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Mário Torres tem vindo a publicar na sua página do FB uma excelente recolha de imagens e de textos relacionados com o “Centenário da Sebenta”.
O “Centenário da Sebenta”, festa académica acontecida em Coimbra nos dias 28, 29 e 30 de abril de 1899, teve por objetivo fazer uma crítica – violenta – ao principal instrumento de ensino então utlizado, a sebenta litografada.
O programa dos festejos consubstanciava uma paródia aos muitos centenários cívicos, todos eles imbuídos de forte matriz política, que, nos últimos anos do século XIX, vinham acontecendo em Lisboa e no Porto.
Joaquim Martins Teixeira de Carvalho
O Professor Doutor Joaquim Martins Teixeira de Carvalho – conhecido na cidade por Quim Martins – na altura em que passavam dez anos sobre a referida festividade académica relembrou-a, relatando no “seu” jornal Resistencia, órgão do Partido Republicano de Coimbra, que dirigiu entre 1895 e 1907, um episódio certamente desconhecido de muitos e que então ocorrera.
Trata-se de uma verdadeira obra-prima do espírito académico de então, para a qual fui alertado por uma Amiga que conhece bem este período, quando com ela comentei a recolha que Mário Torres vem meritoriamente fazendo.
É essa verdadeira pérola coimbrã que aqui se divulga.
Monumento à Sebenta. Busto de Alois Senefelder, inventor da litografia
O monumento da Sebenta
João Machado – esculptor
Dr. Quim Martins – architecto
E’ historico.
Ha dez annos.
Eu descia para a Baixa ao anoitecer.
Da escuridão do arco de Almedina avançou para mim o Xandre, esbaforido, a face da pallidez das sombras heroicas dos Elyseos...
– Vou ter com o Gonçalves para elle me fazer o monumento da 'Sebenta ...
– Para quando?
– D'aqui a quatro dias…
– Estás doido! Não faz. Agora é que tu pensas nisso...
– Tenho tido mais que fazer. Eu...
– Já sei. E's um homem arrombado
– Você, Quim, é que podia…
– Eu?!
– E' uma coisa simples. Quero um monumento todo de cebo, e em cima, de cebo tambem, um busto de Senefelder, inventor da lithographia, e portanto pae da Sebenta. Você ri-se? Não foi elle quem inventou?...
– Foi.
– Bem. Julguei que era asneira ...
– A asneira está em tu quereres um monumento de cebo.
– A ideia não é boa?
– E', mas deve ser feito em gesso, a fingir cebo…
– Como quizer. Mas encarregue-se d'isso, doutor! Salve-me. E'· salvar-me a honra, é mais que salvar-me a vida…
– Bem, pois então vamos lá a salvar essa honra D'esta vez não é preciso attestado?...
– O' doutor, eu nunca abusei…
– Deuses immortaes! Quem tal suspeita?...
– Bem! Fico descançado. Não torno a pensar mais nisso. Gaste o que quizer. Paga-se tudo!...
No dia immediato, fui ter com o João Machado, levando já 'um mau retrato de Senefelder, e disse-lhe no que me metera.:
Ele poz-se a rir, e a contar os dias, e as horas de: trabalho pelos dedos.
Havia apenas tres dias, contando o da inauguração…
– Vamos a isso! disse elle, continuando a rir.
Chamou um aprendiz e mandou-lhe buscar carvão, papel, barro e gesso, comentando:
– Vem tudo de uma vez! Não ha tempo a perder. Ainda áhi estás? Corre. Avia-te!
Eu fui aos meus doentes. Voltei quatro horas' depois. João Machado tinha já o busto desenhado a carvão, numa linha de um desenho tão fino que eu perguntei-lhe:
– Foi o João Machado que fez isto?
– E' boa! Já o Sr. Pinto [Arquiteto Silva Pinto] se admirou tambem. Em pouco me têem os senhores…
– E' que está muito bom, O que aqui está desenhado não é facil.
– E isto?...
Voltei-me e dei com João Machado que, a rir, modelava o 'busto de Senefelder, já adiantado.
– Palavra que está muito bom!
– Diga agora que aqui não ha talento!
– Bom! Se o João 'Machado está alegre, o successo da obra é certo.
– Já viu? Tenho ali modelo vivo.
– Aonde?
– Ali! Na ratoeira…
– Um rato!...
– Pois! E' que ha de roer a sebenta e o cebo. Estudo ao natural, trabalho consciencioso ...
– Boa vae ella! Ha que tempo o não vejo tão satisfeito. Bom! Vou ver um doente e volto...
Fez-se o busto, e lá ficou como emblema decorativo o ratito preto, de
olhos tão vivos, que nunca mais tornei a ver…
João Machado, que me sabia afadigado, foi elle mesmo collocá-lo no
Largo do Museu, de noite.
Eu, nem quiz por lá passar ao saír do teatro e fui deitar-me a dormir algumas horas.
No dia irnmediato, levantei-me, fui ver, e desci a correr á officina do João Machado. Ainda lá não estava.
Entrava d'ahi a pouco, muito enroscado no casaco, porque a manhã estava fria.
– Fui ver a obra, disse eu.
– Passei lá quasi a noite toda.
– Obrigado. Mas é necessario irmos lá, senão perde-se o valor da sua obra.
– Não posso! E' dia de féria. Tenha paciencia. sr. doutor ...
- Não póde, não póde! Acabou-se...
– Está-se a zangar. Eu não queria, mas não posso. Emfim, vá lá. Vou! Ao meio dia...
– Qual meio dia, nem qual carapuça! Já! Já! E leve homens, e madeira, e aboboras e cebolas...
– Seja! Vamos lá para casa do Benjamim Ventura.
Fomos. Elle poz-se a rir, e foi-nos ao quintal buscar uma couve
magnífica para o monumento. Eu pedi mais tres e um cabo de cebolas.
E lá foi a caravana a rir.
Chegámos ao largo do museu.
O Seneffelder que estava a olhar para o museu, voltou-se para o Largo da Feira, a entrada do largo.
Confiscou-se um carro de pedra que passava para uma obra e despejou-se para fazer a rocaille do jardim que havia de rodear o monumento.
A' Feira mandei comprar um alguidar verde para fazer o lago decorativo.
Os empregados -do museu riam, emquanto eu e o João Machado, muito serios, dispunhamos, 'em 'festões decorativos, cabos de cebolas, botas velhas, hortaliças varias, abanos, e laranjas.
– Francisco, disse eu, chamando pelo meu velho servente de anatomia, faz-me um favor!
– Ora essa. Sr. Doutor!...
– Vae ao mercado e compra-me um cisne, para o lago.
– O' sr. Dr., mas no mercado não ha cisnes a vender...
– Compra-me um pato marreco…
– Lá isso ha...
- Então que é mais o pato que o cisne? O cisne é um pato, mais janota, de pescoço mais alto. Mais nada! Traga lá o cisne!
O Francisco foi-se a rir. e a encolher os hombros, comprar o pato.
– João Machado, vamos ás legendas. Ahi na frente escreva: Ao Mousinho da Sebenta a mucidade agardecida, Mocidade com u já se vê.
– Isso não sr. dr., eu não escrevo isso
– Pois escrevo eu. Dê cá o pincel. E vae hagardecida, com h, pois então!...
O monumento ficou obra acabada
Sobre a piramide, cujas arestas cortadas eram decoradas com os rolos lithographicos a escorrer de tinta, levantava-se branco. de cebo, a
desfazer-se, o bom Senefelder que começara a vida a gravar música e por isso estava logicamente predestinado para descobrir o modo de reproduzir a Sebenta.
Do fundo do pedestal, adeantando medrosamente o focinho. olhava ironicamente para Senefelder o rato: que o havia de comer.
Pelo pedestal corriam com intenção decorativa as cebollas, as botas, as coisas mais estranhas que João Machado pintava de oxidações artisticas, dando-lhes a côr dos bronzes monumentaes
Não se ouviam senão murmurios de admiração.
Eu e João Machado, muito sujos, muito pingados de tinta, tinhamos o ar descuidado dos immortaes.
Alguem fez notar que era uma pena que dessem cabo de tão bella obra.
– Quem?
– Ora sr. dr., alguem por inveja. Elle anda por ahi cada um...
– O melhor era ir buscar um policia.
– Um policia?...
– Se o sr. dr. pedisse na esquadra, lá davam-lhe um...
– Vá, sr. dr., vá buscar um policia...
Eu fui á esquadra da Feira.
D'ahi a pouco entrava eu no largo do museu com um policia.
Ao fundo apparecia então o Francisco com o pato...
Uns gostavam mais do pato, outros do policia.
Eu não escolhera. Trouxera o que me deram. '
Um duplo triumpho.
Em breve nadava o pato no alguidar vidrado, que na frente do monumento simulava o lago simbolico em que melancholicamente se devia mirar o rosto pensativo de Seuefelder.
Ao pescoço sustentava o chocalhinho, emblema da commissão das
festas.
– Um pato da cornmissão?! dizia a rir um dos enthusiastas que chegava.
– Que queres?! Na commissão não poude encontrar-se um cisne!...
E mentalmente pedi desculpa ao Lopes Vieira da mentira vil que dizia para fazer um dito de espírito.
Já não era a primeira.
E tinha eu então menos dez anos…
Inauguração do busto de Alois Senefelder, inventor da litografia. Centenário da Sebenta, sábado, 29 de Abril de 1899, às 13h00
– Parabéns, doutor! Voltei-me era uma senhora, minha doente, que me estendia a mão. – V. ex.ª gosta? ,
– Muito. Está um apetite…
E' de notar que a pobre senhora padecia do estomago.
Um apetite!.... Estaria curada'?
O' força dominadora da arte!...
T.C.
Resistencia, 1405, Coimbra, 1909.04.30.
Fontes das ilustrações: Carvalho, J.M.T. 1921. A livraria do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra : estudo dos seus catálogos, livros de música e coro, incunábulos... Coimbra, Imprensa de Universidade. Acedido em http://purl.pt/335/4/#/1; Sá, O. Álbum "Centenário da Sebenta - 1899, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (Cota: O.S. A.2).
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