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É uma das várias igrejas de Coimbra que tiveram de mudar de local, para fugir às inundações das cheias do Mondego. A igreja medieval situava-se no largo que é hoje conhecido por Terreiro da Erva – onde ainda se podem ver vestígios da capela mor e nave lateral –, no coração do território dos seus mesteirais: os oleiros de branco e de vermelho e os pintores de louça e azulejos – gerações de artífices que, durante séculos, fizeram de Coimbra um dos mais importantes centros ceramistas do país, com louça exportada para os quatro cantos do mundo e de que hoje pouco se sabe e nada resta, perdida a última oportunidade de estudar os seus vestígios com as demolições da famigerada viela central.
As cheias do Mondego foram sempre em crescendo. A de fevereiro de 1708 obrigou à trasladação do Santíssimo e da imagem do Santo Cristo para a igreja de Santiago, de barco! Logo se tratou de construir nova igreja. O local escolhido foi a encosta sobranceira ao Arnado, bem longe das investidas do bazófias. A primeira pedra foi lançada pelo bispo D. António de Vasconcelos e Sousa em 24 de agosto de 1710.
Igreja de Santa Justa, fachada principal
A fachada da igreja é monumental, pela sua situação altaneira. Flanqueada por duas torres, está amplamente rasgada de janelas que enchem de luz o interior. Inclui um retábulo da segunda metade do século XVI, trazido da igreja velha. Sobre o frontão das janelas intermédias situam-se quatro nichos com esculturas dos séculos XV e XVI incluindo as santas Justa e Rufina, padroeiras dos oleiros. Junto à base das torres encontram-se duas lápides epigrafadas com a história da igreja.
Igreja de Santa Justa, interior
O interior é de arquitetura sóbria, mas bem delineada, de nave única, coberta por abóbada de arco um pouco rebaixado. Divide-se em cinco tramos, sendo o primeiro ocupado pelo coro alto. Neles se rasgam arcos, formando capelas à face. A capela-mor, de um só tramo mais profundo, é mais estreita que a nave, encontrando-se o altar em plano mais elevado.
Igreja de Santa Justa, a imagem do Santo Cristo dos Oleiros
Os primeiros arcos a seguir ao coro alto são preenchidos na parte superior por pinturas do início do século XVIII, envolvidas em molduras de talha dourada, representado a Virgem com o Menino e o Batismo de Cristo. No arco, do antigo lado do Evangelho, encontra-se a imagem do Santo Cristo dos Oleiros, do século XV.
Igreja de Santa Justa, interior pormenor
Os arcos dos tramos seguintes abrigam retábulos. Os quatro primeiros enquadram-se no rococó coimbrão, embora de forma mais original: as colunas têm grinaldas de flores envolventes e entrecruzadas e, no terço inferior, caneluras em espiral. Sobre os altares da nave, oito telas da época joanina, mostram os passos da paixão de Jesus, cujos símbolos se exibem também no coroamento da fachada exterior. Os capuchinhos, que em tempos detiveram esta igreja, fizeram nela algumas alterações, como a ablação das mesas dos altares da nave e a substituição das imagens antigas por outras do século XX.
Os retábulos junto à capela-mor têm diferente linguagem. O do lado norte é adaptação de outro, seiscentista, vindo da igreja antiga. Tem colunas espiraladas, revestidas de vinha, uvas, meninos e aves debicando. Na predela há um relevo com a degolação dos Mártires de Marrocos. O retábulo fronteiro, da época joanina, também de colunas espiraladas, mas com grinalda no cavado. É dedicado às Almas do Purgatório, tema não muito comum na diocese.
Igreja de Santa Justa, altar-mor pormenor
A capela-mor é dominada pelo magnífico retábulo de talha dourada, de grande aparato, saído, certamente, de oficinas do Porto. Data dos primeiros decénios do século XVIII. Estrutura-se em colunas retorcidas sobre mísulas e reveste-se de acantos, flores, aves e profusão de crianças e anjos. Um grande sacrário, com quatro colunas salomónicas por lado, em diagonal, serve de base à escultura do Padre Eterno, com a pomba simbólica e anjos. Aos lados dispõem-se as imagens das titulares: as santas Justa e Rufina. Encima este conjunto escultórico o camarim onde se ergue o trono eucarístico, com baldaquino.
Desconhecem-se nomes de arquiteto, artistas e artífices. A mesma esponja que apagou a memória da atividade dos oleiros parece ter atingido também esta igreja. Mas as obras valem por si e basta o retábulo-mor para ombrear com outras obras-primas da arte em Coimbra.
Nelson Correia Borges
In: Correio de Coimbra N.º 4732, de 21.03.2019
Coloquemos António Nobre em Coimbra. Ele que já antes de ser um tísico declarado no corpo o era, da alma … em Coimbra vem encontrar o seu meio próprio, uma terra carinhosa que o compreende, que lhe dá alguma felicidade. Que o compreende …, melhor: que ele molda em si. Aqui a luz inapagável do seu eu encontra à vontade chapas a impressionar.
António Nobre, estudante de Coimbra
E porquê? Porque Coimbra é … essencialmente sombras. Nobre, o estudante sentimental, enrodilha-se no fio da tradição coimbrã, caracterizadamente estudantil – e pouco luta para se libertar; mas até essa pequena luta, esse viver ativo encontra almas que o compreendem: as dos seus companheiros, moços como ele, com muitos dos defeitos dele, representantes de Portugal inteiro, cera moldável pelas mãos dum artista.
…. Coimbra oferece-lhe monumentos que séculos carcomiram, ruas calcadas por muitas gerações, casas cujas paredes estão negras de ver passar milhares de capas. Tudo evoca o passado; por toda a parte há sombras.
Torre de Anto, onde António Nobre viveu
… É atingido duma doença estranha que ele próprio diagnostica: «medievalite». Vive numa torre de velhas eras que antropomorfiza:
«Pelos seus muros verde suor escorre
Porque há mil anos que ela está de pé.»
… «Certamente morro com uma torrite. Tem sido tal a minha adoração por ela («a torre»), nestes dias, que chego a ter uma verdadeira obsessão, andando a escrever a lápis por todas as ogivas, por todas as portas, por todos os cantos: «Anto»! «Anto»! «Torre-de-Anto»!
…. Mas Nobre não ama só o passado: ama tudo onde possa espelhar o seu ideal. Tudo isso – e só isso. Era um artista: a bela paisagem coimbrã tinha de o compreender; melhor: tinha de ser por ele compreendida. Idealismo na alma – realismo na obra: Nobre entende, por exemplo os choupos, de que tanto fala: anima-os como anima a torre de onde os choupos se veem:
«Georges entra e vê: o sol que entre os choupos morre
E a velha Coimbra anoitecendo, vê!»
Monumento a António Nobre no Penedo da Saudade
…. Pelo exposto bem se compreende, julgo, o grande amor de António Nobre por Coimbra. Coimbra era … como que a sua casa ideal, cheia de tradição, envolvida por uma paisagem sombria, dormindo ao som do fado e das guitarradas … Ainda ele não havia começado o seu peregrinar pelo mundo, e já afirmava que em parte alguma existia paisagem com esta:
«Que lindas coisas a lendária Coimbra encerra!
Que paisagem lunar que é a mais doce da Terra!
Que extraordinárias e medievas raparigas!
E o rio? e as fontes? e as fogueiras? e as cantigas?»
Arnaut, S. D. 1967. António Nobre e a paisagem de Coimbra. Coimbra, Livraria Almedina.
Na Biblioteca Nacional de Lisboa… encontra-se um Manuscrito … resultado de uma «sindicância» ou «devassa» feita à Universidade de Coimbra, de 1619 a 1624, por D. Francisco de Meneses, na qualidade de reformador da Universidade.
…. Durante os longos cinco anos por que se prolongou aquela «reformação» (ou como hoje se diria, aquela «inspeção, sindicância ou devassa…») [foram inquiridas] cerca de 300 pessoas, entre lentes, opositores, doutores, clérigos, estudantes, oficiais da Universidade e civis, chegando à conclusão de que a Universidade padecia de «muitos e prejudiciais vícios», os quais nos dão uma ideia geral do estado de decadência em que, nos começos do século XVII, se encontrava a Universidade Portuguesa, situação, aliás, partilhada, naquela época, pela maioria das Universidades estrangeiras.
[Salientamos alguns exemplos] desses aspetos negativos da vida da Universidade:
- Os ornamentos e paramentos da Capela da Universidade nem sempre eram bem tratados e, por vezes, eram mesmo emprestados e até alugados.
- Alguns capelães da Capela da Universidade não estudavam ou até nem sequer se matriculavam.
- Nem o Reitor nem o Vice-Reitor haviam mandado pôr éditos na porta das Escolas a lembrar aos estudantes a obrigação que tinham de se confessar.
- O Secretário da Universidade … levava 1 vintém aos estudantes pela matricula.
- O mesmo Secretário aceitava dinheiro, presentes, peitas ou dádivas para «dar» a alguns estudantes «tempo» que lhes faltava para se poderem reformar ou para poderem «provar cursos»,
- O Vice Conservador da Universidade … era grosseiro, caloteiro, venal, devasso e, em geral, não cumpria os seus deveres.
- Os três Bedéis da Universidade, mas, de modo mais notório, o de Cânones e Leis e o de Medicina, eram «corruptos», não marcando as faltas dos estudantes, aceitando dinheiro e outros presentes aos estudantes e graduados que trocassem as «sortes» para os atos de conclusão, ou para marcarem a data dos atos.
- Alguns estudantes tinham pistoletas, espingardas, terçados, facalhões e outras armas.
- Alguns funcionários e estudantes viviam em mancebia.
- Alguns religiosos e eclesiásticos, alguns estudantes entregavam-se a práticas de homossexualidade e sodomia ou, como se dizia na linguagem da época eram «fanchonos».
- Havia lentes, bedéis e estudantes que se entregavam ao vinho em excesso.
- Alguns estudantes e até funcionários da Universidade falsificavam documentos, nomeadamente «certidões» de cursos.
- O encarregado da Livraria da Universidade …. retirou dela alguns livros e até algumas das cadeias que os prendiam.
- Alguns estudantes de Medicina exerciam a profissão médica sem haverem completado os seus cursos.
- Alguns funcionários e sobretudo professores … praticavam o suborno por ocasião das oposições às cadeiras.
. Na eleição dos Reitores e Vice-Reitores se praticavam subornos.
Eis alguns dos «muitos e prejudiciais vícios» de que, segundo a Devassa de 1619-1624, enfrentava a Universidade de Coimbra. Esses «vícios» não enlamearam, porém toda população universitária quer do corpo docente quer do corpo discente.
Francisco Suarez o «Doctor eximius» (1548-1617). Acedido em
https://www.bing.com/images/search?view=detailV2&ccid=1y2Mq1iW&id=F3F749EA4929C27039780A7AED5A554B7F898ECC&thid=OIP.
Frei Amador Arrais. Dialogos. Acedido em https://digitalis-dsp.uc.pt/html/10316.2/8655/item1_index.html
Pedro Mariz. Dialogos de varia historia. Acedido em http://purl.pt/22932
Efetivamente, durante o primeiro vinténio do século XVII, professaram em todas as Faculdades da Universidade de Coimbra alguns Mestres de excecional valor. Bastaria lembrar … Francisco Suarez, o «Doctor eximius» … Cristóvão Gil … Frei Amador Arrais, Gabriel Pereira de Castro e Pedro Mariz.
Gomes, J.R. 1987. Alguns vícios da Universidade de Coimbra no século XVII, segundo a Devassa de 1619-1624. Lisboa, Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa.
Dentro de alguns anos [1998] passa o meio milénio da Misericórdia coimbrã … Entre vária documentação notável, merece referência o conjunto de 25 grossos volumes, denominados «Documentos antigos», que agrupam manuscritos que vêm da fundação da Casa até meados do seculo XVIII, e o precioso «Memorial das Rendas e mais couzas da Misericordia de Coimbra».
Folha de abertura do «Memorial» de João Baptista
…. Abrindo com uma folha branca, está a folha seguinte toda ocupada por um desenho nas cores sépia, preto e vermelho … Na oval, em chefe, está a figura de Nossa Senhora da Misericórdia lateralizada por dois anjos apoiados nos brasões nacional e dos Almeidas, decerto em lembrança do benemérito bispo Dom Jorge de Almeida, que na sua Sé acolheu a Misericórdia quando da sua instituição.
…. [Do «Memorial das Rendas e mais couzas da Misericordia de Coimbra»] Se respigam alguns capítulos concernentes à história da Santa Casa até ao ano [1645] em que ele a escreveu:
- Teve sua origem em princípio de 1498.
- No ano de 1500 se ordenou essa Confraria na cidade de Coimbra, como parece, por uma carta do … Rei de 12 de Setembro de 1500 escrita aos Vereadores desta cidade em que os louva e aprova quererem instituir a dita confraria e lhe concede os privilégios todos que haviam concedido à Misericórdia de Lisboa por um alvará feito no mesmo dia.
- É tradição que primeiro se assentou esta Confraria da Santa Misericórdia na Sé, daí se passou para a Igreja de Santiago, na casa que serve de celeiro, na quina da praça onde se diziam as missas e se chamava Capela da Misericórdia.
- No mesmo sítio esteve até o ano de 1546 em que se ordenou fazer-se nova casa sobre a Igreja de Santiago como está edificada, como se vê do contrato celebrado pelo provedor e mais irmãos dela… e o prior … e mais beneficiados da dita Igreja [de Santiago].
Relevo da frontaria da Misericórdia e Coimbra (In: Borges, N.C. 1960. João de Ruão. Escultor da Renascença Coimbrã)
- Os retábulos e mais obras desta casa parece fazer aquele grande mestre João de Ruão como se vê de uma quitação sua.
- Depois, em diversos tempos, se tratou de mudar a casa da Misericórdia para vários sítios, escolhendo a praça desta cidade no canto do hospital de S. Bartolomeu até o Romal e para isso compraram as moradas de casas que estão feitas na praça nas costas da mesma Igreja do hospital que ao depois se tornaram a vender. E depois se quis edificar na entrada da Rua do Corpo de Deus, onde se começou nova casa em o ano de 1589 a 29 de Maio, cujas obras se suspenderam depois da obra estar aberta, havendo-se nela despendido já cópia de dinheiro.
A Misericórdia ocupava os dois pisos superiores ao portal de Santiago, e ali se encontravam somente a administração e a capela, de que se nota a Torre sineira
- Finalmente no ano de 1605, em 6 de Março se tomou o último assento que a casa da Misericórdia se não mudasse e se fizesse as casas, convém a saber, do despacho, sacristia, e da cera, e mais obras novas na forma e que hoje estão.
A velha Sé de Coimbra adaptada a Igreja da Misericórdia, pormenor c.1773
…. Perante os insucessos a Irmandade vai-se mantendo na sua exótica Igreja e sede -porque, caso único, estava construída sobre outra igreja – até que tendo o Cabido da Sé sido mudado da velha Sé para a Igreja dos Jesuítas, logo a Irmandade da Misericórdia, em Março de 1772, voltou à casa onde havia nascido quase três séculos antes.
- As grandes dificuldades de alojamento só viriam a ser resolvidas pela Carta de Lei de 15.XI.1841 quando concedeu à Misericórdia a ocupação do Colégio Novo (onde num pequeno espaço funcionava o Tribunal, e em resultado da cedência teve que vir instalar-se na Torre de Almedina).
O «Colégio Novo» restaurado após o incêndio. À direita a «Torre de Anto» e o moderno colégio onde se encontram os alunos
- A vida da Misericórdia continuou com altos e baixos até que na noite de 1 de Janeiro de 1967 um violento incêndio destrói grande parte do edifício
Nota:
O trabalho citado integra uma transcrição do Inventário dos «Moveis desta S. Caza…» realizado em 1645.
Silva, A. C. 1985. Um Inventário seiscentista da Misericórdia de Coimbra. Separata de Munda.
Quando este Inventário [dos Ornamentos e Joias da Igreja de Sant’Iago de Coimbra, em 1697] foi feito, acabavam de ter lugar as transformações do edifício, se é que não decorriam ainda as obras finais.
Igreja de Santiago, capela gótica
Igreja de S. Tiago, capitel da abside
Ao tempo era a paróquia de Sant’Iago uma das mais prósperas da cidade, em franca ascensão demográfica e económica. De 1528 a 1640 os batismos não cessam ali de apresentar um «crescimento de pendor acentuado», o que bem exemplifica o seu aumento populacional. É a freguesia de Coimbra que maior número de contribuintes apresenta.
Igreja de Santiago, interior
…. Seria portanto, talvez a mais rica igreja paroquial da cidade, participando no fervilhar de vida que se desenrolava em torno da velha praça, o que necessariamente se refletiria no número e qualidade de alfaias litúrgicas e outros objetos ou peças próprias do mobiliário de um templo sede de freguesia.
É isso o que parece depreender-se deste inventário de 1607, que se pode considerar exaustivo e merecedor de inteira fé. Porém, uma análise atenta do documento em breve levará à conclusão de que a riqueza se fica mais pela quantidade do que pela qualidade. Com efeito, apesar da quantidade de panos, algumas pratas e outros pertences aqui arrolados, que riqueza era a de uma igreja onde apenas havia duas caldeirinhas, sendo uma de latão e outra de barro, uma cruz processional, uma naveta …? E se assim era numa das paróquias mais abastadas de Coimbra, como seria nas mais pobres, nas paróquias rurais?
…. Aliás, e como é natural, as peças mais utilizadas nas funções de culto são aquelas que se encontram representadas em maior quantidade. Tal é o caso dos sete cálices que deveriam ser todos lisos, à exceção de um «com flores no pé» e outro porventura o mais interessante, com «o vaso a modo de pinha, obra antiga» … tinha quatro [custódias], das quais uma era do tipo de custódia-cálice. Também as coroas de imagens, fechadas ou abertas, são motivo para delicado trabalho … Em maior número são, porém, os relicários. Estes podiam assumir os mais diversos formatos e composições.
…. Extensa é a informação fornecida pelo inventário no que toca a tecidos, abarcando todo um acervo de fatos de imagens, toalhas, paramentos e outras peças de uso litúrgico …. Abundam cortinas, véus de altar e outros panos … O tecido mais utilizado nestas peças é, sem dúvida, o tafetá e o damasco, logo seguido pelo veludo. Mas havia também muitos outros desde a estopa e estopinha ao chamalote, à bombazina, damascos e damasquilhos, brocados, brocatéis e brocadilhos. Não faltam os panos da Índia – sedas, damasquilhos, brocadilhos, tafetás – nem alguns com nomes pitorescos, como o bertangil, o bocaxim e a primavera.
…. Um dos aspetos mais interessantes do inventário é o que diz respeito às variadas peças e móveis da guarnição da igreja. Por ele sabemos que existia um órgão de cinco registos, no coro alto … Não faltam as campainhas, estantes de altar, sacras, alâmpadas e galhetas, nem os castiçais, tocheiros e candeeiro das Trevas.
Arco de Santiago
O Arco de Santiago, mostrado no desenho de Jorge da Cruz Jorge, foi erguido no final do séc. XVIII e demolido nos últimos meses de 1858, por ocasião do alargamento e retificação da antiga rua do Coruche, hoje rua Visconde da Luz. Ligava o edifício da Misericórdia, construído sobre a Igreja de Santiago, aos antigos “açougues da Praça”, incendiados pelas tropas francesas aquando da terceira Invasão. A reconstrução do arco aconteceu pouco antes do seu arrasamento.
Para eventuais interessados: o trabalho aqui citado termina com a transcrição do Livro do Tombo, no qual são enumerados e descritos todas as propriedades e bens da Igreja de S. Tiago, no final do século XVI.
Borges, N.C. 1980. O Inventario dos Ornamentos e Joias da Igreja de Sant’Iago de Coimbra, em 1697. Coimbra, Instituto de História da Arte. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Determinaram as «Constituições Sinodais do Bispado de Coimbra», em 1591 … que em todas as igrejas houvesse um livro de Tombo, autêntico, donde constassem todas as suas propriedades e bens … Assim surge o «Inventário da prata e ouro, ornamentos e roupa do serviço da igreja de Nossa Senhora e dos Sanctos e de todas as cousas de que se serve a Igreja de S. Tiago que mandou fazer o prior».
…. O aspeto que esta igreja citadina de um dos topos da Praça Velha, depois de restaurada, nos oferece, poderá não ser, porventura, o mesmo da sua primitiva fábrica. Todavia, temos de reconhecer que a reconstituição feita foi, na ocasião, a única e a melhor possível.
A igreja de Sant’Iago antes das obras de restauro
A Igreja de Sant'Iago durante as obras de restauro
A igreja de Sant’Iago depois as obras de restauro
Está a sua fundação envolta em lendas que se relacionam com a tomada da cidade, em 1064, por Fernando Magno. De concreto apenas se sabe que antes da reconstrução dos finais do século XII e inícios do XIII – a nova igreja foi sagrada em 28 de Agosto de 1206 – já no local existia outro templo de que há referências documentais no século XII.
[A origem lendária da fundação da Igreja de Sant’Iago foi contestada, nomeadamente, por António de Vasconcelos … e F.A. Martins de Carvalho… Para estes historiadores o documento mais antigo respeitante a Sant’Iago apenas remontava a 1183. Foi A. Nogueira Gonçalves quem revelou e chamou a tenção para notícias anteriores àquela data].
No século XVI, a fisionomia do monumento foi grandemente alterada,
Com efeito, em 3 de Junho de 1546 lavrou-se contrato entre a Irmandade de Nossa Senhora da Misericórdia e a Colegiada de Sant’Iago para a construção da casa e igreja da Misericórdia sobre o velho templo românico.
Entrada para a Misericórdia antes das obras de restauro da Igreja de Sant’Iago
O novo edifício ficou edificado sobre a nave da «capela de S. Simão, onde ora está o Santíssimo Sacramento e sobre a capela de Vasco de Freitas», com entrada pela rua de Coruche, na parte posterior, o que era possível graças ao grande desnível do terreno. O patim de acesso foi feito sobre a «sacristia e capela de S. Simão».
Para segurança de ambos os templos se estipulavam a construção de «arcos», «na dita nave de S. Simão», bem como diversas medidas a tomar quanto ao encaminhamento das águas pluviais.
…. Que capelas ou altares haveria então na Igreja de Sant’Iago?
Também a este respeito o inventário fornece indiretamente algumas informações. O número não iria além de sete: três na cabeceira e quatro do corpo da igreja, sendo uma à Epístola e três do lado do Evangelho.
Na capela-mor se encontrava a imagem do orago, Sant’Iago, e o sacrário com o Santíssimo Sacramento que mais tarde esteve também na capela do Bom Jesus. Nas colaterais destacavam-se os altares de Nossa Senhora da Conceição, à Epístola. O primeiro era da administração da Colegiada. O segundo pertencia à respetiva confraria, constituída por nobres, no dizer do escrivão do inventário, e «muito rica», segundo as palavras do prior.
…. No corpo da igreja, do lado direito, entre a porta travessa e a escada que subia para o coro, situava-se a capela gótica primitivamente dedicada a S. Pedro e depois a Santa Escolástica, ao Bom Jesus, e, por fim, ao Sacramento. Nas obras de restauro foi transferida para o tramo fronteiro, indo ocupar o espaço da capela de Santo Ildefonso.
Do lado esquerdo estavam as capelas de Santo Elói e Santo Ildefonso, a que mais tarde se juntaria a do Espírito Santo, instituída em 1653 por Úrsula Luís, viúva do mercador Manuel Roiz-
…. A capela de Santo Ildefonso era da família dos Alpoins.
.… A capela de Santo Elói «que edificaram e fabricaram os ourives desta freguesia …» era a primeira, ao entrar no portão principal.
…. Resta ainda a capela de S. Simão e a de Vasco de Freitas… A primeira é a da Senhora da Conceção, ou seja, a colateral direita da cabeceira da igreja. A última deverá talvez corresponder à do Bom Jesus, primitivamente de S. Pedro.
Quanto a Santo André, que aparece com certo destaque no inventário, com suas vestes próprias e um possível altar, onde «servia» uma estampa e um frontal de rede, a ter existido na verdade este altar, seria bastante singelo. O mais lógico é que se tratasse de uma imagem integrada num dos outros altares.
…. Além das confrarias de Nossa Senhora da Conceição, dos nobres, e de Santo Elói, dos ourives, o inventário fala ainda das de S. Simão, Santo André, Sant’Iago, Santa Bárbara, Nossa Senhora da Piedade e Espírito Santo. Todas possuíam a sua arca, destinada a arrecadar a cera que cada confrade deveria pagar anualmente e de que se faziam as tochas que eram levadas na procissão do Corpo de Deus.
Borges, N.C. 1980. O Inventario dos Ornamentos e Joias da Igreja de Sant’Iago de Coimbra, em 1697. Coimbra, Instituto de História da Arte. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
D. Catarina Henriqueta de Bragança era filha de D. João IV e de D. Luísa de Gusmão. Nasceu no Paço ducal de Vila Viçosa a 25 de novembro de 1638 e casou-se, em 1662, com Carlos II de Inglaterra; por ser católica, jamais foi coroada rainha. Não teve descendência.
Cortejo de despedida e embarque de Dona Catarina de Bragança para Inglaterra. Acedido em http://www.museudelamego.gov.pt/um-ano-um-tema-traz-em-abril-gravura-de-d-catarina-de-braganca/
Carlos II e Catarina de Bragança. Acedido em
https://www.vortexmag.net/a-rainha-portuguesa-que-mudou-a-inglaterra-e-lhe-deu-um-imperio/
Catarina Rainha da Inglaterra. Acedido em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d4/Catherine_of_Braganza_-_Lely_1663-65.jpg
Enviuvou a 16 de fevereiro de 1685, mas continuou a viver em Inglaterra durante o reinado de Jaime II, seu cunhado.
Embarcou para Lisboa a 29 de março de 1692 e entrou em Lisboa a 20 de janeiro do ano seguinte. No caminho passou, como se pode constatar lendo a entrada abaixo publicada, por Coimbra.
Morreu na capital, no Palácio da Bemposta que mandara construir para sua residência, a 31 de janeiro de 1705.
O costume de beber chá, embora de forma embrionária, já existiria em Inglaterra, mas D. Catarina institucionalizou-o no tão “britânico” hábito do five o'clock tea.
Dona Catarina enviúva e resolve voltar à pátria, e nova epistolografia se troca entre o novo rei [D. Pedro II] e a Câmara [de Coimbra] … com a carta régia de 28 do mesmo mês [Outubro de 1682] pede à cidade que recebesse sua Irmã com demonstrações de alegria como se do próprio se tratasse.
…. Recebida esta carta [expedida da Mealhada em 8 de Janeiro de 1693] se leo na camera …Logo se prepararaõ p.ª caminharem ao lugar dos Fornos destinado p.ª a espera, e se ordenou o congreço na praça da Câmara na forma seguinte:
Procediaõ dous trombetas a cavallo vestidos de vistosos catalufas e mais guarniçoens q a camera lhe deu, nas trombetas suas bandeiras com as armas reaes de huá parte, da outra as da Cidade, dous ternos de charamelas, os meirinhos e officiaes da Justiça; seguiace a bandeira da Cidade … se pedio a levasse … um dos principais sidadaõs desta Cidade … montado em hum fremozo cavallo tomou a bandeira e fazendo paço o seguia o senado com suas varas, e toda a nobreza e cidadoens a quem se havia avizado todos a cavallo e foraõ caminhando ao lugar destinado.
Chegados a elle com pouca demora chegou logo o Marques Conductor … e logo chegando a carroça real dando alguns paços, mandou parar o Marques e chegando à estribeira deu parte … como ali estava a camera e nobreza da Cidade … lhe beijaraõ a maõ.
Catarina Rainha de Inglaterra. Acedido em https://www.bing.com/images/search?q=catarina+rainha+da+inglaterra&id=D73B6E84EF6502AB8725C63E9751A98EBE629801&FORM=IQFRBA
…. Chegados à porta [Porta da Cidade, ou Porta de S. Margarida como é referida na planta de 1845 realizada por Izidoro Emílio Baptista, uma vez que a Porta da Figueira Velha, segundo José Pinto Loureiro, já não existia no reinado de D. João III] estava já nella o Bisconde e o procurador da Cidade q lhe entregou as chaves … Nesta porta estava hum Fremozo arco dos Tendeiros feito de duas faces como todos os demais, vestido de sedas passamane e volantes.
…. Davaõ principio ao acompanhamento os Atabales, Trombetas e charamelas, seguiãoce varias danças de homens e de mulheres, e duas pellas cubertas de ouro … na entrada na rua de St. ª Sofia era tal a confuzaõ das musicas danças e tom dos repiques dos sinos de toda a Cidade q naõ havia quem de alegria naõ derramasse lagrimas … naõ cabia a gente nas ruas a cada passo se parava, tomouce a rua de Coruche na entrada da qual estava o segundo arco feito pellos ourives de fabrica de madeira pintado; deste se entrou na rua da Calçada no meyo da qual estava o terceiro arco dos mercadores de grosso tracto, obra sumptuoza de madeiras com pedrarias fingidas de Italia sobre colunas retorcidas, no alto delle estava ao norte o retrato Dell Rey D. Joaõ o 4.º … da parte do sul estava o retrato de El Rey D. Pedro Nosso Senhor com outras duas figuras do Mondego e Tejo … sahioce a Portagem onde estava o 4.º Arco feito pellos roupavilheiros de armaçoens vistozas e ricas pinturas, subioce a Couraça e no arco de St.º António estava o quinto arco dos livreiros e serieiros feito, com boa traça e vistosa armaçaõ, deste se tomou a rua de são christovaõ no meyo da qual para cubrir hum paçadiço q nella ha fizeraõ o sexto e ultimo arco os Armadores; em que mostravaõ o primor da sua arte … daqui se subio ao Palacio Pontifical, aonde ao apear assistio a Camera; e foi acompanhando a Sr.ª Rainha athe a antecâmera em q entrou pelas 4 oras da tarde.
Na noute deste dia e nas duas seguintes se puzeraõ luminarias em toda a cidade … Aos seroens desta noutes cortejevaõ o palácio na praça delle a mayor parte dos Académicos.
…. Ao segundo dia fizeraõ os estudantes da Provincia do Alentejo huã fortaleza de fogo no terreiro da feira [hoje Largo da Feira dos Estudantes] … Ao terceiro dia se correram por ordem da Camera na praça da Cidade Touros de cavallo … e matou seis touros.
Silva, A.C. Dona Catarina Rainha de Inglaterra e a sua passagem por Coimbra no regresso a Portugal. Separa de Munda. 1986.
Por se tratar de um retrato muito interessante e realista da vida coimbrã do século XVI concluímos esta série de entradas onde reproduzimos parcialmente o trabalho de Carneiro da Silva intitulado As Estalagens Coimbrãs e do seu termo, com a transcrição do «Regimento dos vendeiros e estalajadeiros», aprovada pela Câmara de Coimbra em 16 de abril de 1568 e transcrita pelo autor na publicação referida.
… se praticou o regimento do agasalho dos caminhantes e nobreza … e porque era importante haver nela até quatro estalagens, e uma no burgo de Santa Clara, que fossem abastados de todos os mantimentos necessários e camas para gente nobre e de outra sorte, e boas pousadas bem providas de pão, vinho e carnes e pescados, e palha e cevadas e boas estrebarias … a que os estalajadeiros se obrigariam em Câmara e pelo regimento que ora lhe era dado».
Passara um ano entre a elaboração do regimento e a sua aprovação, decerto em acertos quanto aos preços e qualidade dos alimentos a fornecer aos viandantes. Acordou-se então numa tabela de preços que pelas suas muitas curiosidades de transcreverá. Assim:
«Item: o pão o farão e o darão aos caminheiros de dois, quatro e oito reais, conforme o peso da ordenação;
Item: uma posta de carne de vaca de qualidade, que cosida pese um quarto de arrátel, cinquenta reis;
Item: uma posta de carne de porco que cosida pese um quarto de arrátel a darão por cinquenta reis;
Item: uma posta de carneiro de um quarto de arrátel que cosida pese o mesmo, cinquenta reis;
Item: uma posta de pescada fresca de quarto de arrátel darão cosida por cinquenta reis a posta;
Item: o quartilho de vinho darão pelos preços da almotaçaria, conforme os presentes acordos, e por mais fino que seja não passará de tal preço nem o poderão alevantar do preço que a Câmara ordenar, e daí para baixo o poderão os almotacés prover o vinho somenos sem alterar o preço que sair na Câmara;
Item: terão medida aferida de real de azeite;
Item: levarão por uma camara fechada com sua cama e enxergão, colcha e dois lençóis de linho lavados, com seu cobertor de papa ou de pano e travesseiro enfronhado, tudo limpo, por noite e dia trinta reis;
Item: uma cama da dita maneira, por noite, vinte reis; uma cama somenos com seu enxergão, colchão com seus lençóis lavados, sem cobertor ou manta, por noite e dia quinze reis;
Item: de manta e seus lençóis, cinco reis;
Item: de uma esteira, um real por cada pessoa;
Item: por joeira de palha darão cinco reis, a qual palha será marcada com a marca da cidade;
Item: venderão o alqueire de cevada conforme aos preços da lei;
Item: levarão de estada de cada besta um real, e terá boas manjedouras, sem serem rotas, e terão nelas encaixadas umas manjedouras de alguidares de barro;
Item: não consentirão nas estrebarias porcos nem galinhas, nem terão mulheres de partido em suas estalagens ou pousadas, nem consentirão jogos de cartas nem dados.
Nota:
Arrátel era uma unidade de peso que, ao tempo do Regimento, equivalia a 0,459 kg. Constata-se, pois, que um quarto de arrátel representava pouco mais de 114 gramas, o que aponta, na época, para um custo bastante elevado da alimentação.
Silva, A.C. As Estalagens Coimbrãs e do seu termo. Separata da Munda. 1988.
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