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Iniciamos hoje uma série de 14 entradas - que iremos intercalar com outras sobre diferentes assunstos - através das quais iremos recordar um artigo de Mário Monteiro, ilustrado na sua maioria com fotografias de José Gonçalves; foi publicado no início do século passado, na transição do século XIX para o XX, nesse magnifico fresco da realidade nacional que é a Illustração Portugueza.
Coimbra – uma cidade fechada sobre si mesma ainda que aberta ao contributo de estudantes vindos das mais variadas origens – sempre foi o palco de uma legião de variados tipos humanos. À boa maneira provinciana a tudo e a todos se dava um nome, ou uma alcunha.
Na minha adolescência o Mondego era o basófias, um troleicarro o pantufas, o vendedor de petróleo o petrolino, os carros da PSP os creme nívea, o “Diário de Coimbra” o calino, os habitantes de Alta os salatinas, o autocarro da AAC, sei lá porquê, a Laurinda. Estas entre tantas outras.
Quanto a alcunhas lembro-me de uma mulher da Alta que por ter sido dado como morta, passou uma noite na morgue e daí o ser conhecida pela Maria do Cu Fresco; o proprietário de uma casa de penhores onde o valor da peça não dependia só desta, mas da pancada que se dava e recebia do dono, dava pelo nome de Picalo; o dono de uma tasca situada no Largo da Matemática era o Zé Bruto; um determinado sapateiro dava pelo nome de Carne Assada; o Bentes, jogador da Briosa, era o rato Atómico; o franzino massagista da Académica era conhecido por Mão de Pilinha, em contraposição com o massagista do Benfica, de tamanho grande, conhecido por Mão de Pilão; o excelente fotógrafo da cidade e, sobretudo, da Académica, era o Formidável.
Listagem que por certo pode ser enriquecida com o contributo de todos os leitores.
O artigo que iremos transcrever tem o título Typos de Coimbra e está escrito na forma redonda e hiperbólica da época. Optou-se por atualizar a ortografia, a fim de facilitar a sua leitura e começa assim.
Analisar a miséria das ruas, observar com olhos de ver todo esse constante e crapuloso bric-à-brac onde se atrofiam e se perdem caracteres, mas onde, as mais das vezes, se vão buscar modelos, belas cabeças de estudo vincadas profundamente, dolorosamente, pelos traços indicadores de uma vida agitada e miserável – é, em qualquer parte, um estudo arrojado, quase impossível, cheio de mil obstáculos, e sobretudo, fastidioso, mas, em Coimbra, chega a ser deveras original e interessante.
É que esta deliciosa terra, com a sua Universidade, lá no alto, a coroar-lhe os edifícios, a dar-lhe uns certos ares de sábia ... não sei por que estranho dom, podendo ser encarada sob muitos e variados aspetos, tantos quantos se queiram, – manancial eterno de prosadores e poetas – apresenta-nos uma vida das ruas característica, típica, absolutamente sua.
Tudo isto porque os garotos de Coimbra – e não há nada pior do que eles! – são exímios glorificadores dos grotescos que aparecem dia a dia e, sabendo procurar-lhes todos os pontos vulneráveis, são terríveis no ataque em que, por entre o desespero dos vencidos e o desenfrear das chufas e dichotes dos vencedores, não é raro aparecer uma alcunha que se pega, que se agarra por tal forma que nunca mais sai, criando, ipso facto, um novo tipo apontado e escarnecido em toda a parte.
Alcunha que se ponha em Coimbra é muito pior que cola-tudo, é como alma que caiu no inferno. E pega que nem santo António lhe vale!...
Ainda hoje certos comerciantes pela cidade, ventrudos e lustrosos, pintam para aí as mantas do diabo se lhes forem perguntar à porta dos seus estabelecimentos:
– Tem chá feito?
– Tem cordas para flauta?
– A boneca já fala?
Por isso convém aqui dizer que, ao enumerar alguns dos tipos mais curiosos de Coimbra, eu não pretendi ir procurá-los apenas á miséria das ruas, mas fui buscá-los também às suas casas de negócio, arrancá-los detrás do balcão para os trazer até aos umbrais da porta e mostrá-los à luz do dia, corno objetos raros e dignos de uma observação mais ou menos demorada e minuciosa.
E é assim que, sem mais delongas, dando o braço ao amigo Paixão, peço licença para o apresentar.
O Paixão – Imitado pelo dr. Bento Lima, na récita do 5.º ano de 1898
O Paixão – é um alfaiate que mora na rua de S. João, quase no centro da parte alta da cidade, essa espécie de quartier latin, que é o bairro académico por excelência. Pinta muito regularmente a pera, segundo se conta, e dá uma sorte levada da breca em se lhe dizendo:
– Ó Paixão dá cá o diamante ... – aludindo não sei a que episódio dos seus tempos… de outro tempo.
Vicioso fumador de charuto, que traz sempre ao canto da boca, nessas horas de mau humor há quem veja mordê-lo raivosamente, cuspir repetidas vezes, como é seu costume, num grande ar cómico irresistível, e desandar depois numa catilinária pavorosa capaz de assustar todos os anjos e santos da corte do céu!...
Constou-me até, nem eu sei quando, que os estudantes de certa geração o puseram fora da porta-férrea depois de encerradas as aulas, porque ato a que ele fosse assistir era chumbo certo...
No entanto o amigo Paixão, com todos aqueles seus ares de caricato, não passa de uma bela criatura, de um pobre diabo incapaz de fazer mal a uma mosca.
Mas caiu na asneira de dar sorte e fez muito mal, lá isso fez!
Monteiro, M. Typos de Coimbra, In Illustração Portugueza, 40, Série II, Lisboa, 1907.01.28.
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