no espaço urbano a que nos cingimos, isto é, ao Bairro de Santa Cruz ou, se se preferir, à confluência da Rua Alexandre Herculano com a Castro Matoso, em pleno Largo João Paulo II, o exemplar mais representativo deste gosto neorrenascença.

Fig. 52. Pormenor decorativo da Casa dos Martas. [

Fig. 52. Pormenor decorativo da Casa dos Martas. Foto RA.

Fig. 34. Casa dos Martas. Pormenor. [Foto RA].jpg

Fig. 34 – Casa dos Martas. Pormenor. Foto RA.

O imóvel, na sua fachada ostenta pedras requintadamente cinzeladas, com relevância para o conjunto portal-varanda. De um e de outro lado da porta inscreve-se um pano central decorado, rodeado por duas pilastras a terminar em capitéis pseudocoríntios, extremamente aprimorados, com folhagem estilizada e, ao centro, ternos amores músicos, de uma surpreendente delicadeza.

Fig. 35. Casa dos Martas. Pormenor. [Foto RA].JPG

Fig. 35 – Casa dos Martas. Pormenor. Foto RA.

As zonas interpilastras encontram-se enriquecidas por medalhões. Todo o conjunto se apresenta unido, na parte superior, por um friso decorado com festões de flores, interrompido por um medalhão central. Os pés-direitos mostram-se finamente adornados com motivos naturalistas e outros, baseados na decoração da renascença, mas a permitir-nos avaliar a capacidade criativa de mestre Machado que, apesar de se inspirar naqueles modelos não se exime a esculpir uma decoração subjetiva.

Casa dos Martas. Pormenor. [Foto RA] 02.JPG

Casa dos Martas. Pormenor. Foto RA.

A ornamentação do varandim segue o mesmo esquema, mas os motivos diferem.

Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia  Nacional de Belas ArtesLisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf

 

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por Rodrigues Costa às 20:14

Terça-feira, 18.05.21

Coimbra: Reflexões sobre a evolução do brasão

A preparação das entradas publicadas sobre o brasão de Coimbra, implicaram um trabalho de leitura do que sobre o tema se tem publicado, bem como alguma investigação no Arquivo Histórico do Município de Coimbra.

Estava em causa uma reflexão, à luz dos conhecimentos atuais, da evolução do brasão de Coimbra.

Reflexão que teve a ajuda da Dr.ª Paula França que nos chamou a atenção para o facto de os diversos autores que ao longo do tempo tem escrito sobre o brasão e o selo da cidade acabam por ir dar ao artigo de Afonso de Dornelas, acrescentando ser comum não só a utilização das referências ali citadas, bem como o tema tratado girar sempre em torno da figura no selo representar uma mulher de cabeça coroada, a Rainha / a Virgem / Nossa Senhora / ou a Cindazunda.

Aquela Investigadora, no seu trabalho quotidiano de investigação, localizou no Arquivo Nacional da Torre do Tombo outros documentos que permitem concluir: houve um selo com figura coroada, anterior ao selo com a cobra e esse selo está presente em mais actos/documentos do que aqueles que são referenciados por Afonso de Dornelas.

Apresenta, os seguintes exemplos.

- Carta de venda feita por Johannes Petris ao cabido da Sé de Coimbra de uma herança em Embibera, pelo preço de 60 morabitinos, datada de abril de 1244.

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ANTT. Carta de venda datada de 1244.04. Acedida em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7585002

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ANTT. Carta de venda datada de 1244.04, pormenor do selo. Acedida em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7585002

Trata-se de um documento lavrado quando reinava D. Sancho II, antes do início do seu exilo em Toledo, onde viria a morrer em 1248. O selo pendente representa, unicamente uma mulher coroada.

- Carta de venda feita por Pedro Eanes, Alcaide, Tomás Martins e Martinho Eanes, Alvazis de Coimbra, por autoridade de carta régia de 1275.10.11, a D. João Pires, Cónego de Coimbra, de um olival com todas as suas pertenças, no lugar chamado Fonte da Rainha, no termo de Coimbra, por 200 libras.

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ANTT. Carta de venda de venda datada de 1275.10.11. Acedido em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7585006

PT-TT-CSC-2M007-325_m0003 a.jpg

ANTT. Carta de venda de venda datada de 1275.10.11,pormenor do selo. Acedido em https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7585006

Trata-se de um documento lavrado 31 anos depois do anteriormente referido, quando D. Afonso III já era, efetivamente, rei de Portugal e no qual para além da Mulher coroada são representados dois castelos com as cinco quinas e por baixo uma serpente.

No que concerne às pedras colocadas por cima das portas das casas foreiras da Câmara de Coimbra, com cronologia desconhecida, guardadas no Museu Nacional de Machado de Castro, já agradecemos aos Técnicos daquele Museu, Drs. Pedro Ferrão e Jorge Venceslau, a ajuda na localização das imagens que ilustraram e documentaram este conjunto de entradas.

De assinalar que nas referidas pedras, quanto à base sobre a qual está a figura feminina, existem exemplares que mais se assemelham a um pedestal e quanto aos animais estando o leão sempre presente, numa das pedras o dragão foi substituído por uma serpente. Entre outros exemplos possíveis, apresentamos o seguinte.

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© DGPC| Arquivo do MNMC. 710; E589

Sobre a razão da presença de uma serpente no brasão de Coimbra não se conhece qualquer documento que a explique.

Tendo procurado um significado para a sua simbologia encontramos no Diccionario de símbolos, de Juan-Eduardo Cirlot, a seguinte passagem. Las serpientes son poderes protectores de las fuentes de la vida y de la imortalidade así como de los bienes superiores simbolizados por los tesoros ocultos. Hay una evidente conexión de la serpiente com el principio feminino.

Según Zimmer, la serpiente es la fuerza vital que determina nacimientos y renacimientos, por lo cual se identifica com la Rueda de la vida.

Será esta a explicação para a presença da serpente, depois transformada em dragão?

 

Aqui chegados deixamos à consideração e à discussão dos leitores as seguintes conclusões.

- O brasão de Coimbra foi evoluindo ao longo dos séculos até se fixar em 1930, na composição que hoje apresenta.

- As lendas da Cindazunda e outras que ao longo do tempo foram surgindo, são isso mesmo lendas sem qualquer suporte documental que as justifiquem.

- A hoje Sé Velha foi reconstruída sob a invocação da Virgem Santa Maria, na segunda metade do século XII, por iniciativa de D. Afonso Henriques e de D. Miguel Salomão, bispo de Coimbra. Partilhamos a hipótese levantada pela Dr.ª Paula França de a figura feminina que decora o selo de Coimbra, na sua versão mais antiga documentada, se deverá tratar da Virgem Santa Maria.

- Lembrando que foi nas cortes de Coimbra que ocorreu a aclamação de D. João I, com a consequente criação de uma nova dinastia, será credível a explicação de que o Município de Coimbra de então assinalou esse facto tão relevante na História de Portugal, com a integração no brasão da Cidade de elementos do brasão dessa nova dinastia, ou seja, o leão e o dragão.

Deixo à reflexão dos leitores a decisão sobre a justeza das conclusões tiradas.

Rodrigues Costa

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por Rodrigues Costa às 21:46

Sexta-feira, 14.05.21

Coimbra: Organização administrativa no início do séc. XVIII

Na continuação da tarefa a que se propôs, o Dr. Mário de Araújo Torres acaba de editar, a expensas suas, outra obra dedicada a Coimbra, selecionada de entre aquelas que o tempo deslembrou.

Trata-se de mais um serviço prestado às gentes interessadas pela cidade do Mondego. Pela minha parte, conimbricense de nascimento e estudioso da sua história por gosto e devoção, manifesto, publicamente, e mais uma vez, o agradecimento que lhe é devido.

A obra, com o título Corografia Portuguesa: Comarcas de Coimbra e de Montemor-o-Velho, é constituída por uma recolha de textos e notas da responsabilidade de Mário Araújo Torres, a partir da obra homónima, editada em 1708, por António Carvalho da Costa, «Clérigo do habito de São Pedro, matemático, natural de Lisboa», como o próprio se apresenta.

Corografia Portuguesa.jpg

Do livro ora publicado extraímos a seguinte passagem, na qual se referem, nomeadamente, a constituição e as tarefas da Câmara de Coimbra.

O cuidado dos edifícios públicos e sua reparação, o governo político da cidade e dos ofícios, taxa e provisão dos mantimentos e coisas tocantes à conservação da saúde … conselho da Câmara, o qual consta de um presidente letrado, que é o juiz de fora, de quatro vereadores, um da Universidade e três da cidade … 

CMC. Varas de vereador 2.png

CMC. Varas de luto.png

CMC. Vara banca.png

 um procurador, um escrivão e dois misteres anuais, tirados por sortes no mês de Janeiro do número dos vinte e quatro; e provê muitos ofícios, como o do juiz do povo

CMC. Vara Vermelha.png

… ; dois almotacéis … também provê um meirinho.

… O governo das coisas militares desta cidade, em cuja comarca se contam noventa e cinco capitães, tem uma pessoa nobre com o título de capitão-mor.

… É este capitão-mor eleito pelo conselho da Câmara e assiste na eleição dos oficiais da milícia, todos os quais lhe estão sujeitos e lhe obedecem, como os capitães de ordenança e os de cavalo.

… Há mesta cidade um sargento-mor, quatro capitães, outros tantos alferes, sargentos, ajudantes e cabos de esquadra; e também muitos oficiais de justiça, como provedor, conservador, chanceler, juiz do fisco, almoxarife, tesoureiro e muitos meirinhos, perto de quarenta advogados e setenta e três escrivães.

… Tem cento e vinte lagares, cinco açougues, treze boticas, dezassete boticários do partido, trinta médicos também do partido, cinco cárceres públicos, trinta e cinco espécies de oficiais mecânicos; tem todas as semanas feira franca, além da anual.

Nota: As imagens das varas foram acedidas em https://www.cm-coimbra.pt/areas/viver/cultura/arquivo-historico/memoria-do-municipio.

Costa, A.C. Corografia Portuguesa: Comarcas de Coimbra e de Montemor-o-Velho. Recolha de textos e notas por Mário Araújo Torres. Lisboa, Edições Ex-Libris. Pg. 48-49.

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por Rodrigues Costa às 18:45

Quinta-feira, 13.05.21

Coimbra: Alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. 19

A burguesia citadina instala-se no Bairro de Santa Cruz (Continuação)

A autarquia ia levando à praça, a fim de aí serem construídos imóveis, lotes de terreno situados no Bairro de Santa Cruz. Aquando da hasta pública realizada a 29 de agosto de 1889, o Doutor Daniel de Matos comprou vários lotes na zona que se localiza, à esquerda de quem sobe a Rua Alexandre Herculano, justamente no ângulo superior do cruzamento desta com a Venâncio Rodrigues.

O assento permaneceu desocupado até 1940, altura em que os irmãos Hermínia e Álvaro Pratas Inácio, então donos do terreno, quiçá por compra, decidiram ali construir um prédio de rendimento. O requerimento deu entrada na Câmara a 12 de agosto de 1940, acompanhado de um projeto assinado pelo arquiteto Edmundo Tavares.

Ao receber o requerimento dos irmãos Pratas, o presidente de Câmara de Coimbra, Ferrand Pimentel de Almeida, provavelmente por lhe haverem surgido algumas dúvidas, pediu parecer sobre o assunto a Étienne de Gröer. O urbanista assinou o documento em setembro do mesmo ano, dando um parecer negativo à construção, porque esta violava o artigo 46 do “Regulamento das Zonas” que estipulava a impossibilidade de se erguer um edifício que apresentasse uma área coberta superior a 40% da superfície do quarteirão.

Fig. 31 – Casa dos irmãos Pratas. 1.º Projeto.

Fig. 31 – Casa dos irmãos Pratas. 1.º Projeto. Edmundo Tavares. [AOCMC. Proc. 01-2055/1940].

 Edmundo Tavares alterou o projeto inicial, diminuindo a área em causa, mas, mesmo assim, ultrapassando o permitido. Contudo, como o quarteirão se encontrava quase desprovido de construções, De Gröer, em novembro, assinava um parecer favorável à autorização da feitura do imóvel em causa.

O prédio, até pela data em que foi riscado e por ser assinada por Edmundo Tavares, arquiteto que não pertencia ao apertado círculo citadino, foge dos parâmetros usuais e já não se enquadra nos imóveis que têm a marca Arquitetura Escola Livre.

Fig. 32. Casa dos irmãos Pratas. [Foto RA].JPG

Fig. 32 – Casa dos irmãos Pratas. [Foto RA].

Um pouco mais acima e do mesmo lado, “nas extremidades das ruas Alexandre Herculano e de Tomar” ou seja, no atual Largo João Paulo II (Arcos do Jardim), em 18 de dezembro de 1890, a viscondessa de Seabra, residente em Mogofores, próximo de Anadia, comprou dois lotes de terreno, a fim de ali construir uma casa de habitação.

Dois anos mais tarde, depois de ter encarregado o projeto ao arquiteto Hans Dickel, ajusta a construção do imóvel com o mestre-de-obras Joaquim Augusto Ladeiro. Exteriormente, o edifício reveste-se de uma enorme simplicidade e apenas a sua fachada mostra um certo movimente que o artista aproveitou e valorizou pelo facto de o imóvel ocupar o ângulo formado pelas duas ruas.

Casa dos irmãos Pratas. Pormenor [Foto RA] 02.jpg

Casa dos irmãos Pratas, pormenor. Foto RA

Casa dos irmãos Pratas. Pormenor [Foto RA] 03.jpg

Casa dos irmãos Pratas, pormenor. Foto RA

A decoração, muito simples, insere-se no gosto Arquitetura Escola Livre.

Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia  Nacional de Belas ArtesLisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf

 

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por Rodrigues Costa às 11:29

Terça-feira, 11.05.21

Coimbra: Comedia Sobre a Devisa da Cidade de Coimbra 5

GIL VICENTE E O SIMBOLISMO DAS ARMAS DE COIMBRA [Conclusão]

A existência da representação da serpe nas armas de Coimbra pode permitir que se teçam alguns comentários sobre outras possibilidades de enredo da peça que Gil Vicente não aproveitou na sua narração. Este móvel está documentada desde a Idade Média nas representações plásticas das armas daquela cidade e é ilustrado no frontispício da obra de Inácio de Morais - Conimbricae encomiu[m].

Figura 15 – Serpe, detalhe das armas de Coimbra.

Figura 15 – Serpe, detalhe das armas de Coimbra. Frontispício da obra de Inácio de Morais (Morais, 1554, frontispício)

... Para a ação da peça há uma personagem fulcral, o terrível Monderigón, que, de acordo com o argumento, motiva as armas, mas estranhamente, apesar da sua importância não surge representada nas mesmas. Curiosamente, trata-se de uma personagem que é descrita mais do que uma vez como um dragão. Logo no início da peça o Lavrador refere-se-lhe dizendo que "(...) Dios / (...) consentió que un dragón / me hiciese viudo della" e mais tarde Liberata evidencia-o dizendo: "Sois drago y habláis humano." Tratando-se de um dragão, bem que poderia ser representado por uma serpe alada, algo que, estranhamente, não foi aproveitado por Gil Vicente ao ficcionar estas armas e que poderia ser facilmente feito. A confusão entre estes dois animais fantásticos na Heráldica é, aliás, demonstrada na leitura simbólica das próprias armas nacionais, que a tal se prestam pelo seu timbre, descrito por uns como uma serpe e por outros como um dragão,

Figura 16 — Timbre do brasão-de-armas do rei de

Figura 16 — Timbre do brasão-de-armas do rei de Portugal. Detalhe de iluminura do armorial de António Godinho Livro da nobreza e perfeição das armas dos reis christãos e nobres linhagens dos reinos e senhorios de Portugal (Godinho, 1521-1541, f. 69

CONCLUSÃO

Relativamente à matéria heráldica, considera-se que, até ao presente, nenhuma das explicações para as armas de Coimbra é devidamente fundamentada e esclarecedora.

Perante o fantasioso texto vicentino pode-se concluir que o conhecimento do simbolismo das armas adotadas por Coimbra já se havia perdido no início do século XV.

Assim, o presente texto, parte ínfima de uma muito mais vasta pesquisa, limitou-se ao levantamento e evolução das armas de Coimbra e a fazer uma crítica à interpretação vicentina das mesmas. Considera-se que a leitura simbólica da heráldica da cidade de Coimbra deverá ser buscada na iconografia medieval. Assim, a pesquisa será continuada com o levantamento das outras explicações aduzidas para as armas da cidade e levará certamente a uma proposta de releitura simbólica das mesmas. Mas por agora, para terminar, sejam usadas as palavras com que mestre Gil encerra a Comédia da Devisa da Cidade de Coimbra: "E assi fenece esta comédia, saindo-se com sua música. / Laus Deo."

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Fig. 18 – Final da comedia sobre a devisa da cidade de coimbra (Vicente, 1562, f. 113v.)

Alexandre, P.M. Uma patranha heráldico-genealógica de Gil Vicente: «A comedia sobre a devisa da cidade de coimbra» e o brasão-de-armas de Coimbra. In: Alicerces. Revista de Investigação, Ciência Tecnologia e Arte. Ano VI, n.º 6. 2016, julho. Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa. Pg. 65-88. Acedido em https://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/8644/1/revista_alicerces6_2016_pv.pdf.

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por Rodrigues Costa às 16:51

Quinta-feira, 06.05.21

Coimbra: Alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. 18

A burguesia citadina instala-se no Bairro de Santa Cruz (Continuação)

Em Coimbra, este estilo encontra-se disperso por toda a cidade, quer em grande número de janelas deste tipo que, na sua maioria, apresentam uma extrema simplicidade, quer em algumas casas. No entanto, o neomanuelino coimbrão, aquele que saiu mesmo do risco e do cinzel dos artistas locais, é tratado de maneira sóbria e denota profundos conhecimentos do estilo quinhentista.

Esta casa da Rua Alexandre Herculano, para além do andar térreo, apresenta três pisos, cada um com sua varanda saliente, de pedra lavrada, a ornamentar a fachada que, na parte superior, ostenta elegante loggia. Uma esfera armilar em relevo dá cunho à dupla entrada. No conjunto, os elementos manuelinos abundam: cordas, escudos, esferas armilares, cruzes da Ordem de Cristo e arcos conopiais, fazem com que este seja um dos melhores exemplares citadinos do tipo. Porque indocumentado, não permite que se conheçam os nomes do proprietário e do projetista, bem como a data da sua feitura.

Fig. 28. Edifício neomanuelino. [Foto RA]a.jpg

Fig. 28 – Edifício neomanuelino. [Foto RA].

Edifício neomanuelino. Pormenor [Foto RA] 02.jpg

Edifício neomanuelino, pormenor. Foto RA

Edifício neomanuelino. Pormenor [Foto RA] 04.JPG

Edifício neomanuelino, pormenor. Foto RA

Mas nesta rua erguem-se vários edifícios com interesse; dois desses imóveis foram projetados por Raul Lino, arquiteto que, nesta data, ou seja, depois de 1902, já se impunha no nosso país pela obra realizada e tinha grande aceitação na urbe mondeguina.

Quase em frente ao já referido edifício neomanuelino, em 1908, Albino Caetano da Silva começa a construir uma moradia riscada por aquele alarife.

Fig. 29. Moradia de Albino Caetano da Silva. [Foto

Fig. 29 – Moradia de Albino Caetano da Silva. [Foto RA].

Moradia de Albino Caetano da Silva. Pormenor [Foto

Moradia de Albino Caetano da Silva, pormenor. Foto RA

O edifício foge, obviamente, ao que se fazia na cidade, mas se se pensar em termos estendidos, acaba por refletir um gradual, embora moderado, crescimento económico dos encomendantes, passível de lhes permitir recorrer, para riscar as suas moradias, a artistas que não vivem no burgo; esta possibilidade introduz, paulatinamente, uma certa modernidade arquitetónica, que inicia a alteração fisionómica da urbe.

Raul Lino, para além de projetar a moradia de Caetano da Silva, preocupa-se com os pormenores decorativos e desenha os azulejos policrómicos que se encontram a ornamentar as paredes das fachadas.

Antes de 1915 já se perfilava a possibilidade de, em Coimbra, vir a ser construído um edifício que servisse de sede à Associação Mundial de Académicos (atual Associação Cristã da Mocidade – ACM); o local elegido situava-se no gaveto formado pelas Ruas Alexandre Herculano e Venâncio Rodrigues.

Raul Lino, o arquiteto escolhido, começou a riscar o projeto em janeiro de 1916 e em meados do ano seguinte era exposta na Calçada, numa das montras dos Grandes Armazéns do Chiado, a maqueta aguarelada do edifício; parece que a feitura do imóvel foi custeada pelo International Comittee of Young Man's Christian Associatons, de Nova Iorque.

Edifício da Associação Cristã da Mocidade (ACM

Edifício da Associação Cristã da Mocidade (ACM), pormenor. Foto RA

Fig. 30. Edifício da Associação Cristã da Moci

Fig. 30. Edifício da Associação Cristã da Mocidade (ACM). Pormenor. [Foto RA].

Não cabe aqui referir quais os objetivos da instituição, mas, de acordo com a imprensa que se publicava na época, o edifício projetado por Raul Lino era “um dos ornamentos do Bairro de Santa Cruz” e o arquiteto, no interior, interpretou “admiravelmente o princípio utilitário e filantrópico da instituição e, ao dar ao exterior o estilo português modernizado, manifestou o seu espírito de adaptação ao meio particular em que cada grémio se estabelece, num perfeito equilíbrio entre o nacionalismo e o cosmopolitismo exagerados”.

Finalmente, no dia 20 de junho de 1918, procedeu-se, com pompa e circunstância, à inauguração do imóvel que contou com o trabalho de artistas ligados à ELAD, mormente com o de João Machado.

Anacleto, R. Coimbra: alargamento do espaço urbano no cotovelo dos séculos XIX e XX. In: Belas-Artes: Revista Boletim da Academia  Nacional de Belas ArtesLisboa 2013-2016. 3.ª série, n.ºs 32 a 34. Pg. 127-186. Acedido em https://academiabelasartes.pt/wp-content/uploads/2020/02/Revista-Boletim-n.%C2%BA-32-a-34.pdf

 

 

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por Rodrigues Costa às 12:26

Terça-feira, 04.05.21

Coimbra: Comedia Sobre a Devisa da Cidade de Coimbra 4

GIL VICENTE E O SIMBOLISMO DAS ARMAS DE COIMBRA [Cont.]

O leão

O ataque do Leão a Monderigón é a justificação vicentina para o aparecimento deste importante animal heráldico no brasão da cidade de Coimbra3. Há várias possibilidades de leituras simbólicas para o leão em termos heráldicos e não só, normalmente bem diversas da proposta vicentina. Este pode representar simultaneamente o mal e a sua destruição, nomeadamente em toda a tradição cristã, onde é muitas vezes associado a Cristo, pelo Leão de Judá que venceu para abrir o livro e os sete selos. O marquês de Abrantes afirma que "O leão pode ser considerado o segundo mais importante elemento do bestiário heráldico medieval, logo depois da águia, tão vulgarmente ele nos surge dominando conjuntos heráldicos dessa época."  Pastoreau contrapõe e prova que este animal é o animal mais representado nos escudos de armas. Apesar de ser um móvel fundamental para a compreensão do brasão de Coimbra, o dramaturgo atribui-lhe um papel menoríssimo, uma figuração, certamente desempenhada por algum acetor que já tinha um outro papel, limitando-se este a ocorrer a Celipôncio quando este o chama para o ajudar na luta contra Monderigón, matando-o.

No fim fará parte do tableau vivant que dá a ver ao público o brasão da cidade.

Figura 9 - Detalhe das armas do Brasão de Coimbra

Figura 9 - Leão, detalhe das armas da cidade de Coimbra que figuram na sala dos reis no palácio da Regaleira, Sintra. Fotografia de Paulo Morais-Alexandre

A serpente que é uma serpe ou a serpe que é uma serpente

Os dicionários de português não estabelecem a diferença entre "serpe" e serpente" … Bluteau descreve da seguinte forma este animal do reino dos répteis: "SERPENTE. Animal sem pés, ou com eles muyto pequenos a modo de lagarticha. He comprido, roliço, anda de rasto, & se enrosca", nada referindo das suas características enquanto animal heráldico. Gil Vicente no texto em escrutínio usa quatro vezes o termo "serpe" e apenas uma o termo "serpente", podendo-se depreender que os usa como sinónimos. Em Heráldica trata-se de figuras completamente diversas, como o estabelece A. de Mattos no "Vocabulário Heráldico", pelo que se pode afirmar que mestre Gil faz confusão entre dois animais heráldicos bem diversos, um que faz parte do reino animal, um réptil, a serpente e uma figura fantástica que é a serpe, sendo a sua representação inconfundível. Não terá sido, no entanto, este dramaturgo o único a fazer esta confusão, tal sucede na Heráldica em geral e até na representação das armas de Coimbra em particular, algo que se espelha na sua própria evolução do brasão de armas desta cidade. Na forma que depois viria a ser consagrada, desde a representação medieval no arco do Almedina, até à ilustração do foral, é maioritariamente representada a serpe, embora existam, pelo menos, duas pedras-de-armas onde surge representada uma serpente.

Figura 10 — Pedra-de-armas com a heráldica de C

Figura 10 — Pedra-de-armas com a heráldica de Coimbra pertencente ao Arquivo Histórico Municipal / Torre de Almedina, Coimbra. Publicada por Mário Nunes (Nunes, 2003, p. 141)

Figura 11 — Detalhe de pedra-de-armas.jpg

Figura 11 — Detalhe de pedra-de-armas com a heráldica de Coimbra pertencente ao Museu Nacional Machado de Castro de Coimbra. Publicada por Málio Nunes (Nunes, 2003, p 57)

A razão das representações acima citadas pode ser justificada por ignorância do canteiro, embora haja antecedentes que o possam justificar, nomeadamente na sigilografia e na própria escultura. Duas das mais antigas representações relacionadas com as armas de Coimbra estão implantadas no arco de Almedina. Trata-se de duas pedras, a da esquerda com uma serpente ondulada em faixa voltada à sinistra, a da direita com um leão passante voltado à dextra.

Figura 12 - Pedra com escultura de Serpente.JPG

Figura 12 - Pedra com escultura de Serpente implantada no Arco de Almedina, Coimbra. Publicada por Sidónio Simões (Simões, 2012, p. 34)

Figura 13 - Pedra com escultura de Leão passante.

Figura 13 - Pedra com escultura de Leão passante implantada no Arco de Almedina, Coimbra. Publicada por Sidónio Simões (Simões, 2012, p. 34)

 Não estão datadas mas serão certamente anteriores aos já referidos escudos que estão na mesma parede. visibilidade, isto é, a sua transcrição para uma forma plástica.

A serpente aparece também na sigilografia medieval de Coimbra, nomeadamente em dois selos que o marquês de Abrantes publicou no seu importante estudo Sigilografia Medieval Portuguesa. É exatamente desta matriz que será gravado um terceiro selo, datado de cerca de um século depois, que entre outros, regista a aclamação de D. João I em Coimbra no ano de 1385 e que Ribeiro Christino reproduziu.

 

Figura 14 - Desenho de Christino da Silva reproduz

Figura 14 - Desenho de Christino da Silva reproduzindo um selo usado pelo concelho de Coimbra, datado de 1385. Publicado por Augusto Mendes Simões de Castro (A. S. Castro, 1895, p. 598)

Alexandre, P.M. Uma patranha heráldico-genealógica de Gil Vicente: «A comedia sobre a devisa da cidade de coimbra» e o brasão-de-armas de Coimbra. In: Alicerces. Revista de Investigação, Ciência Tecnologia e Arte. Ano VI, n.º 6. 2016, julho. Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa. Pg. 65-88. Acedido em https://repositorio.ipl.pt/bitstream/10400.21/8644/1/revista_alicerces6_2016_pv.pdf.

 

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por Rodrigues Costa às 16:22


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