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A' Cerca de Coimbra


Terça-feira, 19.03.24

Coimbra. Carnaval de 1854, 5

Augusto de Oliveira Cardoso Fonseca, em 1911, publicou um outro relato dos acontecimentos decorrentes do carnaval de 1854, identificando o autor do arremesso da panela, que terá originado toda a contestação, como sendo o “Lima Valentão”.

16395.jpg

Imagem acedida em: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=43505

João Lúcio de Figueiredo Lima era natural de Sandomil, distrito da Guarda, e formou-se em Filosofia no ano de 1855. Também frequentou o primeiro ano matemático, em 1855 para 1856, assim como, de 1856 a 1858, o primeiro e segundo de Direito. Havia casado em Coimbra com a filha de um negociante de panos, estabelecido no largo de Sansão, hoje praça 8 de maio, e, com sua esposa, residia no 2.º andar do prédio em que o sogro tinha o seu estabelecimento.

Tinha bazofia de ser valente, pelo que era conhecido por Lima Valentão.

Foi ele, se pôde dizer, o principal provocador dos celebres tumultos por ocasião do entrudo de 1854.

Nesse tempo as brincadeiras de entrudo eram verdadeiras batalhas, cujos combatentes despediam, uns contra os outros, ovos, laranjas e outros que tais projeteis, que por vezes se tornavam ofensivos. Numa das janelas da casa de sua residência estava Lima Valentão com sua esposa e outra senhora, quando de um grupo de estudantes, que no largo se divertiam, simulando uma corrida de touros, partiu um ovo que foi bater em cheio no peito de uma daquelas senhoras. Tanto bastou para que Lima Valentão, num indesculpável impulso de arrebatamento, fosse buscar uma panela de barro, com que atirou ao grupo; e ainda, completamente desorientado, e empunhando uma espingarda, ameaçou os estudantes de lhes atirar.

Largo de Sansão 3.jpgPraça de Sansão.

 Foi este o grande rastilho dos graves tumultos que por essa ocasião se deram.

Muitos estudantes correram em massa a casa de Lima Valentão, chegando a subir a escada, mas não o encontrando por se haver ele evadido pelo telhado.

Nesse tempo era governador civil o conselheiro António Luiz de Sousa Henriques Seco, lente de direito, e administrador do concelho o bacharel António dos Santos Pereira Jardim.

António Luis de Sousa Henriques Seco.jpgAntónio Luís de Sousa Henriques Seco. Col. RA

 Devido aos esforços destas autoridades serenaram.

Fonseca, A.O.C. A entrudada de 1854 e o Lima Valentão, In: Outros Tempos ou velharias de Coimbra, 1850 a 1880, pg. 91-96.

 

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por Rodrigues Costa às 11:49

Quinta-feira, 14.03.24

Coimbra. Carnaval de 1854 4

Última entrada sobre o texto de Joaquim Martins de Carvalho, reacionado com os desacatos acontecidos no Carnaval de 1854.

Os acontecimentos do entrudo tinham dado lugar a processos, de que resultara serem alguns estudantes riscados da universidade, e pronunciados diferentes outros indivíduos. O governo, porém, concedeu uma amnistia a todos os que se achavam envolvidos nestas ocorrências; e além disso mandou abonar aos estudantes que estavam em Tomar os meios de que carecessem para se transportarem ou para Coimbra, ou para as terras da sua naturalidade.

Tendo voltado os académicos para Coimbra, havia da parte deles, em resultado das rixas do entrudo, uma grande irritação contra os habitantes da cidade. Por causa disso, trataram alguns académicos de fundar uma sociedade secreta, a que deram o nome de Liga Académica, que tinha por fim o mútuo auxílio dos sócios, a independência da academia, e o afastamento de todas as relações com os habitantes de Coimbra. Chegou até a haver o projeto de fazer vir de fora da cidade por conta dos sócios os objetos de consumo, o que, porém, não levaram a efeito. Esta sociedade secreta tinha uma organização quase semelhante á Carbonária.

As iniciações eram feitas numa casa da rua dos Militares, onde habitavam alguns estudantes ilhéus. As sessões eram celebradas ao ar livre; e algumas delas se fizeram de noite no Penedo da Saudade.

Planta da Alta.jpg

Rua dos Militares, localização

Colégio dos Militares, adap. hospital.jpg

Colégio dos Militares, já adaptado a hospital, que deu nome à rua

Penedo da Saudade. Sala dos poetas.jpg

Penedo da Saudade

O presidente da Liga Académica era o estudante do 4.º ano de direito, Manuel Joaquim da Fonseca. Esta sociedade secreta compunha-se de 120 sócios, divididos em turmas de 10. Em cada 10 havia um decurião, que os governava; e a todos superintendia um conselho. No poder dos membros do conselho estava a cifra da correspondência. Era a conhecida vulgarmente pelo nome de cifra de Napoleão, mas um pouco mais simplificada.

A chave da correspondência era «Fé viva”; a palavra de reconhecimento era «Sym-pa-thi-a»; e a de socorro «A mim, filhos de Minerva!»

Da Liga Académica ê que saíam as numerosas correspondências, que por essa época apareciam publicadas em diferentes jornais do reino, em que se tratava de justificar o procedimento dos estudantes nas ocorrências do entrudo, e se acusavam várias pessoas estranhas à academia. Os estudantes encarregados de escrever as correspondências eram os srs. Luiz António Nogueira, Duarte Gustavo Nogueira Soares, Francisco Joaquim de Sá Camelo Lampreia, e outros. Este trabalho era dividido por turno; e da mesma forma se fazia uma ronda noturna que pelas ruas da cidade tinham disfarçadamente os membros da Liga Académica, a fim de evitar que houvesse conflitos entre algum académico mais apaixonado e os habitantes da cidade.

Conselheiro Dr. Duarte Gustavo Nogueira Soares.jpg

Duarte Gustavo Nogueira Soares. In: “O Ocidente” de 1886.07.11

Esta sociedade secreta teve pouca duração. Como havia sido fundada por motivo de uma contenda com muitos habitantes de Coimbra, e se foi de parte a parte desvanecendo a inimizade, voltando por fim tudo ao estado normal, deixou por isso de ter razão de ser. Quando os estudantes vieram frequentar os estudos em outubro do mesmo ano de 1854, tinha a Liga Académica por si mesmo acabado, não se tornando mais a reunir.

 Carvalho, J. M. Graves conflitos em Coimbra pelo entrudo de 1854. In: Apontamentos para a História Contemporânea, 1868: Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 241-248. Acedido em: https://drive.google.com/file/d/1v-_FRydFPXvB6h6mwq3J2w75ylFmkMsd/view?fbclid=IwAR3I0Zqi_2y3soFLcZe6r5fLsX-Q2qn4McLYJbRj10EtL39pkTqs53l7Oys

 

 

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por Rodrigues Costa às 12:00

Quinta-feira, 07.03.24

Coimbra. Carnaval de 1854 3

Na continuação da entrada anterior, importa assinalar que, na época, a deslocação de parte da Academia até Tomar foi referida por “Tomarada” ou por “Entrudada”.

No texto que, como já se especificou, é da autoria de Joaquim Martins de Carvalho, um profundo conhecedor de Coimbra e do seu passado, surge a referência às “Escadas de Santa Cruz”, designação toponímica que eu, bem como outros apaixonados pela história da Cidade, desconhecíamos,

O restante trajeto percorrido pelos académicos não levanta grandes dúvidas e passaria por descer a Couraça dos Apóstolos, a atual Rua do Colégio Novo e no cimo da antiga Rua das Figueirinhas, agora “batizada” de Rua Martins de Carvalho, descer para Sansão.

O problema coloca-se neste local, pois talvez os jovens pudessem descer umas escadas do Mosteiro crúzio que iam desembocar na sua horta e eram utilizadas polos cónegos regrantes para, por uma passagem secreta de que ainda restam alguns vestígios, se deslocarem até ao Colégio de S. Agostinho.

Avento a hipótese de serem estas as referidas “Escadas de Santa Cruz”, e lanço o desafio a outros conhecedores da cidade para se pronunciarem sobre esta possibilidade.

O itinerário referido, desde que, na época, fosse possível utilizar as alegadas “Escadas”, permitiria aos dois grupos de estudantes em confronto entrarem, simultaneamente, em Sansão, uns pelo lado Norte e outros pelo lado Sul.

Fica a hipótese e o desafio.

Feito este parêntesis, prosseguimos com o texto que temos vindo a utilizar.

À noite reuniu-se a maior parte da academia no largo da Feira, e aí se espalhou a falsa noticia de que os habitantes do bairro baixo da cidade tratavam de se armar para os ir atacar no bairro alto. Os ânimos, que estavam excitados em virtude dos acontecimentos da tarde, mais se exasperaram com tal boato.

Sé Nova e Largo da Feira.jpgSé Nova e Largo da Feira. Col. RA

Alguns estudantes menos prudentes, querendo ostentar força, e julgando-se vitoriosos dos acontecimentos da tarde, começaram a incitar os seus condiscípulos para virem ao bairro baixo, e assim mostrar que nenhum medo tinham. Não faltaram conselhos e pedidos para que se não efetuasse semelhante resolução: esses esforços, porém, foram inúteis. Mostrando-se alguns, ainda que poucos, estudantes resolvidos a vir ao bairro baixo, todos os outros os seguiram, uns por espírito de camaradagem, e outros até para evitar as cenas desagradáveis que podiam ocorrer. Desceram em número de perto de 600, parte pelo Arco de Almedina, e outra pelas escadas de Santa Cruz, juntando-se em Sansão.

 

Paços Municipais (Praça 8 de Maio) por volta de Largo de Sansão, hoje Praça 8 de Maio. Inicio do séc. XX. Col. RA

Mal constou que os estudantes vinham ao bairro baixo, receou-se que se repetissem os excessos da tarde; e por isso resolveram-se alguns indivíduos, no caso de ser preciso, a repelir a força com a força. Ao mesmo tempo dizia-se, posto que infundadamente, que os estudantes queriam incendiar a cidade; e por isso quando eles desciam a rua do Cego para a praça, foram recebidos por algumas descargas, que lhes atiraram da esquina próxima da igreja de S. Bartolomeu, de que resultou ficarem alguns estudantes feridos, e corresponderem estes também com alguns tiros.

Reconhecendo a imprudência do passo que tinham dado, retiraram-se os estudantes para o bairro alto, dirigindo-se uma parte deles pela Portagem, onde a guarda lhes não consentiu que passassem para a Couraça de Lisboa, senão a dois de fundo. Assim o fizeram, terminando por essa noite os tumultos.

Na quarta feira de cinza correram boatos de que nesse dia haveria ainda maiores desordens. Em lugar, porém, dos sinistros acontecimentos que se receavam, tomaram muitos académicos a resolução de sair da cidade, dirigindo-se para Lisboa.

Os académicos participaram esta deliberação ao seu prelado, o qual não pôde fazê-los mudar de parecer; e por isso resolveu em conselho de decanos não mandar tocar o sino para as aulas, esperando ainda que se acalmasse tal estado de irritação.

Chegada a questão a estes termos, foi convocado o claustro pleno para confirmar a deliberação do conselho de decanos; porém, sendo chamado a assistir a ele o sr. governador civil, este instou e fez tomar a decisão de que houvesse aulas no dia seguinte e continuasse aberta a universidade.

Na quinta feira de madrugada, 2 de março, mais de 200 académicos se reuniram no largo da Feira, e dali marcharam para Lisboa, a fim de representar contra os habitantes de Coimbra.

Em cumprimento da resolução do claustro pleno, abriram-se as aulas, e os professores foram para as suas cadeiras; mas raros alunos compareceram, havendo classes em que faltaram totalmente os discípulos.

Os académicos que tinham saído de Coimbra caminharam a pé até Tomar. Aí os veio encontrar o sr. Roussado Gorjão, encarregado pelo presidente do conselho, duque de Saldanha, e pelo ministro do reino, Rodrigo da Fonseca Magalhães, de os persuadir a voltar para Coimbra. Os académicos acederam ás razões que lhes foram expostas, e pela maior parte vieram outra vez para esta cidade.

Pelo ministério do reino foi primeiro concedida aos académicos a faculdade de se apresentarem na universidade até ao dia 25 de março, para continuar as aulas, na certeza de que lhes seriam abonadas as faltas que desde o dia 28 de fevereiro tivessem dado nos exercícios escolares. Depois, em portaria de 17 de março, atendendo a que poderia haver alguns académicos ou muitos deles, que, tendo ido para as terras da sua naturalidade como o governo lhes permitira, ou por quaisquer outros motivos, não pudessem concorrer dentro do tempo prescrito para prosseguir nos seus estudos, á semelhança dos que de Tomar tinham regressado á universidade, foi-lhes prorrogado o prazo para se poderem apresentar até ás ferias da Páscoa.

Coimbra. Carnaval de 1907 2.jpg

Carvalho, J. M. Graves conflitos em Coimbra pelo entrudo de 1854. In: Apontamentos para a História Contemporânea, 1868: Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 241-248. Acedido em: https://drive.google.com/file/d/1v-_FRydFPXvB6h6mwq3J2w75ylFmkMsd/view?fbclid=IwAR3I0Zqi_2y3soFLcZe6r5fLsX-Q2qn4McLYJbRj10EtL39pkTqs53l7Oys

 

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por Rodrigues Costa às 12:47

Terça-feira, 05.03.24

Coimbra. Carnaval de 1854 2

Dos festejos dos Carnaval de 1854 e dos incidentes então ocorridos, existem, como refere a publicação do Arquivo Histórico Municipal de Coimbra a que aludimos na entrada anterior, outras narrativas menos jocosas, mas mais rigorosas e minuciosas.

Tanto esta entrada, como as outras duas que se lhe seguem, servem-se da informação saída da pena de Joaquim Martins de Carvalho.

Joaquim Martins de Carvalho 1.jpg

Joaquim Martins de Carvalho. Imagem acedida em: https://arepublicano.blogspot.com/2018/09/joaquim-martins-de-carvalho-1822-1898.html

Pelo entrudo de 1854 houve em Coimbra alguns acontecimentos muito deploráveis. Essas tristes ocorrências eram tanto mais para lamentar, quanto todas as pessoas prudentes reconhecem, que muito convém que entre os habitantes desta cidade e a academia reine a harmonia mais cordial.

Nos dias do carnaval os académicos entregavam-se aos costumados folguedos dos mais anos, arremessando ovos às pessoas que das janelas das suas casas presenciavam as mascaradas que transitavam pelas ruas. Aos habitantes da cidade desagradava este género de divertimento pelo incómodo e prejuízos que lhes causavam.

No domingo gordo, 26 de fevereiro, houve por tal motivo principio de desordem na praça de S. Bartolomeu, pelo que o prelado da Universidade, o sr. conselheiro José Manuel de Lemos, atual bispo de Coimbra, deliberou mandar rondar de dia, na segunda feira, pelas ruas da cidade, os empregados de policia académica, recomendando-lhes que usassem de todos os meios suaves e persuasivos para evitar as cenas do dia anterior.

Praça de S. Bartolomeu.jpgPraça de S. Bartolomeu, hoje Praça do Comércio. Inícios do séc. XX. Col. RA

Os desejos do prelado foram em parte atendidos, dando-se, contudo, nesse dia a circunstância de ser a ronda académica recebida por alguns estudantes com vozerias e apupos.

Á noite um grupo numeroso de estudantes percorreu as ruas da cidade, dando vivas á independência académica e gritos contra os archeiros. Chegando as coisas a este estado, entenderam as autoridades que convinha como medida preventiva distribuir a pequena guarnição militar pelos principais pontos da cidade, a fim de acudir a qualquer conflito que pudesse aparecer, visto que os habitantes mostravam desagradar-lhes o procedimento dos estudantes.

Praça de Sansão. José Carlos Magne a.jpgLargo de Sansão, hoje Praça 8 de Maio. Desenho de José Carlos Magne. In: Monumentos, 25, p. 147. Praça de Sansão, 1796.

Ás três horas da tarde desse dia uma mascarada dava no largo de Sansão uma corrida de touros em caricatura. Estavam algumas famílias ás suas janelas, e nessa ocasião dos grupos dos estudantes partiram ovos para várias casas. Daí resultou que um individuo clamasse contra os estudantes, e, insistindo estes, arremessou-lhes da varanda uma panela de barro, não resultando, contudo, daí nenhum mal para ninguém. Os estudantes julgaram-se ofendidos por tal motivo; e os habitantes da cidade, pela maior parte artistas, que presenciavam o espetáculo na rua, tomaram logo um aspeto ameaçador, e daí resultou travar-se entre uns e outros altercação, que redundou prontamente em vias de facto.

Por maiores que fossem os esforços que algumas pessoas empregaram para apaziguar a desordem, o conflito continuou, as portas e janelas fecharam-se, e o terror espalhou-se por toda a cidade. Acudiu então o posto militar da antiga porta fidalga de Santa Cruz, que foi envolvido pela multidão, e não pode empregar a força para restabelecer a ordem.

Praça de Sansão. José Calos Magne, 4b.jpg

Imagem onde são visíveis as portarias do Mosteiro.Pormenor do desenho de José Carlos Magne. In: Monumentos, 25, p. 147. Praça de Sansão, 1796.

Apareceu pouco depois o governador civil, que então era o sr. conselheiro António Luiz de Sousa Henriques Seco. S. Ex.ª empregando todos os esforços, conseguiu restabelecer a ordem naquele ponto, tranquilizando-se os paisanos, retirando-se os académicos para a Calçada, e entrando em formatura os soldados que tinham ali acorrido.

A desordem agravou-se de novo, quando pouco depois correram da Calçada a Sansão muitos estudantes, bradando vingança contra os paisanos. O tumulto prolongou-se logo pela rua da Sofia, a despeito dos gritos de ordem que soavam por parte das autoridades e outras pessoas.

A força militar do posto de Santa Cruz, vendo que o tumulto tomava um aspeto medonho, correu a marche-marche pela rua da Sofia, para separar os grupos dos tumultuários. Fazendo, porém, alto, foi logo envolvida pelos académicos.

Neste momento chegou o resto da guarnição disponível, que com a que estava não chegaria a 50 praças, e formou toda em linha. Conseguiu-se finalmente apaziguar a desordem na Sofia e Sansão pelos esforços do administrador do concelho, bacharel António dos Santos Pereira Jardim, e outras pessoas de influência que ali estavam, empregando-se particularmente o meio de mandar recolher os paisanos a suas casas, e dirigir para a Calçada os estudantes.

Parecia terminada a desordem, da qual tinham resultado alguns ferimentos, posto que leves; mas os estudantes, reunindo-se novamente na Calçada, continuavam a agredir os paisanos, deixando-se arrastar pela excitação, e não cedendo aos conselhos de algumas pessoas, entre as quais se contavam vários académicos, que tratavam de restabelecer o sossego.

Foi ainda necessário que o sr. governador civil marchasse com a força toda para a Calçada, para onde tinha já ido o sr. administrador do concelho, achando-se também aí o sr. presidente da camara, dr. Cesário Augusto de Azevedo Pereira, Aires Tavares Cabral, e outras pessoas, que tentavam dispersar os estudantes antes da chegada da tropa. Junto desta tinha o sr. governador civil exigido que marchassem também dois bedéis e alguns archeiros, a fim de reconhecer os estudantes que "estavam envolvidos na desordem”.

Logo que apareceu a tropa na Calçada, o ajuntamento académico, que estava defronte do Arco de Almedina, começou a gritar — fora os soldados!  As pessoas empenhadas na pacificação correram para os soldados, rogando que se retirassem: e daí resultou que, aproximando-se os tumultuados da tropa, esta calou instintivamente baioneta, mas sem avançar, retida pelas instâncias do sr. governador civil, a fim de evitar derramamento de sangue; e pela mesma razão a fez recuar para o principio da rua do Coruche.

Alguns estudantes bateram então palmas, e a esta demonstração parou a tropa, por ordem do sr. Governador civil, para não ser exautorada a força publica.

Graças aos esforços pacificadores o tumulto dissipou-se, recolhendo a tropa a quartéis.

Carvalho, J. M. Graves conflitos em Coimbra pelo entrudo de 1854. In: Apontamentos para a História Contemporânea, 1868: Coimbra, Imprensa da Universidade, pp. 241-248. Acedido em: https://drive.google.com/file/d/1v-_FRydFPXvB6h6mwq3J2w75ylFmkMsd/view?fbclid=IwAR3I0Zqi_2y3soFLcZe6r5fLsX-Q2qn4McLYJbRj10EtL39pkTqs53l7Oys.

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por Rodrigues Costa às 11:53

Quinta-feira, 29.02.24

Coimbra. Carnaval de 1854 1

O Arquivo Histórico Municipal de Coimbra, ao divulgar os documentos mais relevantes e mais interessantes ali depositados, tem vindo a realizar um meritório trabalho.

Ultimamente, com transcrição da Dr.ª Paula França, revelou a existência de dois documentos que que nos dão a conhecer como, em meados do século XIX, se vivia, em Coimbra, o carnaval ou o entrudo, como então se dizia.

Coimbra. Carnaval de 1854, 1.jpg

Transcrevemos, de seguida, o documento divulgado, embora, a fim de facilitar a leitura, tenhamos atualizado a grafia.

Tudo era alegria, tudo contentamento, Sansão estava povoada até as orelhas.

Homens mulheres rapazes, cães, tudo isto enchia e animava com um esplendor maravilhoso o Largo de Sansão mas, não se entenda que tudo era desordem; não, ao contrário, todo este povo se tinha arranjado e disposto na forma de um ovo, quero dizer, num círculo oval, de sorte que todos, ou pelo menos a maior parte dos constituintes desta figura geométrica, podiam gozar do que no meio da mesma figura se passava.

Praça 8 de Maio e rua Visconde da Luz. Inícios dLargo de Sansão, hoje Praça 8 de Maio. Inícios do séc. XX

 Era uma cena do Carnaval, era uma corrida de burros arvorados em touros, pela simples adjunção de uma armação bicórnea, que estava oferecendo um espetáculo vistoso e divertindo a jovial e variadíssima multidão.

Três touros tinham vergado sob o peso da infatigável destreza e habilidade com que os peritos capinhas os atormentavam de dor de ilhargas, porém, três homens eram levados em braços, vítimas também do seu excesso de dedicação!

Eram mártires da tauromaquia, deviam ser respeitados, todos os circunstantes pagaram o seu tributo de compaixão aos infelizes.

Coimbra. Carnaval de 1854, 2.jpg

Enquanto isto se passava, dois amáveis estudiosos discutiam acaloradamente uma questão que tinha por objeto a referida forma geométrica em que o povo se tinha agrupado, para gozar do espetáculo. Para melhor explicar esta figura ao seu antagonista, o defensor da preposição sacou de um ovo e o expôs a vista do seu adversário, porém, não foi só este que o viu, foi um terceiro amável, que passando por este belo julgar descobrir um belo meio de transtornar as rubicundas faces ao seu amigo da análise tornando-lhas amarelas!

Foi por isso que ele imprimiu, sobre a mão que segurava o ovo, uma tão grande porção de movimento que não só este saltando do seu invólucro rastejou pelas faces do seu admirador, que ficando aterrado, por um golpe tão violento, e ao mesmo tempo tão imprevisto, porque apenas teve tempo de se lembrar que um vácuo se operara na mão que sustentava o ovo, e que era esse mesmo ovo, que rolava agora por seu despeitado rosto; mas até, como íamos dizendo, correu a observar as leis que lhe eram impostas pela natureza, vindo por isso a formar um ângulo de reflexão, igual ao de incidência em virtude da sua elasticidade, operação que teve lugar na cara daquele com quem já estava relacionado. Foi, pois, furando o ovo a natureza, e que ia ser refreada a sua fúria por um transparente vidro, parte constituinte de uma vidraça, que indignado por ver um atentado inaudito, entesou as fibras segurou se no betume e revestindo-se de ânimo esperou o inimigo a pé firme, vendo o ovo preparativos tão hostis redobrou de coragem e velocidade e zás cai sobre o miserável que reduz a mil pedaços, mas ah! Coitado que ele foi vitimado seu furor! Caiu feito em pedaços sobre o ferro frio e impassível!

Foi um som lúgubre e sinistro que anunciou a morte destes dois heróis. Inconcebível desígnio da sorte adversa! O génio mau não quis pôr termo a tão desastrosa catástrofe!

Prosseguiu avante, irritado o senhor da vidraça pela fraqueza de um seu súbdito, começou em contrações nervosas e tão violentas, que de certo as grades voariam, se não fora um novo incidente, que veio pôr termo a um ataque tão terrível.

Uma desgraçada panela rolava furiosamente impelida pela casa, fazendo as delícias duma travessa circunvizinha, que dava agudíssimos gritos ao ver as ligeiras da mísera paciente. Ao rouco e rachado som da panela volta-se exasperado o recém epilético e tomando como insulto feito à sua dignidade, as expressivas cabriolas com que a panela o mimoseava, salta denodadamente sobre a infeliz, que ainda rolava, atraca pelas azas e arroja ao meio do largo o último suspiro, acompanhado dum roufenho gemido. Momento terrível de dor, com imprecações, desordem, tumulto e agitadas desesperações!

Sensações diagonalmente opostas incendiaram e agitaram a multidão e se apoderaram de seus ânimos!

O quarto touro, que ia experimentar a perícia e rigor de seus terríveis e hábeis

perseguidores, foi despojado das armas e completamente reduzido a impassibilidade de um burro!

Os três atores da tragedia altercaram com uma eloquência de Cícero, porém foram interrompidos em sua discussão por uma bravejante coorte de Ciclopes que se arremessaram em todos os sentidos causando mil encontrões e zig-zags. Tarde espantosamente celebre e notória!

Os sucessos que tu viste serão memorizados pelos vindouros por milhares de modos! A História te consagrara duas linhas para eterno monumento de glória!!

Coimbra. Carnaval de 1907 1.jpg

Sem Autor. Episódios do carnaval de 1854, manuscrito. Transcrição Paleográfica de Paula França. Arquivo Histórico Municipal de Coimbra. JMC/n.º 14, fl. 119

 

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por Rodrigues Costa às 17:55

Quinta-feira, 01.02.24

Coimbra: Viola toeira, na Miami University, em Oxford, Ohio, EUA 2

Concluímos, nesta entrada, a divulgação da publicação onde se relata o trabalho que está a ser desenvolvido na Miami University, relacionado com a revitalização da viola toeira.

A viola toeira e Coimbra

A viola de Coimbra tinha duas denominações distintas: a “Banza” e a “Farrusca,” sendo que o termo Banza descende provavelmente do instrumento africano “Mbanza” levado na memória dos escravos para o Brasil e daí o termo ser utilizado para denominar um instrumento de corda.

Coimbra foi, até às invasões francesas, a universidade do Brasil, os estudantes que vinham estudar na universidade traziam consigo a sua musicalidade, com ritmos, melodias e ambientes harmónicos dos “lundus,” combinando harmonia europeia e ritmos africanos, e a modinha brasileira, baseado na moda portuguesa e sempre acompanhada pela viola. A modinha ficou tão popular que o Jornal de Modinhas foi publicado em Lisboa entre 1792 e 1795. José Ramos Tinhorão confirma que “o costume dos estudantes, tanto de Lisboa quanto em Coimbra, de preencherem as suas horas de lazer com tocatas e cantorias chamadas de estudantinas, levava-os a compor canções.”

Quando um estudante se enamorava era costume convencer alguns dos seus colegas para o acompanhar nas noites mais claras, iluminadas pela lua cheia, pois não existia iluminação publica nas ruas, a cantar à janela da sua amada. Ouvia-se uma serenata deliciosa. Cantando versos como “menina vinde ao luar, vinde ver quem está a cantar,” o instrumento que acompanhava a sua voz era a viola de Coimbra, conhecida agora como viola toeira. Assim nasceu a Serenata, assim nasceu o Fado de Coimbra. Francisco Faria, em Fado de Coimbra ou Serenata Coimbrã?” interroga-se: “Por que chamar a isto fado? Canção coimbrã é uma música de ar livre, a estiolar em ambientes fechados, nos quais perde força expressiva e significado social, para se tornar canção-espetáculo...”

Provavelmente aprenderiam a cantar com familiares e tutores que sorviam a estética parisiense e, no caso da música, a italiana e a austríaca. Por esta razão ouve-se cantar na canção das ruas de Coimbra, a técnica operática do canto lírico que persiste na atualidade e que muito a diferencia do fado de Lisboa. A viola que acompanhava os estudantes era denominada de banza (muito raramente ainda se utiliza hoje expressão como “profissional da banza”). Era semelhante à farrusca a viola dos futricas e tricanas, mas ao nível das decorações era bastante ornamentada e rica segundo a estética barroca, com a utilização de madeiras nobres, madrepérola e marfim.

Quando um estudante se enamorava era costume convencer alguns dos seus colegas para o acompanhar nas noites mais claras, iluminadas pela lua cheia, pois não existia iluminação pública nas ruas, a cantar à janela da sua amada. Ouvia-se então uma serenata deliciosa.

Viola toeira 4.jpg

Eduardo Loio a tocar uma réplica da viola de Bento Martins Lobo. Op. cit.,

Provavelmente aprenderiam a cantar com familiares e tutores que sorviam a estética parisiense e no caso da música a Italiana e austríaca. Por esta razão ouve-se cantar na canção das ruas de Coimbra, a técnica operática do canto lírico que persiste na atualidade e que muito a diferencia do fado de Lisboa. A viola que acompanhava os estudantes era denominada de banza (muito raramente ainda se utiliza hoje expressão como “profissional da banza”). Era semelhante à farrusca a viola dos futricas e tricanas, mas ao nível das decorações era bastante ornamentada e rica segundo a estética barroca, com a utilização de madeiras nobres, madrepérola e marfim.

Revitalização e construção

A viola toeira está a passar por uma revitalização nos últimos anos, com muito interesse nas comunidades académicas e musicais, reconhecendo o potencial de um instrumento com possibilidades expressivas. Com o movimento de early music e o desejo de voltar a usar instrumentos originais na música histórica, vários instrumentos extintos ou esquecidos estão a ser reutilizados em tipos de música antiga e folclórica. A viola toeira cai nesse movimento, e a canção coimbrã.

Em termos acadêmicos, investigadores estão explorando a história e desenvolvimento da viola toeira e música composta para o instrumento, pesquisando a música em arquivos e museus em Portugal e no exterior. Várias teses e dissertações foram escritas recentemente, explorando música disponível como o “Coimbra Codex” em arquivos como a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, a Biblioteca Nacional e a Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Outras fontes estão a ser descobertas, e muita informação está disponível na internet. Instrumentos antigos estão a ser estudados também, com exemplares de violas portuguesas de 12 cordas do século XVIII acessível em museus em Portugal e outros países, construídas por António dos Santos Vieira, de Lisboa, exposta no Ashmolean Museum, em Oxford, Inglaterra, a de Pedro Ferreira de Oliveira (Lisboa, c. 1790), da antiga coleção de Arnold Dolmetsch, actualmente no Horniman Museum, em Londres, outra de José Pereira Coelho (Lisboa, c. 1785) no Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa.

Uma parte dessa revitalização é a construção de instrumentos, principalmente nas últimas décadas. Construtores redescobriram o instrumento e começaram a construir instrumentos baseados nos exemplares históricos, alguns muito elaborados, outros mais simples. Ultimamente, ateliers e fábricas começaram a produzir instrumentos em número significativo.

A construção da viola toeira respeita as técnicas de construção ibéricas que remontam ao século XVI, em que o braço e o cepo ou bloco da quilha são uma peça única, onde as laterais, ilhargas ou costilhas são coladas em duas ranhuras perpendiculares à mediana do braço, previamente serradas. Este método de construção é muito diferente do utilizado em França e Itália, que emigrou para os Estados Unidos onde a caixa acústica é construída separadamente do braço sendo unidos posteriormente através de um encaixe ou malhete.

A cidade de Coimbra é uma parte essencial da revitalização e a construção da viola toeira, com estudantes, músicos e luthiers amadores e profissionais interessados em construir e tocar o instrumento.

Há muitos websites dedicados às violas portuguesas e à viola toeira, e é possível comprar instrumentos, estojos e cordas em vários países do mundo. Projetos como EcoMusic na Universidade de Aveiro estão a investigar a história e revivalismo do instrumento e outros aspetos da música portuguesa.

A viola toeira tem um passado interessante e variado, e será fascinante ver o que o futuro reserva para esse instrumento.

Viola toeira Imagem 5.jpg

Thomas Garcia a construir uma viola toeira na Coimbra Luthier School. Op. cit.,

Garcia, T.G.C. e Loio, E. A Viola Toeira: História, Desenvolvimento, Revitalização e Construção. Acedido em: https://veduta.aoficina.pt/14/a-viola-toeira/

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por Rodrigues Costa às 19:07

Terça-feira, 30.01.24

Coimbra: Viola toeira, na Miami University, em Oxford, Ohio, EUA 1

Encontrei, com espanto e tristeza, no decurso das minhas buscas pela internet o texto que ora passo a divulgar. Espanto, porque nunca imaginei que uma estrutura deste tipo existisse e muito menos nos Estados Unidos. Tristeza porque Coimbra, mais uma vez, fica mal na fotografia e mais uma vez manifesta a sua faceta madrasta.

Importa salientar que os autores do texto são Thomas George Caracas Garcia, violonista e professor de etnomusicologia na Miami University em Oxford, Ohio, EUA, com especialização em cordafones (sic) e música luso-brasileira e Eduardo Loio, Diretor do projeto Museu da Música de Coimbra, Diretor da Coimbra Luthier School e Coordenador do Núcleo de Estudos da Viola Toeira.

No final desta série, composta por duas entradas, publicarei uma outra, a fim de recordar o que, em 1983, quando era Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Coimbra o saudoso Fausto Correia e eu tinha a honra de chefiar o Departamento de Cultura, se implementou relativamente a este instrumento.

A viola toeira é um instrumento indelevelmente ligado à cidade de Coimbra, e foi o instrumento utilizado pelos estudantes da universidade para as serenatas que evoluíram até serem conhecidas como o Fado ou Canção de Coimbra. A viola foi utilizada até o início do século XX pelos estudantes e até à segunda metade do século XX pelo povo (futricas). Poucos instrumentos sobreviveram, a maioria localizados em museus. A influência do instrumento, entretanto, pode ser sentida no mundo lusófono até os presentes dias. Recentemente, um movimento de recuperação e reutilização da viola toeira desenvolveu-se, com músicos portugueses e de outros países redescobrindo o seu potencial e beleza como um instrumento expressivo. Instrumentos contemporâneos são construídos em ritmo crescente tanto por luthiers profissionais quanto por amadores, atestando a importância da viola toeira no contexto artístico do país.

GIL VICENTE, AUTO DE INÊS PEREIRA

Sey bem ler

e muyto bem escreuer,

e bom jugador de bola,

e quanto a tanger viola,

logo me ouuireis tanger.

Viola toeira, imagem 1.jpg

Nova Arte de Viola de Manoel da Paixão Ribeiro a mostrar 12 cordas em 5 ordens. Op. cit.

(Obra impressa em Coimbra na Imprensa da Universidade, em 1789).

 Introdução

 A viola toeira, a viola de Coimbra, é um instrumento que ficou praticamente extinto do uso diário no século XX. Ela é uma das violas tradicionais portuguesas que são todas do mesmo tipo fundamental. Essa espécie de viola usava 12 cordas de arame ou tripa organizadas em 5 ordens, um padrão em Coimbra descrito no livro Nova Arte de Viola do Manoel da Paixão Ribeiro, publicado em 1789. Paixão Ribeiro é de Coimbra e refere-se à viola coimbrã do seu tempo, que se terá mantido basicamente inalterável até hoje. Era um instrumento muito importante na vida musical dos estudantes da Universidade de Coimbra até à segunda metade do século XIX, ouvida nas músicas cantadas pela cidade. Entrou em declínio no final desse século, quando foi substituída pela guitarra portuguesa de Coimbra, atualmente usada no Fado de Coimbra, que cresceu dessa música dos estudantes ao ponto de se transformar no que é conhecido hoje, que tem pouco a ver com o Fado de Lisboa.

 Da viola à viola toeira

A viola toeira caracteriza-se pela sua silhueta semelhante à vihuela e viola barroca, boca elíptica predominantemente perpendicular ao sentido das cordas, uma cabeça em forma de lira. Era encimada por um disco solar ou lua cheia às vezes decorado com grafismos gravados na madrepérola. A ponte é muito de acordo com a estética barroca com curvas delicadamente esculpidas em madeira densa. Era armada com ordens de cordas duplas e triplas na afinação mi si sol ré lá, a mesma afinação da viola barroca e viola da terra dos Açores. A viola em Portugal começa a mudar para o instrumento conhecido hoje ainda no final do século XVIII, quando a viola de arame é mencionada pela primeira vez. E a julgar pela Nova Arte de Viola de Manoel da Paixão Ribeiro, na década de 1780, o repertório tanto da viola de tripa quanto da viola de arame era essencialmente o mesmo, embora, segundo Paixão Ribeiro, exigisse do tocador “uma grande modificação nos dedos para sacarem bons vozes,” depois de alguma prática, “a viola se não diferença de hum Cravo.”

Viola toeira Imagem 2.jpg

Viola toeira do Bento Martins Lobo. Op. cit.

A denominação viola toeira foi recolhida por Octaviano de Sá nas oficinas dos construtores da cidade e publicada numa crónica no jornal O Primeiro de Janeiro e divulgada pelo musicólogo Armando Leça no seu livro Música Popular Portuguesa e em seguida devido a uma necessidade de diferenciação regional das várias violas tradicionais portuguesas foi generalizada por Ernesto Veiga de Oliveira em Instrumentos Populares Portugueses. Acreditamos na possibilidade ser esta viola que dava o tom para outros instrumentos afinarem quando tocava em conjunto.

A viola toeira usava cordas de tripa e arame, mas não era o único instrumento a usar mais que um tipo de cordas. A viola barroca era armada com cordas de tripa quando tangida dentro de portas e com cordas metálicas quando tocada na rua. Podemos especular que, com o início da Revolução Industrial, ainda com a água como força motriz, começa a chegar à cidade do Porto trazido pelos ingleses um novo tipo de liga metálica que estava a ser desenvolvida para o piano. Esse material que chegava a Portugal em rolo denominava-se em português arame musical. Poderá ser esta a explicação para viola de arame para as violas tradicionais portuguesas. No entanto poderemos afirmar que a toeira seria armada com cordas de tripa e gradualmente, devido à durabilidade e preço das cordas passou a ser definitivamente armada com cordas metálicas. Segundo Paixão Ribeiro, eram utilizadas cordas de latão, cordas de prata e cordas banhadas a ouro.

Segundo o historiador António Nunes, a viola toeira atingiu o seu verdadeiro pico nas décadas de 1850 e 1860, devido ao primoroso fabrico dos Irmãos Bruno e ao virtuosismo de José Dória, no que respeita ao fabrico é importante referir a viola construída por Bento Martins Lobo para a exposição de Coimbra em 1884 e a continuidade dada por António Augusto dos Santos e Raul Simões. A viola toeira dava o som e o caráter da serenata coimbrã, mas com a aparência da guitarra portuguesa, que começara a ser utilizada em Coimbra por volta de 1860; a viola toeira saiu da moda.

Garcia, T.G.C. e Loio, E. A Viola Toeira: História, Desenvolvimento, Revitalização e Construção. Acedido em: https://veduta.aoficina.pt/14/a-viola-toeira/

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por Rodrigues Costa às 18:44

Quinta-feira, 25.01.24

Coimbra: Extinção da Roda dos Expostos

Não tendo conseguido encontrar imagens da roda de Coimbra, apresentamos imagens de duas das que existiram no País.

Atualizamos a ortografia para facilitar a leitura dos textos.

Às 7h da manhã do dia 2 de julho de 1872 a Roda dos Expostos de Coimbra fechou para sempre.

Roda dos expostos. Sortelha.jpg

Roda dos expostos de Sortelha. Imagem acedida em: https://capeiaarraiana.pt/2019/01/19/expostos-no-antigo-concelho-de-sortelha/

Roda dos expostos Santa Maria.jpg

Roda dos expostos (Recolhimento de Santa Maria Madalena, Ilha de Santa Maria (Açores), Portugal). Imagem acedida em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/87/Roda_expostos_1.jpg

A abertura do Hospício dos Abandonados, que a substituía, vinha finalmente concretizar a proposta de extinção da Roda apresentada à junta geral do distrito a 25 de abril de 1870 pelo Doutor Manuel Emídio Garcia (1838-1904) e que então se receara pôr em prática.

Não sei quem assistiu ao ato do encerramento da Roda, mas estou em crer que o Doutor João António de Sousa Dória (1814-1877), primeiro diretor do Hospício', terá feito ponto de honra em ser ele próprio a encerrá-la.

…. Ninguém em Coimbra tinha memória de não haver Roda dos Enjeitados, que funcionava na cidade pelo menos desde 1700, há 172 anos.

…. Em meados do século XIX crescia a contestação ao abandono livre e em 1867, pelo decreto de 21 de novembro, o ministro Martens Ferrão ousara abolir as rodas em todo o país. Agia antes do tempo, pois escassos quatro meses depois a medida foi revogada pelo decreto de 20 de março de 1868. Mas à falta de lei geral, algumas juntas de distrito, por sua iniciativa, acabaram por aplicar nos seus espaços o que se projetara para o país, abrindo-se hospícios distritais

…. Contrariamente ao que a palavra indicia, o Hospício dos Abandonados de Coimbra nunca foi um hospício na verdadeira aceção da palavra, um internato, porque as crianças só aí permaneciam temporariamente até serem distribuídas por amas externas, tal como sempre se praticara na Roda. Assim sendo, as crianças do Hospício viviam por todo o distrito, e até fora dele, em casa das amas. O que distinguia a antiga Roda da nova instituição era, portanto, fundamentalmente, o processo de admissão.

…. O Hospício manteve-se nas antigas instalações da Roda, um edifício que, como se disse, fora enfermaria e hospedaria do extinto mosteiro de Santa Cruz e é atualmente a Escola Secundária Jaime Cortesão.

Roda, pg. 176.jpg

Edifício onde funcionou o Hospício dos Abandonados, fotografado a 3 de janeiro de 1935 quando foi demolida a Torre de Santa Cruz que lhe estava adjacente. Op. cit., pg. 176

…. Segundo o Regulamento do Hospício de Coimbra (1872), só eram admitidas "as crianças encontradas em abandono, em qualquer lugar publico ou particular, sem que se lhes saiba a procedência parental" …. Além destas crianças, que eram as expostas, a nova instituição também recebia "...todos os dias, das 9 horas da manhã até ás 4 da tarde, e ali se conservarão provisoriamente, até que, por despacho da autoridade competente, sejam definitivamente admitidas, as crianças menores de sete anos, que estiverem nos seguintes casos:

1.° Se seus pais houverem desaparecido e as tiverem abandonado.

2.° Se forem filhos de pessoas miseráveis que estejam presas, condenadas a prisão ou degredo, ou sofram moléstia grave; não tendo em qualquer destes casos recursos para se sustentarem e a seus filhos, nem parentes com obrigação de os alimentar e recursos para isso, nos termos do art.º 294 do Código Civil".

3.° Se forem órfãos desamparados.

…. O Hospício acolhia também os chamados repostos, crianças devolvidas pelas amas, o que podia ser apenas para se curarem. Não esqueçamos que o Hospício era dirigido por um médico. Houve ainda alguns expostos que por serem deficientes físicos ou mentais, aí permaneceram durante anos, embora o regulamento o não previsse. Foram sempre muito poucos, abaixo da dezena.

…. O que distinguia o Hospício da Roda — a não liberdade de abandono que passara a comportamento ilegal e criminalizado — teve como consequência imediata a redução espetacular do número de expostos. Reproduzo o gráfico porque é eloquente.

Roda, pg. 179.jpg

Op. cit., pg. 19

Como se visava acima de tudo diminuir o número de crianças a cargo das finanças públicas, a opção pelo Hospício foi de facto, em Coimbra, um êxito rotundo.

Lopes, M.A. Assistência pública à infância após a extinção da Roda dos Expostos: Hospício dos Abandonados e crianças maiores de sete anos (distrito de Coimbra, 1872-1890). In: Da caridade à solidariedade: Políticas públicas e práticas particulares no Mundo Ibérico, pg. 173 a 192. 2020. Braga. Universidade do Minho. Laboratório de Paisagens, Património e Território - Lab2PT.

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por Rodrigues Costa às 19:24

Quarta-feira, 17.01.24

Coimbra: Cataventos

Relembramos um trabalho do Dr. Mário Nunes, editado no ano de 2000, sob a chancela do Grupo de Arte e Arqueologia do Centro.

Cataventos, capa a.JPGCataventos de Coimbra, capa

Nos livros antigos de "Horas" e "Cronicões", as iluminuras quando representam castelos ou palácios, mostram os cumes dos torreões encimados de bandeiras em toda a sua grandeza.

As bandeiras e o seu uso associavam-se à nobreza.

Cataventos. Livro_das_Fortalezas_83-_Miranda_do_DoCastelo de Miranda do Douro. Imagem acedida em; https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro_das_Fortalezas#/media/Ficheiro:Livro_das_Fortalezas_83-_Miranda_do_Douro.jpg 

…. As bandeiras, de diversos panos e cores, a drapejar, permanentemente, ao vento, deterioravam-se com facilidade. Surgiram a remediar os efeitos negativos e a substituir o pano, bandeiras de ferro, reduções das de pano, e que passaram a ocupar, também, os pináculos dos castelos, palácios e mosteiros. Avistavam-se ao longe e mostravam o brasão do seu proprietário. Porém, como aquelas bandeiras eram rígidas, houve necessidade, de as tornar móveis em torno de um eixo, para não se danificarem ou caírem quando sopravam ventos mais fortes. E, desta maneira, as bandeiras transformaram-se, de simples ornamentos em indicadores da direção do vento, retomando o préstimo que os gregos e os outros povos lhes tinham dado.

Cataventos Lanternim do zimbÔö£Ôöério da SÔLanternim do zimbório da Sé Nova. Op. cit., pg.  75

Cataventos,  pg. 21.jpgOp. cit., Pg. 21

O cata (procura) vento, é, como referimos nos dados históricos, um instrumento que serve para indicar a orientação do vento, e que atua, também, como motivo ornamental dos edifícios.

 … O FERRO FORJAD0 E OS CATAVENTOS DE COIMBRA

 

Cataventos, pg. 33.jpgOp. cit., pg. 33

Coimbra, a "cidade das grades", na designação de Vergílio Correia, acolheu a arte e a beleza do ferro forjado. Executaram-se "autênticos monumentos", que consagraram o pendor criativo daqueles que lhe deram forma.

Cataventos, pg. 37.jpgOp. cit., pg. 37

António Augusto Gonçalves ao criar, em 1878, a Escola Livre das Artes do Desenho, lançara os alicerces da arte que fez nascer alfobres de artesãos e de artistas.

Cataventos, pg. 71.jpgOp. cit., pg. 71

Em 1900, ao deslocar-se à Exposição Universal de Paris e ao confrontar os trabalhos expostos, rendeu-se à serralharia, um ofício que fornecia objetos aplicados na arquitetura, quer fosse ferro fundido, quer ferro forjado.

 

Cataventos, pg. 45.jpgOp. cit., pg. 45

Ao regressar à Lusa-Atenas não hesitou em introduzir na Escola, juntamente com Joaquim Martins Teixeira de carvalho e João Machado, a arte que o fascinara em Paris. E, a primeira obra saída desta temática foi para o monumento funerário de Olímpio Nicolau Rui Fernandes.

Cataventos. Olimpio b.jpgBase do monumento funerário de Olímpio Nicolau Rui Fernandes. Col. RA

 Nunes, M. Cataventos de Coimbra. Fotografia de António Quinteira, João Azevedo, Mário Afonso Nunes, Coimbra, Grupo de Arte e Arqueologia do Centro.

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por Rodrigues Costa às 12:41

Terça-feira, 19.12.23

Coimbra: Implantação de República 3

Continuando a debruçar-nos sobre a obra Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação, de Carlos Santarém Andrade, abordaremos de seguida o último capítulo dedicado à Proclamação da República em Coimbra.

Segunda parte.

Na tarde do dia 13 de Outubro teria lugar a tomada de posse da Comissão Administrativa Municipal. Leia-se, sobre o acto, «A Defesa", do dia seguinte: "Foi ontem aclamada e tomou posse a comissão administrativa que há-de gerir os negócios municipais até às próximas eleições. Pelas 2 horas e meia da tarde, a convite do administrador do concelho, reuniu-se na sala nobre dos Paços Municipais o povo desta cidade". O jornal prossegue a descrição do acto, com a relação dos membros efectivos, constituída, entre outros vultos republicanos, pelo Dr. Sidónio Pais e António Augusto Gonçalves, respectivamente presidente e vice-presidentes da comissão, acrescentando: "Uma estrondosa salva de palmas acolhe a leitura desta lista, que se prolonga à medida que o Sr. Secretário da Câmara vai proclamando cada um dos nomes dos escolhidos e estes vão tomando o lugar que lhes é reservado".

CR.Op. cit., pg. 151.jpgSidónio Pais, 1.º Presidente da Comissão Administrativa Municipal. Op. cit., pg. 151

CR pg. 151 a.jpgAntónio Augusto Gonçalves. Vice-Presidente da Comissão Administrativa. Op. cit., pg. 151

 Seguem-se vários discursos: "Todos os oradores são muito aplaudidos, e entusiasticamente correspondidos os vivas soltados à República Portuguesa, à Pátria, ao Exército, à Marinha, ao Povo de Lisboa, à Câmara Republicana". Continua o jornal: “Encerrada a sessão, repetem-se os aplausos e os vivas à nova vereação, que se prolongam por vários minutos". E a terminar, "A banda do 23 tocou a «Portugueza» no átrio dos Paços Municipais.

A proclamação da República em Coimbra, que decorrera com normalidade, viria a ter um incidente que ocorreu na Universidade, quando um grupo de estudantes radicais, auto-denominado de ”Falange Demagógica'', provocou, no dia 17 de Outubro, distúrbios nas instalações universitárias, partindo peças de mobiliário, rasgando algumas vestes doutorais, destruindo mesmo diversos adereços na Sala dos Capelos, em que foram disparados tiros que atingiam os retratos de D. Carlos e de D. Manuel II.

CR.DisturbiosnaUniversidade.jpg

Distúrbios na Universidade. Op. cit., pg. 150

O acto, reprovado geralmente, incluindo a imprensa republicana, foi justificado pelos seus autores, num manifesto "Aos Espíritos Livres», no dia 18, em que declaravam: "Eis porque meia dúzia de caracteres impolutos que não se deixaram arrastar por essa onda de corrupção ignominiosa, vêm agora, impelidos por um nobre e altivo sentimento, livres das peias de preconceitos atávicos, quebrar os grilhões malditos que arroxeavam os pulsos de centenas de gerações".

Entretanto é nomeado Reitor da Universidade Manuel de Arriaga, que chega a Coimbra acompanhado por António José de Almeida, Ministro do Interior, sendo recebidos por uma enorme multidão na Estação Nova.

CR. Op. cit., pg. 153. chegada.jpgChegada de António José de Almeida e de Manuel de Arriaga à estação de Coimbra. Op cit., pg. 153

 E no dia 19 de Outubro reabria a Universidade, sendo o novo Reitor empossado no cargo por António José de Almeida. O acto, que decorreu sem as tradicionais    praxes académicas, foi relatado, no dia 27 de Outubro, pelo jornal "A Tribuna": "Usando da palavra, o Sr. Dr. António José de Almeida, começa por dizer que veio expressamente a Coimbra para, em nome do Governo Provisório da República, apresentar aos professores e alunos da Universidade o novo Reitor Manuel de Arriaga, a quem se faz uma entusiástica manifestação de carinho e respeito que profundamente o comove".

CR. Op.cit., pg. 153 MA.jpgManuel de Arriaga. Op. cit., pg. 153

 Usou da palavra em seguida o novo Reitor, que agradeceu com um discurso, findo o qual, como acrescenta o jornal: “Muitos lentes, seus condiscípulos e amigos, correm a abraçar o venerando velhinho cuja suave figura todos infunde um respeito profundo, uma carinhosa simpatia. O público dispensa-lhe uma carolíssima manifestação em que os vivas e as palmas se sucedem e se prologam”.

Em favor das vítimas da revolução em Lisboa, tem lugar no dia 1 de Novembro, em Coimbra, um bando precatório para angariar fundos, que saiu dos Paços do Concelho, percorrendo várias ruas da Cidade.

CR pg. 154a.jpgBando precatório para angariar fundos. Op. cit., pg. 154

ambém no dia 6 de Novembro, comemorando o 30.º dia da proclamação, é descerrada a lápide dando o nome de Praça da República ao largo até então denominado D. Luís.

CR pg. 154 b.jpgConvite comemorativo do 30.º dia da proclamação da República. Op. cit., pg. 154

Andrade, C.S. Coimbra e a República. Da propaganda à proclamação. 2022. Coimbra, Edição Lápis da Memória.

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por Rodrigues Costa às 11:58


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