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A série de vinte e seis placas de esmalte pintado, com cenas da Paixão, diretamente inspiradas na série de gravuras da chamada Pequena Paixão de Dürer, é talvez o mais enigmático dos três itens a que aqui nos dedicamos, já que nada sabemos sequer sobre a sua entrada no Mosteiro de Santa Cruz.
Coroação de espinhos, último quartel do Século XVI, atelier do Mestre da Paixão de Cristo; esmalte pintado sobre cobre. Museu Nacional de Soares dos Reis (fot. José Pessoa IMC/ MC)
…. Outrora talvez organizadas num pequeno retábulo ou num frontal de altar as pequenas placas foram ao longo do tempo merecendo esporádica atenção por parte dos autores portugueses.
Mosteiro de Santa Cruz, altar da Casa das Relíquias, onde a série das placas de esmalte poderão ter estado aplicadas.
… Em 1914, Joaquim de Vasconcelos dedica-lhes três páginas ao longo das quais propõe a datação da primeira metade do século XVI e sugere a Casa das Relíquias do Mosteiro de Santa Cruz como local da sua instalação no Mosteiro.
A apresentação da série na Exposição de Arte Francesa em Lisboa, em 1934, dá-lhe visibilidade junto de especialistas nacionais e estrangeiros que nesse contexto a classificam como do 1.º terço do Século XVI. Dessa data em diante passará a ser referida na maioria dos estudos especializados neste tema publicados desde os anos 60 na Europa e nos Estados Unidos.
Por ser uma das séries sobreviventes mais completa e uma das raras com registo documental anterior ao Século XIX, constitui hoje uma referência incontornável entre as suas congéneres europeias, razão pela qual, em janeiro de 2008, o Museu Soares dos Reis, em colaboração com o Centre de Recherche Scientifique de la Reunions des musées de France (CRRMF) e o Musée des Arts Decoratifs de Paris (MAD), se candidatou ao programa Eu-Artech com o objectivo de a analisar e inscrever num mesmo banco de dados em que se encontravam já a série da Wallace Collection e peças do MAD. O processo permitiu a revisão da sua datação (agora atribuída aos meados do século XVI e o início do século) e autoria, um atelier ainda em estudo da esfera de Pierre Reymond.
Batismo no Rio Jordão, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado referida no texto
Cena da Verónica, Batismo no Rio Jordão, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado referida no texto
Calvário, integra a série de vinte e seis placas de esmalte pintado referida no texto
A série de esmaltes, como aliás parte da arte religiosa da coleção, não encontrou nessa última revisão de programas e percursos, enquadramento adequado, estando presentemente em reserva.
Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172
João Batista Ribeiro, no seu Inventário do Museu Portuense de 1839, regista «um estojo que contem um tinteiro de tartaruga marchetado d’ouro e madrepérola, que foi do uso de Fr. Bartholomeu dos Martires».
Escrivaninha, c. 1720-1747, tartaruga, madrepérola, liga de cobre e ouro. Museu Nacional
de Soares dos Reis (fot. José Pessoa IMC/ MC)
Mas já em 1838, no periódico O Panorama (1838: 122), se fizera referência a esta peça com essa associação ao nome do Arcebispo de Braga, acrescentando a menção a uma pena «com que se asignaram os decretos do concilio tridentino, monumentos curiosos doados a Sancta Cruz por D. Fr. Bartholomeu dos Martyres».
Igreja de S. Cruz. Santuário, onde a peça estava guardada
Dessa pena não volta a encontrar-se notícia, tão pouco do estojo a que alude João Batista Ribeiro. Trata-se de uma peça de produção italiana do século XVIII, construída em tartaruga, ornamentada com incrustações de motivos “chinoiserie” em ouro e elementos “rocaille”, grotescos e figuras alegóricas em madrepérola. Não é assinada, mas tem paralelos muito estreitos com peças da autoria de Gennaro e Giuseppe Sarao.
Foi apresentada na exposição de Arte Ornamental de 1882, sem classificação, mas já com a indicação de ter sido oferecida por Benedito XIV à Academia Litúrgica Pontifícia fundada em Coimbra em 1747.
Joaquim de Vasconcelos dedicou-lhe, em 1914, um breve estudo onde a classifica como trabalho francês, da corte de Luís XV e onde definitivamente deita por terra a associação ao concílio de Trento e a Frei Bartolomeu dos Mártires. Em 1998, a sua classificação foi revista por comparação com paralelos de outros museus, designadamente da Wallace Collection, tendo então sido datada do século XVIII e aproximada à produção da família Sarao.
A escrivaninha integra-se, desde 2001, no circuito da exposição permanente do Museu em articulação com peças de ourivesaria do Século XVIII.
Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172.
Casa da escrita, Rua Dr. João Jacinto Nº 8, telefone 239 853 590
Tema:
JOÃO DE RUÃO, MESTRE DA RENASCENÇA COIMBRÃ.
Palestrante: Nelson Correia Borges
Natural de Lorvão, concelho de Penacova, é professor aposentado do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Fez doutoramento em História da Arte, tendo apresentado a dissertação intitulada Arte Monástica em Lorvão. Sombras e Realidade.
É académico correspondente da Academia Nacional de Belas Artes, membro da Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa e fundador de quatro associações de defesa do património: o GAAC - Grupo de Arqueologia e Arte do Centro, a Associação Pró-Defesa do Mosteiro de Lorvão, o Grupo Folclórico de Coimbra e a Confraria dos Sabores de Coimbra. É membro da Comissão Diocesana de Arte Sacra.
Coimbra, a arte monástica e conventual, o Barroco e o Rococó, designadamente a arquitetura e a talha, são os campos a que mais se tem dedicado, tendo apreciável número de trabalhos publicados sobre estas matérias, bem como nas áreas de Arqueologia e Antropologia Cultural, designadamente Etnografia e Folclore, que igualmente lhe têm servido de tema para palestras, conferências e participação em reuniões científicas.
De entre as monografias publicadas podem destacar-se:
João de Ruão, escultor da Renascença Coimbrã (1980)
A Arte nas festas do casamento de D. Pedro II (1983)
História da Arte em Portugal — Do Barroco ao Rococó (1987)
Coimbra e Região (1987)
Arquitectura monástica portuguesa na época moderna (1998)
Arte Monástica em Lorvão. Sombras e realidade. (2001)
Doçaria conventual de Lorvão. (2013, 2017)
D.Duarte de Lemos, obra de João de Ruão
Sé Velha, capela, obra de João de Ruão
Após a intervenção inicial, seguir-se-á um debate, estimulado pelos participantes.
Entrada livre.
Organização: Casa da Escrita de Coimbra, com o apoio do Blogue A’Cerca de Coimbra.
A espada de Afonso Henriques, que hoje se guarda no Museu Militar do Porto, tem uma dimensão simbólica que ultrapassa largamente a sua dimensão física que, aliás, é surpreendentemente maneirinha, à luz das descrições daquele que a empunhava, que seria homem para medir nada menos do que 10 palmos, ou seja, muito mais do que dois metros.
…. Segundo a lenda, esta espada, juntamente com o escudo de Afonso Henriques, teria sido levada, como amuleto protetor, por D. Sebastião para a desastrosa incursão de Alcácer Quibir, mas teria ficado esquecida no barco que transportar o rei ao lugar que lhe serviria de sepultura.
Desenho da espada de D. Afonso Henriques. In: Arquivo Pitoresco. 1861
A revista Arquivo Pitoresco publicou, em 1861, a gravura que encima esta nota, acompanhada por um texto onde se conta a história da misteriosa espada de Afonso Henriques. Aqui fica.
«Foi esta a espada que libertou Portugal da dependência de Castela; que conquistou aos moiros Lisboa, Santarém, Palmela, Leiria e outras terras; a que fundou em Ourique a monarquia portuguesa.
Até à extinção das ordens religiosas, a espada de D. Afonso Henriques conservou-se junta ao seu túmulo na capela-mor de Santa Cruz de Coimbra; depois foi transferida para o museu do Porto; onde se acha, e ali foi tirado o desenho que hoje apresentámos.
É sabido que el-rei D. Sebastião, quando partiu para a desastrosa jornada de África, levou a espada e o escudo de D. Afonso Henriques. Não tendo, porém, desembarcado estas armas, quando a armada regressou ao reino foram estes dois monumentos restituídos ao convento de Santa Cruz. É isto o que afirmam os nossos antigos cronistas.
… Do modo por que estas armas saíram de Santa Cruz, é que há documento e testemunhos autênticos. Eis o que diz D. Nicolau de Santa Maria na Crónica dos Cónegos Regrantes:
«Depois de ter assistido no dia 20 de Outubro de 1570 a um doutoramento na universidade, passou D. Sebastião a visitar as sepulturas de D. Afonso Henriques e D. Sancho. O prior-mor lhe mostrou a espada de D. Afonso Henriques, a qual tomou D. Sebastião, e com grande veneração a beijou, dizendo aos fidalgos da sua comitiva: «Bom tempo em que se pelejam com espadas tão curtas! Esta é a espada que libertou todo o Portugal do cruel jugo dos mouros, sempre vencedora, e por isso digna de se guardar com toda a veneração». E entregando-a ao prior geral de quem a recebera, lhe disse: — «Guardai, Padre, esta espada, porque ainda me hei-de valer dela contra os moiros de África».
Passados oito anos, lembrado el-rei destas palavras, a mandou pedir ao geral de Santa Cruz … Desse fac-simile é que é o traslado que vamos apresentar.
D. Sebastião
«Padre geral e convento do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Eu el-rei vos envio muito saudar. Eu me tenho publicado em haver de fazer por mim com ajuda de Nosso Senhor uma empresa em África, por muitas e mui grandes razões, mui importantes ao bem de meus reinos, e de toda Espanha, de que também resulta benefício à cristandade, o que me pareceu escrever-vos assim para encomendardes ao Nosso Senhor o bom sucesso desta empresa, que por seu serviço faço, como para vos dizer que desejo levar nela a espada e escudo daquele grande e valoroso primeiro rei deste reino D. Afonso Henriques, cuja sepultura está nesse mosteiro, porque espero em Nosso Senhor que com estas armas me dê as vitórias que el-rei D. Afonso com elas teve. Pelo que vos encomendo muito que logo mas mandeis por dois religiosos desse convento que para isso elegereis. E como eu embora tornar, as tornarei a enviar a esse mosteiro, para as terdes na veneração e guarda que é devido a cujas foram, e por tudo. E por aqui entendereis que as não quero senão emprestadas para o efeito a que vou, e de quão grande contentamento isto é para mim. Escrita em Lisboa a 14 de Março de 1578. — Rei.”
Espada dita de D. Afonso Henriques, último quartel do Século XVI ?; aço; 99,5 x 14,5 cm. Inv. N.º 1 Div Museu Nacional de Soares dos Reis/ em dep. No Museu Militar do Porto (fot. José Pessoa IMC/ MC)
… “Recebida esta carta, mandou logo o padre prior limpar a espada do glorioso rei D. Afonso, e fazer-lhe uma bainha de veludo, com sua ponteira de prata doirada, e uma caixa preta em que fosse metida com sua chave, e fechadura doirada; e outra caixa preta em que fosse o escudo do mesmo santo rei, para irem estas armas com mais resguardo e veneração, e as mandou … a el-rei, o qual as recebeu com grande gosto e contentamento, dizendo, que se Deus lhe dava a vitória que esperava, prometia de fazer canonizar o glorioso rei D. Afonso, como já o intentara fazer el-rei João III seu senhor e avô.”
Neves, A.A. 2016. A Espada de Afonso Henriques. Acedido em 2019-09.17, em https://araduca.blogspot.com/2016/05/a-espada-de-afonso-henriques.html
A sagração dos aprestos de guerra de D. Afonso Henriques, enquanto relíquias teve um papel inquestionável na construção de que nos fala António Cruz de uma “legenda áurea”, que muito interessava aos monges crúzios e que foi já estudada por vários autores.
D. Afonso Henriques desbarata as forças do Rei de Badajoz
… A sua vinda para o Museu Portuense toma, pois, foros de iniciativa política eivada de simbolismo e por isso acaba inevitavelmente rodeada de polémica. Aos envolvidos no processo caberá o difícil papel da sua legitimação que debilmente se apoia na ideia de que D. Pedro IV a oferecera à cidade. Desse gesto não ficou qualquer registo escrito. A omissão é agravada pela ausência de registo de saída de Santa Cruz e de entrada no Museu Portuense.
O volume de correspondência trocado, de Maio a Outubro de 1834, entre o Prefeito do Douro, o Subprefeito de Coimbra, o Vice-Reitor da Universidade e o Ministro de Estado dos Negócios do Reino, acerca dos objetos retirados de Santa Cruz de Coimbra e da sua vinda para o Museu é bem elucidativo do confronto de vontades e da divergência de entendimentos relativamente aos princípios que norteavam a integração dos bens no património do Estado.
D. Afonso Henriques. Batalha de Ourique, quadro de Domingos António de Sequeira
… A Universidade e a Câmara de Coimbra multiplicam-se em pedidos e requerimentos para que fiquem na cidade os bens dos conventos locais suprimidos «por terem nella a sua sede os principais Institutos da Sciencias e das Artes; e onde por isso tais objectos serão com utilidade publica, mais consultados pelos Nacionais, e estrangeiros»
…. Alegava-se que esses bens formavam na cidade «huma distincta parte do seu ornamento, celebridade, e publica utilidade». … No documento em que se expõe essas alegações refere-se ainda que a «Espada do Grande Affonso acha-se depositada com outras preciozidades no Sanctuario do Mosteiro de Santa Cruz, não será justo que esta estimadíssima Relíquia do Fundador da Monarquia Luzitana se separe da Cidade onde repouzão as cinzas de tão Grande Heroe».
Igreja de Santa Cruz. Tumulo de D. Afonso Henriques.
Fotografia de António Luís Campos, acedida em https://nationalgeographic.sapo.pt/historia/grandes-reportagens/953-afonso-henriques
… Em 1863, coincidindo com um dos momentos em que é reclamada a sua devolução a Coimbra, é-lhe feita uma placa em prata para lhe servir de legenda com a simples informação «Espada de D. Affonso Henriques»
Em 1864, a Câmara de Coimbra reclama de novo «a devolução da espada que foi de Afonso I e outros objectos retirados do Mosteiro de Santa Cruz».
… Entre 1878 e 1903 Martins de Carvalho, nas páginas do periódico O Conimbricense, reclama repetida e veementemente a restituição da espada e das “outras preciosidades” a Coimbra, embora curiosamente duvide da autenticidade da espada.
Em 1933, a polémica reacende-se. Aquando da inauguração da sala Vitorino Ribeiro no Museu Militar de Lisboa, o seu Diretor reclama a espada para a Capital a pretexto de um monumento ao monarca fundador que aí planeava erguer-se … a polémica prosseguirá durante os vinte anos seguintes, entre a genuinidade, a ilegitimidade da transferência e a imperiosidade da devolução a Coimbra.
Em 1943 Rocha Madahil publica um inventário inédito do Mosteiro de Santa Cruz, que dará de imediato lugar a uma exposição coimbrã exigindo a restituição da espada «tesouro supremo da Cidade» cuja permanência no Porto «representa não só uma afronta ao brio de Coimbra, como sacrílega mutilação do venerando túmulo do fundador da Pátria».
O pedido é recusado pela Direção Geral do Ensino e das Belas Artes,
… O pedido repetir-se-ia em 1947 para entrega ao então Museu Regional de Machado de Castro, de novo sem sucesso.
Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172, acedido em http://artison.letras.ulisboa.pt/index.php/ao/article/view/72/65
O Museu Portuense ou Ateneu D. Pedro foi criado em 1833, por iniciativa de D. Pedro IV, e esteve na origem do que é hoje o Museu Nacional de Soares dos Reis.
Seria essa jovem instituição que, em junho de 1834, acolheria cerca de meia centena de pinturas e mais de cem volumes ilustrados provenientes do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e aí escolhidos por Francisco Pedro de Oliveira e Sousa e Alexandre Herculano.
Os dois comissários nomeados para procederem à escolha dos bens dos conventos abandonados terão ainda selecionado, para seguirem junto da primeira remessa de pinturas e livros, a célebre espada de D. Afonso Henriques, um estojo contendo uma escrivaninha italiana de tartaruga marchetada a ouro e madrepérola e uma série de vinte e seis pequenas placas de esmalte pintado de Limoges.
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A existência de uma espada, dita de D. Afonso Henriques, venerada entre outras relíquias em Santa Cruz de Coimbra está relativamente mal documentada.
A sua presença no Mosteiro não é mencionada quando, em meados de quinhentos, ao tempo de D. João III, se reúnem os fundamentos para a canonização de D. Afonso Henriques. No documento onde se organizam esses fundamentos, além da narrativa dos alegados milagres do monarca / santo, faz-se uma descrição das suas relíquias que até ai se haviam venerado no mosteiro, conta-se que D. Afonso se igualava aos monges quando assistia a missa no Mosteiro, rezando no coro e ofício divino como qualquer deles e que para o efeito quando entrava deixava na porta a espada e vestia uma sobrepeliz.
D. Afonso Henriques. Datada do final do século XII ou início do século XIII, esta poderá ser a mais antiga representação do primeiro monarca português. Já coroado e de espada em punho, o rei enverga também o manto real. (Créditos: Museu Arqueológico do Carmo/ José Pessoa/ IMC). Acedida em https://nationalgeographic.sapo.pt/historia/grandes-reportagens/953-afonso-henriques
Em memória desse gesto, a porta por onde entrava ficou a designar-se de espada cinta, designação que manteve até à data da sua demolição em 1628. Todavia nenhuma espada propriamente dita é aí mencionada enquanto objeto de devoção.
… Parte do debate gerado em torno da genuinidade da espada que hoje conhecemos como de D. Afonso Henriques, é suscitado pela improbabilidade do regresso das armas de Alcácer Quibir depois da trágica derrota de D. Sebastião.
Em 1604, numa vida de San António de Padua da autoria de Mateo Aleman, fomos encontrar a mais remota referência a este episódio que até agora conhecemos, em que se justifica a não utilização das armas e o consequente regresso com facto de o exército de terra estar já vencido quando chegou a armada onde se transportava a recamara do Rei e onde viajavam estas armas e não por esquecimento como divulgaram outros ao longo do Século XVII.
Ainda na primeira metade do Século XVII, quer D. Vicente quer D. José de Cristo, memorialistas de Santa Cruz, voltam a referir-se a ela, este último para dizer que se perdeu num incêndio da Sacristia.
Em 1628, Faria e Sousa refere-as como «oyas inestimables» que são no Mosteiro, ainda nesses dias, a espada, o escudo e a sobrepeliz com que seguia o Coro.
D. Vicente e D. José de Cristo acrescentam às narrativas que trasladam observações de carácter prático que eventualmente decorreriam do seu contacto mais direto com os objetos em questão e com o cartório onde os registos dos acontecimentos que os envolviam se guardavam. Da espada regista D. Vicente:
«Assi com ElRei pedio nesta carta assi se fez,/ mandaramlhe a espada, e escudo, e pera ir/ mais venerado, lhe fizeram a caixa preta/ que agora tem, sobre a antiga, a espada também a alimparam, e lhe fizeram aquella/ bainha e cabos, e caixa, porque dantes disto/ nam tinha cabos, senão amaçam largo, e huã bainha antigo como de facas».
Na miscelânea de D. José de Cristo guarda-se uma descrição detalhada que, a nosso ver, vem avolumar as muitas dúvidas levantadas sobre a originalidade da arma que em 1834 chega ao Museu Portuense:
«Dej-/xounos também huã espada de cingir que tem sinco palmos / de comprido, a guarnição ao Antigo, de largura de tres dedos e / vaj se deminuindo ate a ponta em dous, a qual antiguamente / era maior e mais larga e Comprida, mas como he de tantos an-/ os o ferro vajse guastando de alimparem porque a conser-/vamos sem ferrugem e mui lustrada como tal reliquea me-/resse. Alem disto também lhe fizeram as guardas e punho / mais curto do que era quando El Rej D. Sebastião a quis levar / pera africa».
Espada dita de D. Afonso Henriques
A informação pode ser verdadeira e descrever a espada que efetivamente regressou do Norte de África e a sua posterior alteração, ou ser fantasiosa e descrever uma espada nova que se fez para substituir a relíquia perdida, justificando as diferenças entre a original e que então se descrevia com as alterações e a usura do tempo. Em qualquer dos casos a espada que hoje se conserva não apresenta vestígios de semelhante desgaste ou alterações.
Das relíquias de D. Afonso Henriques guardadas em Santa Cruz apenas a espada chegou até nós. Da sobrepeliz e do escudo, deixa, que saibamos, de haver notícia depois do século XVII.
Espada dita de D. Afonso Henriques, último quartel do Século XVI ?, Museu Nacional de Soares dos Reis/ em dep. No Museu Militar do Porto (fot. José Pessoa IMC/ MC)
[Em 1985] A espada de D. Afonso Henriques cuja posse tanta polémica suscitara, é solicitada para uma exposição comemorativa do 8.º centenário da morte do Fundador no Museu Militar do Porto sendo em seguida pedida para passar a integrar a exposição permanente desse museu. A facilidade com que o Museu Soares dos Reis acede ao pedido evidencia que a peça não estava já incluída no programa de exposição. No Museu Militar a espada ocupa hoje lugar de destaque em exposição permanente. Todos os anos é solenemente transportada a Coimbra, até junto do túmulo de D. Afonso Henriques, no contexto das comemorações do dia do Exército.
Machado, A.P. A propósito de três itens de inventário. In: O Património Artístico das Ordens Religiosas entre o Liberalismo e a atualidade, n.º 3. 2016. Pg. 161-172
A Universidade permaneceu até 1910 (reforçada na sua simbologia em 1901) em grande parte uma universidade Católica e daí a República secularizar o programa cívico e demopédico que os seus teóricos há muito propugnavam.
A expulsão de Deus, é o mais claro sintagma modernizador nos ritos e símbolos universitários.
Capela da Universidade de Coimbra, pormenor do teto do altar mor. Insígnia da Faculdade de Teologia
A extinção da Faculdade de Teologia, correlata do longo declínio dos estudos jurídico-eclesiásticos, era por ela sugerida e discutida. Lente de Hermenêutica Sagrada, Mota Veiga admitia a escassa frequência, “os poderes públicos não oferecem nem dão aos estudantes teólogos garantias algumas eficazes para os atrair ao estudo da ciência da religião”, razão pela qual “os alunos vão sempre escasseando mais nas aulas de Teologia” pois a licenciatura jurídica, desleal concorrente, conferia em plano de igualdade o acesso e o provimento aos lugares eclesiásticos.
O fim da Teologia era exigido por adversos campos. Republicanos, livre-pensadores, mações, para quem a dimensão autotélica da liberdade só faria sentido numa sociedade secularizada e na Escola laica, exprobravam o ensino confessional e remetiam o estudo das religiões para o quadro das ciências históricas e sociológicas. Teólogos, como modo prático de assegurar cátedras perante as bancadas vazias, propunham a sua desagregação e a criação da nova Faculdade, designada de Letras (na linha francesa das iniciais propostas), onde estudos teosóficos, porventura teológicos e de história das religiões, pudessem noutras vestes sobreviver.
Condizia com o velho projecto de emancipação dos estudos humanísticos – confinados, nos Estatutos de 1772, ao âmbito dos «estudos menores» aí assegurados pelo Colégio das Artes – que sectores regeneradores anunciavam … em Claustro pleno de 10 de abril de 1867, originar a representação decidida a fundar a Faculdade de Letras.
… Resposta tardia ao não instalado Curso de Letras e a novas exigências que em meados do século da história se evidenciam, mormente na Faculdade de Direito, dado o maior peso da perspectiva histórica e filosófica dos estudos jurídicos, a criação da Faculdade de Letras passou por óbices que a adiaram para as calendas.
… Em sequência, o reitor Adriano Cardoso Machado, a 1 de outubro de 1888, anuncia a iminente criação da Faculdade mas só em 1907, vinte anos depois, os cinco conselhos facultativos criam consenso … desiderato de novo gorado.
Só a República o fará no âmbito da reforma do ensino superior consubstanciada na lei de bases, a Constituição Universitária.
Capela da Universidade de Coimbra, altar mor
… Ora, o fim da Teologia não significou a expulsão física dos mestres. Ex-teólogos criam mesmo a autêntica matriz qualitativa da Faculdade de Letras pois desde finais do séc. XIX orientam ensino e investigação no sentido da historiografia, filologia, literatura e pedagogia, colhendo a visão civilista que fundamenta o paradigma positivista, cientista e laico dos estudos humanísticos que a República promove, ministrando-o porém numa lógica conservadora que expede para a gnose religiosa.
Em 1919 admitiam os ex-teólogos que “nos últimos anos do antigo regime, a frequência da Faculdade de Teologia diminuíra dia a dia progressivamente” … Se em 1878 havia 44 matrículas, em 1909-10, para 12 professores, apenas havia 20 alunos: seis no I ano (dos quais Cerejeira), um no II, três no III, quatro no IV e seis no V. Toda a Faculdade não enchia a menor sala.
Carvalho, P.A. A exclusão universitária: Sobre o caso Sílvio Lima. 1935. Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. In Biblios, n. s. IX (2011) 125-193. Acedido em 2019.05.24, em
http://hdl.handle.net/10316.2/32411
Os dois volumes História do Abastecimento de Água a Coimbra, 1889-1926 e 1927-2007, da autoria do Professor Doutor José Amado Mendes, dão-nos conta, detalhadamente, do caminho percorrido em Coimbra, a fim de concretizar este melhoramento. Contamos de, em próxima ocasião, voltar a determo-nos neste trabalho.
A abertura, no passado dia 1 de outubro, da exposição Coimbra e a Água, dos primórdios até meados do séc. XIX, acontecida nas instalações onde funcionou a Estação Elevatória do Parque Dr. Manuel Braga, hoje Museu da Água, chamou-nos a atenção para a inexistência ou para o desconhecimento de documentação fotográfica que se relacionasse com aquela antiga estrutura.
Alguns dos que nos estão a ler ainda se lembram de espreitar para o interior da Estação Elevatória, onde grandes bombas negras, fazendo um barulho ensurdecedor e exalando um cheiro esquisito, bombeavam a água que abastecia a cidade. Pensa-se que, ao ser desativada, o equipamento seguiu o caminho da sucata, com exceção de uma pequena peça que ali se encontra exposta.
Graças a Carlos Ferrão conseguiu-se a imagem que seguidamente se reproduz.
Estamos perante uma vista aérea do Mondego, com a ínsua dos Bentos bem percetível, dado que o Parque Dr. Manuel Braga ainda não havia sido arquitetado, e, no canto inferior direito surge um pequeno edifício passível de corresponder à Estação Elevatória primitiva que, como refere Amado Mendes, foi «edificada em 1922».
Como já atrás mencionámos, não conhecemos qualquer outra referência gráfica relacionada com a Estação Elevatória e, por isso, o que nos moveu a escrever esta “entrada” passa por pedir aos leitores que, no caso de estarem na posse de imagens da Estação Elevatória em funcionamento ou de pistas relacionadas com publicações onde as mesmas se possam encontrar, façam o favor de as divulgar.
Temos para nós que seria importante estar patente no atual Museu da Água, através de imagens, a história do passado, mas para que tal possa acontecer pedimos a ajuda de todos.
Rodrigues Costa
O documento que hoje se divulga, está incluído numa coletânea de documentos manuscritos, datados de 1754-1792, organizada em volume em 1854, pelo Dr. António Henriques Seco que a doou à Biblioteca Municipal.
Neste volume encadernado há obras da autoria de seu bisavô, o Dr. Luís de Sousa Reis, (1707-1783), nomeadamente o Rayo de Luz Catholica que inclui o texto a seguir transcrito.
Grande chuvada inunda o Mosteiro de Santa Cruz
Grande chuvada que ocorre no dia 23 de Abril de 1766, dia de São Jorge, inundando as águas várias dependências do Mosteiro de Santa Cruz, junto à Porta do Carro, onde se forma um grande lago que obriga os frades a pedir a ajuda dos populares, para lhe quebrarem a Porta, pelo lado do Terreiro de Sansão.
Transcrição paleográfica (parcial)
[fl. 135] A 195- E bem mingoadas horas forão as que elles tiverão na madrugada do dia de São Jorge 23 deste mês de Abril. Em toda aquella noute esteve a chover, e sobre a madrugada foi tão forte e continuada a chuva, que não cabendo pella runa a copia das muitas agoas que corrião da parte de Cellas e de toda a sua Quinta da Ribella saltando estas fora pela orta correrão a Portaria do Carro e achando a fechada inundarão todo o Terreiro que fica entre a mesma Torre dos Sinos, em mais altura do que he a de hum homem, e continuava dahy pera sima de sorte que lhe entrou por todas as officinas, cozinhas, dispensas e refeitorio em que com outras partes lhes deu bastante perda, e muito mais nos celleiros do milho e cevada a qual lhe apanhou dizem que dezasete moyos, que andavão a tona de agoa e se forão embora juntamente com hua caza de livros e venda, que tinhão junto a Porta do Carro, de Ordenaçoes do Reyno e outros varios lyvros que ahy se vendião que todos ficarão inunudados com agoa e lodo e de todo estragados em que tudo experimentarão excesivo prejuizo, e com o impeto da muita agoa e embate que fazia por todas as partes tremião as hospe [fl. 135v] darias e alguns dormitorios do convento, o que tudo cauzou a estes malditos Jacobeus de Santa Cruz hum terrivel susto e quasi perdidos sem poderem acodir a um mal tão eminente, repicarão o sino a fogo vivo e rijamente e vierão as janellas a gritar em altas vozes a implorar a favor do povo e dos vizinhos que lhes acodissem e cobrassem as portas com machados, e que ainda que ao toque do sino ninguem acodio, por não dar lugar a grande copia de agoa que cahio, com tudo as vozes e gritos que os frades davão das janellas acodirão alguns vezinhos que com machados lhes quebrarão a Porta do Carro, com que a agoa começou a sahir pera o Terreiro de Sansão que todo inundou, e começarão os Jacobeus a ficar mais aliviados do susto, e tãobem o Bispo que nessa noite tinha dormido em Santa Cruz, e os frades que começarão a tratar de reparar os estragos da inundação que não forão poucos, nem tãobem foi piqueno o rigozijo que cauzou a noticia que logo se divulgou pela cidade, tanto que aclarou o dia folgando todos com o susto dos malditos, que apesar da sua soberba se virão obrigados a implorar o favor do povo, e dos vizinhos porque reconheção que tãobem necesitam delles.
Mosteiro de Santa Cruz, portaria do carro
Mosteiro de Santa Cruz, terreiro que fica entre a mesma Torre dos Sinos. Pormenor da planta de Magne
Mosteiro de Santa Cruz. Refeitório, hoje Sala da Cidade
AHMC. Catálogo da Exposição. Documentos sobre o Mosteiro Santa Cruz de Coimbra no AHMC. 2019. Coimbra, Município de Coimbra.
Casa da escrita (Rua Dr. João Jacinto Nº 8, telefone 239 853 590)
Tema:
HERDADE DE ENXOFÃES: SUA IMPORTÂNCIA PARA A SUBSISTÊNCIA DO HOSPITAR DE S. LÁZARO
Capela de Enxofães. Imagem de Santa Maria Madalena. Foto Varela Pécurto)
ANTT. Carta venditionis da hereditate in loco Exofees
Palestrante: Rodrigues Costa
Iniciou carreira profissional aos 16 anos, na Biblioteca Municipal de Coimbra, secretariando o historiador Dr. José Pinto Loureiro.
Desempenhou diversos cargos na Câmara Municipal de Coimbra, o último dos quais o de Diretor do Departamento de Cultura, Desporto e Turismo.
Deixou a função pública para exercer funções diretor de marketing numa cadeia hoteleira.
Consultor na área do planeamento turístico com diversas missões realizadas para a Organização Mundial de Turismo, nos PALOP.
Docente na área de Gestão Hoteleira na Escola Superior de Turismo e Hotelaria do Estoril e nas Universidade Internacional e Lusófona. Neste âmbito publicou Introdução à Gestão Hoteleira (5.ª edição) e Gestão Comercial na Hotelaria.
Depois de aposentado voltou a dedicar-se à investigação histórica e é, atualmente, o responsável pelo blogue A’Cerca de Coimbra. Entretanto publicou a monografia Enxofães. Mais de mil anos de história e a investigação destinada a colocar em letra de forma Murtede. O concelho que foi, a freguesia que é encontra-se na fase final.
Esta “Conversa Aberta”, com base na investigação histórica já realizada, destina-se a problematizar vários aspetos relacionados com a Herdade de Enxofães: a sua importância para a subsistência do Hospital de S. Lázaro de Coimbra.
Após a intervenção inicial, seguir-se-á um debate, estimulado pelos participantes.
Entrada livre.
Organização: Casa da Escrita de Coimbra, com o apoio do Blogue A’Cerca de Coimbra.
Próxima Conversa Aberta
08.11.2019, 6.ª feira (a primeira 6.ª feira é feriado), 18h00
Palestrante: Nelson Correia Borges
Tema: João de Ruão um escultor de Coimbra
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