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Diz-se que, nos últimos tempos, de todas as povoações importantes do reino apenas restava ao rei a capital. Uma tradição, cujos fundamentos são, aliás, incertíssimos, vai acorde com este sucesso, que também carece de certeza absoluta. Refere-se que, partindo Sancho II para Castela, deixara por alcaide de Coimbra um certo Martim de Freitas. Pôs o conde de Bolonha estreito assédio ao castelo. Nem as promessas, nem os combates puderam reduzir os cercados, que no meio das maiores privações resistiram por largo tempo, até que chegou a nova da morte de Sancho em Toledo. Então o leal alcaide, pedindo seguro a Afonso de Bolonha, passou pelo campo dos sitiadores e, dirigindo-se à antiga capital de Espanha, fez abrir o túmulo do rei para com os seus próprios olhos saber se, na verdade, morrera. Certificado do triste sucesso, meteu no braço do cadáver real as chaves do castelo, cuja guarda lhe fora confiada. Depois, tirando-lhas de novo, voltou a Portugal e entregou-as a Afonso, abrindo as portas aos seus soldados; e como o príncipe, admirado de tanta fidelidade, quisesse conservar-lhe a alcaidaria, ele, longe de aceitar, amaldiçoou qualquer dos seus descendentes que recebesse castelo de rei algum e por ele fizesse menagem. A história do cerco de Coimbra, sem ser impossível, não é, porventura, mais que uma destas lendas em que o povo costuma resumir os factos que caracterizam uma época notável e atribuir a um indivíduo só, poetizando-as, as ações que diversos praticaram. Martim de Freitas é o símbolo dos homens que, na queda de Sancho, souberam respeitar o pundonor de cavaleiro e a religião do juramento. Que importa se o cerco de Coimbra foi como a tradição o refere ou se o povo o moldou pelas formas da sua rude mas generosa poeira? Que importa, sequer, que Martim de Freitas existisse, quando os monumentos nos asseguram que Afonso encontrou naquela obra de usurpação a repugnância de muitos ânimos firmes na sua lealdade?
Herculano, A.1987. História de Portugal. Vol. IV. Lisboa, Circulo de Leitores, pg. 113 e 114
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