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Em Coimbra, o Jardim Botânico era local aprazível. No Colégio das Ursulinas que lhe ficava contíguo, principalmente em Maio, à tarde, praticava-se a devoção do mês de Maria, o que, o tornava de passagem obrigatória. As damas, envergando os seus melhores trajos, piedosamente, dirigiam-se à igreja, a fim de tomar parte naquela devoção mariana e os cavalheiros, molemente encostados às grades, viam-nas passar, outorgando com a sua presença a organização de tômbolas e festejos. Além dos agradáveis momentos de ócio que estes proporcionavam, permitiam ainda auxiliar qualquer obra de caridade. Em 1899, o Dr. Júlio Henriques, ilustre director daquele Jardim, mandou vir bambus das nossas colónias, afim de construir, na alameda principal, mesmo em frente ao edifício de S. Bento, um coreto onde a música pudesse executar algumas peças do seu repertório. Colmatava desta forma a lacuna que em Coimbra existia, porque tanto o do Cais como o da Quinta de Santa Cruz se encontravam degradados. Esperava-se, contudo, que brevemente fossem reformulados, até porque as filarmónicas da cidade já haviam solicitado à câmara autorização para tocar aos domingos nos referidos coretos. A construção do Botânico alegrou os janotas do tempo e, segundo constava, iria ficar «muito elegante e de excelente gosto» .
Cá em baixo, mesmo junto ao rio, desde 1887 que se transformava lentamente o largo espaço do Cais das Ameias num belo Passeio Público, com canteiros ajardinados e maciços de verdura. Colocava-se o gradeamento do lado do rio e empedravam-se os passeios. Coimbra, no dealbar do século XX, totalmente desfasada até já da capital, aspirava ver concluídas estas obras que lhe permitiriam usufruir, pela disposição, aproveitamento, frescas sombras e formoso panorama, de um dos melhores Passeios Públicos da província . Dirigia os trabalhos o Eng. Jorge de Lucena .
Fazer construir um coreto decente era tarefa que urgia, até porque, realmente, aos domingos a banda exibia-se e, para tal, utilizava aquela ruína a que impropriamente se atribuía tal denominação .
Mas as obras do Cais prosseguiam lentamente, não só porque as dotações camarárias e estatais eram mínimas, como também porque por vezes as desviavam e, em 1902, aquando da efectivarão das festas da Rainha Santa, trabalhava-se ainda febrilmente a fim de as conclui , o que não se verificou .
E toda a imprensa citadina continuava a insistir na necessidade de erguer no novo Passeio Público um coreto que estivesse à altura dos pergaminhos do burgo. Não como aqueles que normalmente se levantavam por ocasião da romaria do Espírito Santo ou da passagem por Coimbra de qualquer personalidade ilustre , arquitectura efémera, logo desmontada e eventualmente destruída após ter servido o fim a que se destinava, mas algo de sólido, duradouro e artístico, procurando honrar o autor e prestigiar a edilidade promotora da construção.
A fim de satisfazer o povo de Coimbra e lhe proporcionar uma distracção de que já desfrutavam outras terras portuguesas com muito menos habitantes, a câmara presidida pelo Dr. Dias da Silva deliberou na sessão de 25 de Junho de 1903 aprovar o orçamento para a construção do envasamento do «encantado» coreto afim de, posteriormente, lhe ajustar um pavilhão de ferro que não podia ultrapassar os 358$563 réis
Anacleto, R. 1983. O coreto do parque Dr. Manuel Braga em Coimbra, In Mundo da Arte, 14, Coimbra, 1983, p. 17-30, il., sep. Pg. 5 a 7
Coimbra, nos finais do século passado (século XIX) e inícios deste, apenas saía da pacatez que a envolvia, quando festejava qualquer santo da sua devoção ou se realizavam as tradicionais feiras. Também os grandes acontecimentos nacionais, ou a visita de qualquer personalidade, a mais das vezes política, faziam alterar o quotidiano das gentes do burgo, intelectuais e artífices que, grosso modo, se movimentavam na cidade em quadrantes espaciais diferentes. Os primeiros, gravitavam em torno da velha alcáçova, enquanto os segundos se haviam instalado na zona baixa, já fora de portas, em ruas estreitas, que se desenvolviam circularmente em volta dos muros carcomidos pelos anos.
Dentro da mentalidade europeia que norteou a Revolução Industrial e que só tardiamente se fez sentir no nosso país e mormente em Coimbra, a indústria começou a assentar arraiais e a dar frutos ... Divertimentos e espectáculos infiltraram-se lentamente na vida das pessoas. A mentalidade romântica que se estendeu entre nós para além dos limites do razoável, encontrou eco tanto na burguesia endinheirada como na nobreza decadente. E se as iniciativas chegavam já a Lisboa com um certo atraso em relação ao resto do velho continente, essa diferença, em Coimbra, ainda mais se jazia sentir.
A capital, através da iniciativa particular, ergueu em 1792-93 o Teatro de S. Carlos ... Na cidade mondeguina só um século depois, aquando do loteamento da Quinta de Santa Cruz, se formou uma sociedade de homens ligados ao mundo dos negócios com a finalidade de construir um Teatro-Circo .
Entretanto os costumes haviam-se modificado: as diversões e os passeios entraram no quotidiano. Vir à rua tornou-se um hábito e já não eram só os homens que o faziam, porque as mulheres também deixaram de sair de casa apenas para se deslocar à igreja.
Na capital, deambulava-se pelo miradouro de S. Pedro de Alcântara e pelo jardim do Príncipe Real antes da feitura do Passeio Público , ideia do Marquês de Pombal, concretizada pelo lápis de Reinaldo Manuel, fechado por grandes muros, qual cerca conventual, a que dava acesso uma alta cancela verde ... Toda a melhor sociedade da capital ali marcava ponto de encontro: burguesia e nobreza. As festas aconteciam com uma certa regularidade e eram, no verão, o grande atractivo de Lisboa. Às velas de cebo, tigelas de azeite e balões venezianos sucedeu-se o deslumbramento da iluminação a gás. As atracções eram numerosas e variadas: a música tocava no coreto, lançava-se fogo de artifício e exibiam-se, entre outras, cançonetistas, funâmbulos e bailarinos.
Se entretanto em Lisboa a moda do Passeio Público decaiu e a sua demolição se processou a partir de 1883, outro tanto se não pode dizer ao que acontecia na província. Aqui, a moda chegou, muito mais tarde e, consequentemente, a mentalidade que a acompanhou também já era outra: servia mais gentes, os muros e as grades desapareceram, era aberto e muito mais modesto. A música tocava, quase sempre de tarde, no coreto, rodeado de bancos, que se erguia no meio de um recinto aprazível e ajardinado. Todos iam ouvir a banda e, segundo os seus interesses e a sua cultura as pessoas agrupavam-se. A ocasião, além de servir para descontrair o espírito, permitia a troca de impressões, o acertar de um negócio e, porque não, o nascer de qualquer idílio.
Anacleto, R. 1983. O coreto do parque Dr. Manuel Braga em Coimbra, In Mundo da Arte, 14, Coimbra, 1983, p. 17-30, il., sep. Pg. 1 a 4
Extintas em 1834 as ordens religiosas, os seus bens foram alienados pelo Estado e posteriormente vendidos a particulares. Esta também, na cidade mondeguina, a sorte da Quinta de Santa Cruz, propriedade dos crúzios, que mais tarde, a 18.01.1885, a Câmara Municipal adquiriu pela soma de 22 000$000 réis.
... No dia 27.11.1890 a Câmara Municipal de Coimbra levou à praça uma série de 21 lotes, situados na Avenida Sá da Bandeira, mas, a pedido de vários cidadãos que queriam construir naquele local um Teatro Circo, retirou os terrenos números 4, 5 e 6 ... um grupo de 20 proprietários com quem o Presidente da Vereação teve de se entender, a fim de chegar a acordo. Terminou por ser cedida uma área de 1602 m2 ao preço de 300 réis por unidade ... Mas não o fez sem imposições. A cedência dos terrenos obedeceu à feitura de uma escritura pública, datada de 14.02.1891, em que ficaram estipuladas, entre outras, as seguintes cláusulas:
“Condição 4.ª O terreno não pode ser aplicado a outro fim, voltando nesta hipótese para a posse do município."
... A construção do Teatro, que em 1892 ... passou a ostentar o nome de Teatro Circo Príncipe Real, iniciou-se logo de seguida, nos primeiros meses de 1891.
Em 1910, depois da implantação da República, passou denominar-se Teatro Avenida.
... o arquiteto austríaco Hans Dickel (foi) o responsável pelo projeto. Em Dezembro de 1891 trabalhavam na feitura do imóvel aproximadamente 100 operários. Dos estuques encarregara-se Francisco António Meira. As grades dos camarotes, as colunas que os sustentam e as cadeiras para a prateia foram fundidas na oficina de Manuel José da Costa Soares.
A capacidade da sala era de 1.700 lugares e o seu custo ultrapassou os 20 000$000 réis. Podiam lá realizar-se espetáculos equestres, de declamação e canto.
Parece que o «pano de boca» seria pintado por mestre António Augusto Gonçalves.
Depois de inaugurado o teatro, a 20.01.1892 com a atuação de uma «companhia equestre, gymnástica, acrobática, cómica e mimíca, do Real Coilyseo , de Lisboa, de que é director o sr. D. Henrique Diaz»
... Ao longo dos anos passaram pelo Avenida e lá atuaram muitas e famosas companhias, mas o velho teatro também teve papel de relevo na vida académica. No entanto, logo em 1894, se verificou uma tentativa de mudança de donos, que não sabemos se realmente veio a concretizar-se e em 1902 o Sr. António Jacob Júnior passou a ser o novo proprietário do imóvel, embora se falasse no surgimento de uma empresa que passaria a explorá-lo.
E o Teatro Avenida, melhor ou pior, mas com uma grande tradição na vida da cidade, ao longo de quase uma centúria, lá tem vindo a servir o fim para que foi construído.
Anacleto, R. O fim do Teatro Avenida?, In Domingo, n.º 458, Coimbra de 1983.07.24
Guardei para as vésperas deste Natal, dois textos que Borges Figueiredo publicou, nos finais do século XIX, no seu livro Coimbra Antiga e Moderna.
São belo poema de amor a Coimbra escrito por um Coimbrinha como o são – por nascimento ou adoção – aqueles que vão tendo a paciência de ler os escritos que vou respigando das minhas leituras.
É esta a minha prenda de Natal esse e todos esses e os demais Coimbrinhas.
Feliz Natal
Rodrigues Costa
Uma vez na «gare», no meio de grande multidão de pessoas apressadas, que se cruzavam em todas as direcções, acottovelando-se, empurrando-se, batendo com as malas nas pernas dos que encontravam, senti eu uma pequena mão, lenta, que me produziu, ao contacto com a minha, a mesma impressão que me produziria o corpo d’uma cobra, animal que me repugna tanto como repugnava a Virgílio.
Ao mesmo passo que a mão alheia buscava tirar da minha a pequena mala que segurava, uma voz branda e insinuante, evidentemente de pessoa de humilde condição, mas que tinha a graciosa entoação e a correção da pronuncia que só possue o filho de Coimbra, uma voz me dizia:
- «Senhor doutor!» quer que lhe leve a mala? «Senhor doutor!»
Apezar de eu não ter a honra de ser «senhor doutor» (nem mesmo senhor bacharel, embora isto não venha para o caso). Fiquei logo tão convencido de que o rapaz falava commigo, como se elle me houvesse chamado pelo meu nome. E a razão d’isto é extremamente simples: todos em chegando a Coimbra são doutores, ou porque julgam sel-o ou porque lh’o chamam. O moço de fretes, o gaiato, a aguadeira, a servente d’estudantes, seja qual fôr a pessoa «limpa» a quem dirijam a palavra, distinguem-na com o título de «senhor doutor».
Conta-se, valha a verdade, que uma das vezes em que foi a Coimbra o rei D. Pedro V, indo vêr o jardim, succedeu que uma boa velha conseguiu estender a mão, por entre os cortezãos que acompanhavam o soberano, e pedira uma «esmolinha pelo amor de Seus». Os cortezãos, que passam todo o dia a pedir, senão com a bocca ao menos com os olhos, «esmolas» a seu amo, acharam um procedimento inaudito que a pobre mendiga lhe pedisse uma «esmolinha», e fizeram movimento de afastal-a. D. Pedro V, porém, deteve-os com um gesto e, tirando uns «ouros» (os reis não dão «cobres»; ou dão ouro ou não dão nada), depôl-os elle mesmo na mão tremula da velha, que lhe disse, com as lagrimas nos olhos e na voz:
- Muito obrigada, «senhor doutor».
Figueiredo, A. C. B. 1996. Coimbra Antiga e Moderna. Edição Fac-similada. Coimbra, Livraria Almedina, pg. 2-3
Caros Amigos
Guardei para as vésperas deste Natal dois textos que Borges Figueiredo publicou, nos finais do século XIX, no seu livro Coimbra Antiga e Moderna.
São um belo poema de amor a Coimbra escrito por um Coimbrinha como o são – por nascimento ou adoção – aqueles que vão tendo a paciência de ler os escritos que vou respigando das minhas leituras.
É esta a minha prenda de Natal esse e todos esses e os demais Coimbrinhas.
Feliz Natal
Rodrigues Costa
Coimbra – a lusa Athenas dos literatos, a rainha do Mondego dos poetas, antiga côrte portugueza dos historiadores, a cidade universitaria de Portugal, como adesignam os estrangeiros, - Coimbra é a cidade mais bella da patria de Camões, é aquella a que está ligado maior numero de nossas memorias gloriosas.
Se todo aquelle que durante algum tempo alli demorou, mórmente na mocidade, conserva d’ella uma indelevel recordação, quem a teve por patria quer-lhe muito, embora por apprehensão ou systema deixe de manafestal-o.
Eu não nego, nem alardeio, a minha affeição por Coimbra, mas declaro que, após muitos anos de auzencia, tive desejos de rever a terra natal. E, para que esses desejos se não convertessem naturalmente em nostalgia, parti para a cidade do Mondego, deliberado a passar lá alguns dias.
Embora sempre em mim produza somnolencia o «zum-tum» do comboio, não cerrei os olhos em toda a viagem; e, talvez por isso, pareceu-me o caminho tão longo... tão longo como a um deputado parece o caminho que leva a ministro.
Finalmente soou o aviso que indicava estarmos proximos de Coimbra; e, alongando eu a vista por entre os salgueiros do rio, onde algumas lavadeiras se entregavam a seu labor nas ilhotas de areia dourada, reconheci essa pinha de casas, a cuja alvura de cal davam os raios do sol poente uma côr graciosa, e em cujas vidraças elles se reflectiam, fazendo-as parecer enormes carvões ardentes.
Confesso francamente, embora isso faça sorrir maliciosamente o leitor, que uma certa melancolia se apoderou de mim n’aquelle momento. É que me assaltaram então mais vivas as doces lembranças as dolorosas recordações, succedendo-se e combatendo-se à porfia, deliciando-me ou maguando-me o coração...
Mas já o rio tinha sido transposto; atravessáramos uma floresta de elevados salgueiros e copados eucalytos; parára a locomotiva em frente da estação.
Eu que antigamente, quando visitava Coimbra, encontrava logo um rosto amigo cujos olhos me procuravam ansiosos, ou ao menos um semblante conhecido, não vi pessoa alguma que me trouxesse á lembrança o tempo antigo.
Figueiredo, A. C. B. 1996. Coimbra Antiga e Moderna. Edição Fac-similada. Coimbra, Livraria Almedina, pg. 1-2
A Casa da Câmara não foi sempre no mesmo sítio, e à Casa do Concelho medieval não se lhe conhece local exato, avançando alguns autores várias hipóteses, junto da alcáçova, ou da Sé Velha.
Desde o século XIV está seguramente documentado que a Vereação reunia na Torre de Almedina, também designada por Torre da Relação. Aí se manterá até ao século XIX.
Todavia, teve outros locais esporádicos, nomeadamente durante as épocas de peste, quando a cidade ficava impedida. Os vereadores reuniam fora de portas, no Convento de São Francisco da Ponte, em Condeixa, ou nas casas e quintas dos membros da vereação.
A Casa da Cidade, na Praça de São Bartolomeu, durante o final do século XVII e XVIII, foi um espaço muito apreciado, pois permitia também assistir, das suas varandas, às festas e touradas, que se desenrolavam na Praça Velha, (atual Praça do Comércio). As Invasões Francesas incendeiam e destroem este espaço em 1810. E a Vereação retorna à velha Torre.
A extinção do Tribunal da Inquisição, no espaço da cidade que ainda hoje mantém a designação de Pátio da Inquisição, fornecer-lhe-á um novo local para reuniões. Mas não é o adequado.
Em 1834, surge uma nova oportunidade: com a extinção das ordens religiosas, a Câmara solicita parte do Mosteiro de Santa Cruz, que lhe será concedido. Durante vários anos decorreram obras de adaptação do espaço conventual a Paço do Concelho, endividando-se o município por causa dessa obra.
O edifício será finalmente inaugurado em 13 de Agosto de 1879. Além deste espaço físico, sede do poder e cartório do município, existe toda a vasta região envolvente, o chamado “arrabalde” que mais tarde é designado por “termo da cidade de Coimbra”, composto por muitos concelhos e povoações que estavam submetidos à jurisdição da cidade.
Em tempos mais recuados, a cidade assegurava a todas essas populações a defesa e proteção das suas muralhas, recebendo em troca a prestação de serviços e tributos diversos. Este espaço envolvente foi-se modificando e reduzindo ao longo do tempo, fruto de variadas reformas administrativas e fiscais, estando hoje limitado às 31 freguesias do atual concelho de Coimbra.
França, P. 2011. O Poder, o Local e a Memória, 1111-2011. Catálogo da Exposição. Coimbra, Arquivo Histórico Municipal de Coimbra/ Câmara Municipal de Coimbra . Pg. 7-8
1131, 28 de Junho – Colocação da primeira pedra do Mosteiro de Santa Cruz “o nascimento visível da comunidade sediada na zona dos Banhos Régios, a pouca distância da muralha norte de Coimbra”.
1150 (cerca de) – Ano provável da conclusão do templo, bem como da parte conventual
... subsistem alguns vestígios arquitetónicos da notável igreja românica, que se pode conhecer e reconstruir através de restos construtivos e decorativos de valor excecional, porque realçam um saber qualificado, verdadeiramente responsável pela solidez das estruturas ainda visíveis, levantadas sob orientação técnica do mestre Roberto, coadjuvado de canteiros peninsulares ... a nave, de grandes proporções e com abóbada de berço, seguia da capela-mor até próximo do coro superior, a que correspondem os dois tramos dos atuais abobadamentos. Nos flancos, possuía três capelas laterias, em pleno coincidentes com as presentes e que mutuamente se ligavam por grandes arcos, perspetivando naves colaterais, cujos eixos eram perpendiculares ao da principal. Um átrio, repartido de três estreitas naves perpendiculares e cortadas de três outras transversais, abria na direção da nave central.
1500 (ao longo do século) - ... nos inícios de Quinhentos, começaram as obras do conjunto monumental, repartidas em três fases: a de dom Pedro Gavião que, sob a direção de Boytac, mandou desmanchar o nártex, as abóbadas, fez os atuais abobadamentos e janelas elevadas, a casa capitular, a capela das Donas, a sacristia manuelina; a do Venturoso (D. Manuel I) que, na supervisão de Marcos Pires, estabeleceu terminar os coroamentos da memorável igreja, bem como reconstruir o claustro do silêncio; por fim a de Dom João III, na qual Diogo de Castilho, com Nicolau Chanterene, levantaram o novo portal de pedra branca, na fachada românica
... Repentinamente, tudo desaparecia das interessantes estruturas medievais. Em presença daquelas intensas devastações, o pequeno mosteiro das Donas extinguia-se, ficando livres esses espaços, antes ocupados; o prolongamento das novas alas possibilitaram o claustro da Manga; também um grande refeitório, com anexos e cozinha, ficava circundado dos imprescindíveis apoios e serviços; enfermaria, dormitórios dos cónegos, dos noviços, repartições civis e portaria – com um outro claustro restrito.
Dias, P. e Coutinho, J.E.R. 2003. Memórias de Santa Cruz. Coimbra, Câmara Municipal. Pg. 22, 54, 59 e 61 a 62
Mas como eram escolhidos os governantes da cidade?
Pelo Foral de 1111 ficamos a saber, dever ser a escolha régia determinada pela naturalidade.
As Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas) registam e regulamentam todo este procedimento.
Curiosamente não sofre grandes alterações durante centenas de anos.
Na coleção de Cartas Originais dos Infantes do AHMC, conjunto de missivas em papel do século XV, enviadas à Câmara de Coimbra, entre 1418-1485, deparamo-nos com um singular documento do Duque Dom Pedro. É dirigido “aos juízes e vereadores e homens bons da nobre e leal cidade de Coimbra” mostra que nem sempre o processo era isento, sendo necessária a intervenção superior. Os cargos não deviam ser sempre exercidos pelas mesmas pessoas, alertando o Duque para a necessidade de renovação, e para que se cumprisse o regimento, na feitura dos pelouros.
Julgamos que a eleição sumária, realizada no verso da própria missiva do duque, nos demonstra a tentativa de resolver de imediato um desses conflitos. Os representantes da comunidade local eram escolhidos pelos seus pares, num processo eleitoral algo diferente do que hoje estamos habituados. Os nomes dos elegíveis eram previamente selecionados e registados num pedaço de papel, que era depois encerrado numa bola de cera: o pelouro. Na altura da “eleição” uma criança, ou uma outra pessoa designada pela assembleia, extraía do saco, da arca, ou do cofre, os pelouros à sorte.
Na cidade de Coimbra, o cofre dos pelouros era um objeto rico, com chaves de prata, oferecido por um dos vereadores.
Os nomes assim obtidos eram os eleitos para esse mandato. Era então enviada essa lista para sanção superior ao rei, ou no caso específico de Coimbra, ao duque Dom Pedro, a quem fora confiada essa incumbência para a cidade. Depois de aprovada a pauta, eram notificados os eleitos para virem exercer o cargo, indo-lhes levar a vara da vereação a casa, o porteiro da Câmara.
A grande alteração no processo eleitoral surge apenas com o Liberalismo. As Vereações eram, até aí, constituídas por três Vereadores, escolhidos entre os cidadãos e pelo Procurador do Concelho, também ele cidadão.
Passam a integrar também dois elementos dos mesteres, os Procuradores da Casa dos 24, eleitos entre os profissionais embandeirados dos ofícios mecânicos existentes na localidade, privilégio concedido por D. João I em retribuição do apoio prestado à sua causa. D. João IV conceder-lhes-á também o privilégio de uso de vara, insígnia reservada aos Vereadores e Juízes.
A partir de 1537, ano em que a Universidade é instalada definitivamente em Coimbra, por ordem régia, passa a integrar a Vereação municipal da cidade mais um vereador, o Vereador do Corpo da Universidade, escolhido diretamente pela sua Corporação.
Presidia às sessões da Vereação, o Juiz de Fora, magistrado de nomeação régia e, como o próprio nome indica, externo à localidade, ou o Corregedor da Comarca. Ao Juiz competia o poder moderador e fiscalizador. O seu voto é um voto de qualidade, apenas utilizado para desempate, competindo a gestão corrente exclusivamente aos Vereadores.
Os eleitos ficavam com o cargo de gerir a vida da localidade e da sua população, provendo o seu bem-estar e sustento, aplicando e fazendo cumprir, os regimentos e posturas, que elaboravam, e votavam em assembleia, seguindo os princípios da Lei geral do Reino consignados nas Ordenações. Realizavam reuniões periódicas deixando-nos disso imensos registos na série das Actas de Vereação, conjunto extenso cujo primeiro exemplar data de 1491.
... Como se disse, a nova orgânica Municipal será instituída em 1834, com as amplas reformas administrativas. A Vereação passa a ser constituída apenas pelos Vereadores, assumindo um deles o cargo de Presidente da Câmara.
O primeiro Presidente da Câmara Municipal de Coimbra é Agostinho José da Silva. Cessa a representação dos Procuradores da Casa dos 24, entretanto extinta, e o privilégio da representação do Vereador do Corpo da Universidade.
França, P. 2011. O Poder, o Local e a Memória, 1111-2011. Catálogo da Exposição. Coimbra, Arquivo Histórico Municipal de Coimbra/ Câmara Municipal de Coimbra. Pg. 4 a 7
No âmbito dos 900 anos de Coimbra comemorando-se a data de atribuição do Foral à cidade, pelo Conde Dom Henrique, o AHMC organiza uma exposição intitulada “O Poder, o Local, e a Memória, 1111-2011.
...Entre muitos registos duma dilatada cronologia, selecionámos alguns documentos, que nos pareceram mais apelativos e significativos, embora, face à quantidade e diversidade, nem sempre a escolha tenha sido fácil.
... Ao escolher imagens, que aludindo ao tema do poder, do local e da memória, pudessem servir de símbolo introdutório para a exposição, surgiram-nos duas possibilidades: a serpente, símbolo antigo da Sabedoria, presente no antigo selo da cidade de Coimbra e no seu atual logótipo, e o armorial régio de Dom Manuel, no Foral de 1516. A serpente coroada, que encontrámos, não é, todavia, um desenho moderno estilizado. Reproduzimo-la diretamente da marca de água das folhas de papel de um Livro de Vereações, do século XVI ... O pormenor da iluminura manuelina, dado o seu rico colorido, serviu-nos de cartaz e emblema, atraindo o visitante para a exposição documental. Entre os documentos, procurámos aqueles em que aparecessem os agentes do poder central: o rei e os seus oficiais, os “juízes”, “alcaides” “alvazis”, e os elementos do poder local, os representantes das populações: “os procuradores, vereadores e os homens bons do concelho”. Ambos os poderes tentavam gerir a guerra e a paz, com os reinos vizinhos, dirimir conflitos, administrar a justiça e prover o bem-estar das populações.
Iniciámos com o texto do Foral de 1111, na cópia do Livro Preto da Sé de Coimbra. Independentemente do contexto político em que foi atribuído, surpreendeu-nos um pormenor do registo no cartulário onde, à época, se compilavam todos os documentos importantes, e que atualmente está guardado no Arquivo Nacional. Aparecia um sinal, muito comum nos documentos medievais, uma mão com o dedo indicador sinalizando determinado parágrafo. O texto latino assim marcado refere uma cláusula muito importante para os habitantes e residentes na cidade: a escolha dos representantes da autoridade régia devia recair entre os naturais de Coimbra.
O documento seguinte, mais tardio, mas mesmo assim, dos mais antigos do nosso acervo municipal, apresenta, em 1374, os representantes do concelho a defender os privilégios concedidos aos moradores da cerca de Almedina, para que esta zona fosse continuamente povoada. Trata-se de um instrumento de agravo, decidido em Coimbra, na alcáçova do rei e perante os oficiais régios. O procurador do concelho, Estêvão d' Aveiro, e os outros homens bons não vacilaram na defesa dos direitos atribuídos à população, que representavam, perante o Juiz Afonso Martins Alvernaz.
Em 1385, nas célebres Cortes de Coimbra, entre os nobres e prelados, que defenderão a legitimidade de Dom João, Mestre de Avis, como herdeiro do trono, encontramos, mais uma vez, os representantes do concelho e os tabeliães régios. Entre eles, destaca-se João de Coimbra, que assina o auto fazendo o seu sinal de tabelião, não deixando, todavia, de invocar a proteção divina, face à conjuntura conturbada que se vivia.
O documento possui o selo do concelho de Coimbra, entre os confirmantes, revelando a postura da cidade nesta causa nacional.
França, P. 2011. O Poder, o Local e a Memória, 1111-2011. Catálogo da Exposição. Coimbra, Arquivo Histórico Municipal de Coimbra/ Câmara Municipal de Coimbra. Pg. 3 e 4
Durante a Idade Média certas espécies, como a baleia, visitavam as costas portuguesas e foram objeto duma pesca ativa; e nalguns rios, como o Minho, o Douro, o Mondego e o Zêzere, muitos documentos dos primeiros séculos da monarquia atestam que os sáveis, pela sua grande abundância, constituíam parte comum na alimentação desse tempo.
... O que pode afirmar-se, quer na base de documentos coevos, quer como consequência lógica desse tráfico marítimo, é que, ao longo das costas ocidentais ... o Mondego até Soure ... termo de rotas marítimas que levavam a Santiago de Compostela, eram, antes da fundação da monarquia, sulcados por baixéis de mercadores árabes e normandos.
... Mas acontece que as referências mais antigas, que logramos encontrar, sobre o comércio marítimo em portos portugueses, no começo da monarquia, dizem respeito ao estuário do Mondego e a relações com os sarracenos ... já antes de 1122 navios de comércio entravam a foz do Mondego e a foz do Mira.
... querela, havida nos últimos anos do reinado de D. Afonso Henriques, entre os oficiais da Infante D. Teresa, filha do monarca e senhora de Montemor-o-Velho e o Mosteiro de Santa Cruz, que entre si disputavam os direitos de entrada dos navios pela foz do Mondego. Desse documento se conclui que os direitos foram cobrados a princípio e desde os tempos da rainha D. Teresa ou quiçá do conde D. Henrique, em Santa Eulália, que ainda no século XVII comunicava com o mar, depois em Montemor e mais tarde em Buarcos.
... A confirmar estes factos, as posturas municipais de Coimbra, de 1145, taxam, entre outros produtos, o preço da pimenta, o que significa relações comerciais bastante continuadas com os sarracenos, pois só estes a esta data estavam em condições de fornecer regularmente esse produto. Do foral da mesma cidade de 1179, se depreende igualmente que a pimenta continuava nesse tempo, a ser produto usual no mercado.
... Outro facto confirma ainda, a nosso ver, a navegabilidade do estuário do Mondego e a sua importância primacial como artéria do comércio árabe ou os portos árabes, durante o século XII: o mapa hispano-árabe (1109) ... insere no ocidente da Península, a seguinte nomenclatura – Lisboa, Galicia e Saurius (Soure); e a carta de Edrisim de c. 1154, menciona somente o cabo de São Vicente, Monte-maior (Montemor-o-Velho) e o rio Minho.
...Portugal nasce como Estado e afiança a sua independência desde que, aproveitando uma cultura herdada e as facilidades que lhe oferecia o mar, criou um novo género de vida: o comércio marítimo á distância com base na agricultura.
... É certo que desde 1139, já existem indícios de povoação na foz do Mondego, e já em 1143 alguns documentos se referem a Buarcos. Além disso, como vimos, os primeiros portos de comércio que desde os alvores da monarquia têm relações continuadas com o estrangeiro, são os do estuário do Mondego. Mas é na segunda metade do século XII, terminadas as incursões dos piratas normandos, e muito reduzidas as dos muçulmanos, que assistimos ao «súbito desenvolvimento do litoral português».
Cortesão, J. 2016. Os Descobrimentos Portugueses. Volume II. Lisboa, Expresso. Pg. 183, 197 a 199, 201 a 202
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