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Joaquim Martins Teixeira de Carvalho
Contavam os velhos que a voz dos sinos tinha força de convencer os homens.
Da campainha de S. Francisco Xavier se conta na India que levava atrás dele os mais infiéis.
Goa. Igreja do convento de S. Francisco Xavier
Não havia cão de herege, que, ao ouvir a campainha, não ficasse inquieto, agitado, movendo-se sem saber porquê, e não acabasse por dobrar a cabeça e pôr-se a andar atrás dela até a igreja.
Os sinos passavam por falar a verdade; nas igrejas estavam em altas torres para serem vistos de longe e atirarem para vales distantes a sua voz a anunciar a hora da oração, ou da vida ou da morte.
Há quem diga até que os sinos eram indiscretos e que, muitas vezes, em lugar de palavras de oração, contavam sem querer o que ia nos conventos, e por eles se vinha a saber o que por lá se passava.
Em Coimbra, contavam-me antigamente que os sinos até conversavam, e se respondiam uns aos outros.
Convento do Buçaco antes da construção do Hotel
No Bussaco, a cada hora de oração tocavam os sinos das ermidas todas dispersas pela mata e, contam crónicas, que o diabo tentara por vezes impedir que alguns frades juntassem a voz do pequeno sino das suas ermidas desertas à dos outros que em cada hora chamavam num coro baixo, com medo do vento e da chuva, à oração.
Buçaco. Capela do Sepulcro
Em Coimbra os sinos eram de menos devoção, e deviam fazer rir muito o próprio diabo.
Quando eu cheguei a Coimbra, explicou-me um dia um velho a voz dos sinos desta terra.
Era ao pôr-do-sol. Vínhamos descendo do Penedo da Saudade para o jardim.
Mosteiro de Santa Teresa. Porta da igreja
Pela porta da igreja de Santa Teresa sumiam-se caladas mulheres de idade, com o ar remediado, que dá a limpeza devota.
Alguns estudantes passeavam no adro.
De dentro vinha o canto rezado das freiras, áspero e delgado.
O sino pôs-se a dobrar, cortando as sílabas.
- Pe … ni … tência…, pe …ni… tência! …
Assim o ouvi, mal mo disse o velho com quem ia, e que andando e sorrindo repetia imitando a voz do sino pe … ni … tência…, pe …ni… tência! …
Quando chegamos ao fundo da ladeira, fez-me o meu companheiro notar a voz doutro sino, que vinha de longe, do convento de Santa Clara, que brilhava alegre na atmosfera dourada do poente.
Vista de Santa Clara. c. 1860. (Passado ao espelho, p. 50)
Pus-me a ouvir o sino, e ele a ensinar-mo a entender.
O som era mais grave, mas duma gravidade de ironia e dizia muito claramente.
- Tan … ta não! Tan.. ta não!
Eu ria-me. Quando ele me chamou a atenção para o sino de Sant’Ana, que se ouvia então e me disse:
- Veja o que diz esse agora!
- Eu sei lá!
- E bem simples: nem tanta, nem tão pouca!
Colégios de Tomar e de Sant’Ana. No primeiro plano a residência do prior-mor de Santa Cruz e, por cima, os Arcos do Jardim. Junto destes o pequeno Bairro de S. Sebastião. (Fototeca BMC. Cota: BMC_A033)
E era verdade. O sino de Sant’Ana, dizia num som delgado, com voz de nariz:
- Nem … tan … ta … nem … tão … pouca! Nem … tan … ta … nem … tão … pouca!
Assim fiquei eu sabendo que quando, às horas de oração o sino de Santa Tereza dizia:
- Penitência, penitência!...
O de Santa Clara lhe respondia:
- Tanta não! Tanta não.
E o de Sant’Ana fechava conceituosamente o coro, repetindo:
- Nem tanta! Nem tão pouca.
E assim fazia eu ideia, do que devia ser a vida destes conventos.
…
Pátio da Universidade e torre. 1869. (Passado ao espelho, p. 55)
Dos da Universidade, tão austeros canta João de Deus:
Toca o capelo, vou vê-lo
E vejo de vária cor
Não doutores de capelo
Mas capelos de doutor.
Esses também a mim me enganaram.
T.C.
Carvalho, J.M.T. Bric-à-Brac. In. Resistência, de 1903.01.29
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